Saturday, May 07, 2011

Quando Porto Alegre Virou Rio


Guaíba subiu mais de quatro metros




Quem entra distraidamente no Portão do Largo Glênio Peres do Marcado Público de Porto Alegre talvez nem repare em um marco, situado na parede da entrada, à esquerda, que fica mais ou menos na altura do culote dos transeuntes.

Se ele reparar bem, o marco mostra exatamente onde chegaram as águas do Guaíba há exatos setenta anos, quando as chuvas que caíram no estado, entre abril e maio de 1941 chegou a 791 mílimetros, equivalente à metade da média anual na cidade.

A capital já havia assistido a cheias anteriores, como em 1905, 1912, 1914 e 1928. Mas em 41, as águas fizeram com que o Guaíba, que é o depositário de vários rios, como o Jacuí, o Gravataí, o Sinos e o Caí, subiu mais de quatro metros. Em poucos dias, toda a região ribeirinha de Porto Alegre ficou debaixo d'água: desde Navegantes e São João até a Praia de Belas eas paragens circundadas pelo Arroio Dilúvio, que ainda não havia sido canalizado.

A situação mais funesta se deu no Centro que, ao contrário de hoje, catalisava toda a vida da cidade. Em pouco tempo, as principais ruas da urbe ficariam submersas, obrigando as pessoas a trafegarem pela Rua da Praia e adjacências de barcos, como em Veneza.

As chuvas começaram pouco antes da Páscoa de 41, em meados de abril. As autoriades em geral, no entanto, subestimaram a situação, principalmente quando o mau tempo deu mostras de arrefecimento, no começo de maio. Foi quando, além de mais e mais chuva, o vento minuano sul que soprava tenazmente sobre o estuário do rio acabou represando as águas contra o seu curso natural, rumo à Lagoa dos Patos.

O auge da tragédia se deu na segunda, 5 de maio: o Guaíba avançou contra a cidade, subiu a rua da Ladeira e ganhou a Rua da Praia. Aquele trecho, embora muitos não saibam hoje, era a Times Square porto-alegrense - um afamado ponto de encontro da boemia bem vestida da cidade, englobando diversas lojas, cafés de estirpe, como o Colombo e a Confeitaria Central, além do respectivo cinema, de mesmo nome.

Nilo Ruschel, no seu livro Rua da Praia, narra a história de um comerciante que precisou de ajuda do famoso Antoninho, garçom da Central, para salvar o seu arquivo de papéis em seu escritório, tendo que nadar debaixo d' água, como um escafandrista.

Ao sul da Andradas, as águas haviam reduzido 90% da capacidade da Usina de eletricidade do Gasômetro, deixando o Centro às escuras. Antes, o Guaíba havia se vingado da construção do Cais, estragando toda a fiação subterrânea dos gundastes, paralisando todo o serviço de carga e descarga do Porto.

Mais: toda a comunicação telefônica e telegráfica com o interior foi interrompida. O caos no Centro também atingiu os seus dois jornais, o Diário de N otícias, que ficava na esquina da Gen. Câmara e a Caldas Júnior, que levou a pior: o estrago nas suas impressoras fez com o que o "róseo" parasse de circular por uma semana.


Na Praia de Belas, o rio avançou ferozmente contra o Colégio Pão dos Pobres, onde consta que um cônego veio a falecer afogado. O antigo Aeroporto São João também ficou submerso, e o tráfego aéreo, ainda incipiente, teve de ser deslocado para o campo de pouso da Air France, em Cachoeirinha.

Quem mais sofreu foi a população mais remediada, e que, na época, vivia na região ribeirinha conhecida como o Areal da Baronesa e a Ilhota, onde hoje fica parte da Cidade Baixa e Menino Deus. A área, que já era alagadiça por natureza, desapareceu porque ali desaguaava o Arroio Dilúvio, quase onde ficava a Ponte de Pedra.

Para ajudar os desabrigados, o prefeito-interventor Loureiro da Silva e o governador Cordeiro de Farias, junto com o Exército e a Brigada Militar, realizaram uma força-terefa, deslocando os atingidos para escolas ou até mesmo para debaixo do Viaduto Otávio Rocha. Ao mesmo tempo, emissoras de rádio arrecadavam fundos junto aos ouvintes, para a aquisição de mantimentos.

Cordeiro de Farias teve que pedir auxílio federal. Não havia mais artigos de primeira necessidade e o que ainda restava era vendido a peso de ouro pelos comerciantes, obrigando a Prefeitura a forçar os comerciantes a tabelarem os preços. As fábricas paravam. Só na Renner, cerca de 2 mil funcionários tiveram que cruzar os braços.

A Viação Férrea, que ficava onde hoje está a Rodoviária, também suspendeu atividades. Os trilhos estavam submersos, a viagem à Santa Maria fora suspensa. Para viajar, os porto-alegrenses eram obrigados a se deslocar de barca até o Vale dos sinos para então retomar o trajeto pelos trilhos.


O ápice da tragédia foi o alagamento do maquinário do Gasômetro. Mesmo depois de reformas para evitar sinostros desse tipo, as águas tomaram a usina de assalto, deixando Porto Alegre toda sem luz. Mesmo que os operários tentassem criar barreiras de tijolos, o Guaíba entrava por todos os lados, até que chegou no estoque de carvão: xeque-mate. A muito custo, os operários conseguiram salvar duas bombas do total de oito.

Na noite de 8 de maio (o primeiro dia de sol), os bondes pararam, os postes apagaram e a luz das residências foi sumindo, até o Centro ficar às escuras e debaixo d´'agua. A Praça XV de Novembro, onde fica o Abrigo dos Bondes e o Chalé, era um lago onde vapores podiam trafegar sem risco de encalhar; as fotos da época são inacreditáveis. Porto Alegre virou rio.


As águas não subiam, mas também não baixavam. O problema agora era outro: o risco de que a força das águas tivesse destruído a rede cloacal, expondo à população à toda a sorte de epidemias, como a de tifo, que aconteceu na enchente de 28, e que atingiu 20 mil pessoas. Logo, a Secretaria da Saúde passou a vacinar a população. Por conta disso, 55 mil porto-alegrenses foram imunizados contra a tifo e varíola.

A partir da segunda quinzena de maio, a cidade começava a contabilizar o estrago. De acordo com a Delegacia Regional de Recenseamento, 15 mil residências foram destruídas, atingindo cerca de 70 mil pessoas (que, segundo o censo de 40, contava 272 mil habitantes). Pelo menos 600 estabelecimentos comerciais tiveram prejuízos materiais. Segundo o livro A Enchente de 41, de Rafael Guimaraens (Editora Libretos, 2009), o prejuízo total foi de 60 mil contos de reis, ou US$ 30 milhões.

No dia 20 de maio, às águas já haviam baixado ao nível da cheia de 1928, algumas empresas retomariam suas atividades; outras, contudo, não abririram mais as portas. a ajuda governamental, transubstanciada em moratória de dívidas e a criação de linhas de crédito para os capitães não ajudaria a todos, já que muitos não tinham nem como recomeçar do nada.

Junho chegou e Porto Alegre ainda contava 4 mil desabrigados pela enchente de 41.

Depois de seis enchentes terríveis, a triste constatação: Porto alegre teria que proteger-se das próximas. Ainda naquele ano, técnicos do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) sugeriu um sistema de diques e, no Centro, uma cortina de concreto.

No entanto, o projeto só seria concretizado (desculpem o péssimo trocadilho) nos anos 70. A primeira decisão municipal, por sua vez, foi a canalização do Arroio Dilúvio. em seu curso original, ele descia pela Sebastião Leão até desaguar na Ilhota, onde hoje fica o Ginásio Tesourinha, até chegar no Pão dos Pobres. Com a canalização, o Dilúvio foi ligado diretamente ao Guaíba, no atual aterro da Praia de Belas.

Concluído em plena Ditadura Militar, o Muro da Mauá (como é chamado) surgiu numa época em que esse tipo de obra pública era plenamente viável, dado a facilidade em se obter empréstimos internacionais a juros baixos. O muro, por sinal, é a piece de resistence de um sistema de diques e casas de bombas que 68 quilômetros, protegendo a capital do Rio Grande de outro desastre como a que ocorreu há setemta anos, naquele maio de 41.

Inaugurado em 1974, o "muro" tem 2,5 quilômetros de extensão, três de altura e três abaixo do nível do chão. As suas dimensôes são embasadas nos índices de 1941.Porém, como a opbra foi outorgada à população num período discricionário da história recente, como diz Guimarans à guisa de conclusão do livro, "a presença daquele cinzento e ostensivo monumento de concreto armado foi transformado numa espécie de ícone do obscurantismo, um entrave tecnocrático a conspirar contra a saudável relação da cidade com o Guaíba".

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