Monday, May 23, 2011

O Elixir




Quem primeiro percebeu foi o vizinho.

Ele foi até a rua levar o lixo, quando se encontraram. O senhor do 101 olhou para ele de alto a baixo, depois voltou para a testa, e exclamou: ”Você esta fazendo alguma coisa no cabelo?”. “Não”, ele respondeu, meio tímido.. “É que o seu cabelo está vindo, não lhe parece?”. “Pode ser, pode ser”, respondeu, lacônico, ao fechar a porta. Foi correndo até o espelho do banheiro, e ficou analisando a sua careca, como se fosse um jogo dos sete erros. É mesmo, ele exultou! O cabelo estava crescendo. Observava a careca, de alto a baixo. Parecia espantoso. Em pouco tempo, via uma mecha se ensaiar por sobre seus olhos, como se fosse um pequenino pé de feijão plantado num chumaço de algodão, perdido dentro de um pote de Danoninho.

Estava ficando calvo desde a adolescência. Uma prima o viu agachado, e brincou: “olha essa careca, guri! Vais ficar como um frade!”. E riu. Ele fingiu que não era nada e, de fato, não se importou com queda de cabelo, até que chegou a uma certa idade em que, se continuasse a negligenciar a sua progressiva calvície, não haveria nenhum fio de cabelo para contar a história em poucos anos. Pior: sua careca ganhava mais destaque com o rosto escanhoado. Quando cortava o cabelo, se sentia nu. Parecia ouvir o riso das pessoas. Se sentia frágil, em ver que era apenas um careca hediondo. Logo seria reconhecido como “o careca”, ou “bom cabelo”, entre outros apelidos menos depreciativos.

Sempre que ele via alguém com vasta cabeleira, olhava de esguelho, com inveja. Ficava impressionado com o colosso capilar. Imaginava aquele sujeito com um cabelão de maestro tentando pentear aquela melena indomável como o cavalo de Alexandre em frente do mesmo espelho em que ele mirava a sua testa devoluta no banheiro, irremedialmente pelada e rosada, como um porco recém nascido. Ele mesmo, com a calvície avançada e maníaca, devastando o seu crânio como uma seca inexorável, estava cada vez mais achando que era uma caricatura do Gaguinho. O medo aumentava quando estava sozinho em seus pensamentos, imaginando que jamais chamaria a atenção de uma mulher bonita, a não ser, é claro, por causa da sua inexistente cabeleira.

Um dia andava pelo centro quando encontrou um velho pajé. O homem vendia na rua saquinhos com folhas e ervas, e vidrinhos com extratos de raízes de plantas de nomes impronunciáveis. Não resistiu, e perguntou ao velho índio: “o senhor não tem nada para queda de cabelo?”. O ambulante riu: “queda de cabelo, hein? Vamos ver, vamos ver”. Remexeu uma mochila ao lado, no chão, até achar um pequeno frasco. Puxou e colocou na vista do rapaz. “Aqui, isto vai lhe restituir o cabelo que você perdeu”. O jovem careca não pensou duas vezes, pegou o preço e levou o frasco como se fosse um raro tesouro. E foi correndo para casa, se perdendo no meio da multidão, sem ouvir o pajé que, antes que terminasse de contar as moedas, viu que seu cliente sumira da sua vista.

Na frente do espelho, ele pensou em passar o remédio no cabelo. Passou um pouco na testa. Quando acordou, no outro dia, nada. Esperou mais um dia, e nada de novo. Pensou: “e se essa porcaria for uma poção?”. Olhou o vidrinho. Cheirou. O odor era suave, parecia água de melissa com erva doce. Decididamente, aquilo deveria ser alguma beberragem, foi por isso que de nada adiantava passar no cabelo. Entornou o conteúdo goela abaixo. Uah! Horrível! Seus olhos lacrimejavam! Depois, se sentiu culpado. E se fosse um tratamento para passar na cabeça mesmo, e que levasse algum tempo para que desse algum resultado? E se o tal remédio fosse apenas mais um conto do vigário?

Só se lembrou que tinha ingerido o elixir quando o vizinho exclamou ”Você esta fazendo alguma coisa no cabelo?”. Um raio em sua mente lhe recordou do pajé. Ao mesmo tempo em que tentava explicar alguma coisa, se deu conta que havia acontecido alguma coisa diferente. Não sabia o que dizer, só não queria revelar qualquer ponta de vaidade em dizer ao seu colega de andar que estava tratando a sua progressiva calvície. Entrou em case e viu, no espelho. O seu cabelo estava crescendo! Pensou em ir até o centro e agradecer ao pajé. Mas não. Procurou o frasco com o resto do remédio, que ele havia jogado fora. Estava no lixo, o que fazer? Esperou que o vizinho voltasse para casa, e então, revirou a sacola. Lá estava o vidrinho.

Fechou a porta, foi até uma pena e lavou o frasco. Abriu a tampa e, exultante, bebeu todo o resto do elixir. Horas depois, ele começou a sentir um certo torpor nos braços e pernas. Foi deitar-se. Quando acordou, outra surpresa! Tinha todo o seu cabelo redesenhado por sobre a sua antiga careca! Era um milagre! Pensou em ir até o pajé, e lhe pagar mais pelo presente. Mas preferiu passear com a nova melena. Os conhecidos olhavam, e não acreditavam. “Como se explica? É peruca? Interlace?”. Nada, ele respondia. Dizia que tinha uma doença que lhe impedia o crescimento da massa capilar, mas agora, graças à Medicina, estava curado. Baixava a cabeça para que as pessoas vissem. Era cabelo de verdade, não era entrelaçamento, muito menos peruca. Ele sabia que, pior do que arranjar uma garota por não ter cabelo era tentar arrumar mulher de peruca, e passar a vergonha de confessar que ele era um reles Kojak da vida.

Mas agora ele não era mais um careca, tinha cabelo e franja na testa, como um compositor, um poeta. Feliz da vida, foi dormir. Dormiu um sono longo, como se fossem séculos, sonhos lúcidos, ilustrados, cheios de passagens enigmáticas e histórias entrecortadas, mas sem nenhum sentido. Acordou estranho. Foi até o espelho. Não pôde acreditar. O seu cabelo havia crescido consideravelmente em apenas uma noite de sono. Achou que realmente havia dormido durante dias a fio. Olhou para o relógio: não, haviam se passado apenas nove horas. Seu cabelo parecia o de um velho hippie. E via pelos ralos nas mãos e no peito. Não, não era possível. Horas depois, seu cabelo parecia uma longa cabeleira de crente pentecostal. E agora? Não pensou duas vezes: foi procurar o pajé.

Algo lhe dizia que ele adiantou o processo. Alguma coisa indicava que ele fez a coisa errada. Chegou no local, nada do velho pajé. Perguntou a outro ambulante, ao lado. O que aconteceu com o pajé que vendia ervas aqui ao lado?”. O vendedor chegou perto, e disse: “aquele índio maluco? Parece que ele se meteu numa briga, se meteu com uns polícias, e acabou sendo degolado”. A resposta lhe gelou a espinha. Insistiu se era verdade. Era. O índio se chamava Jeremias, era um curandeiro, foi confundido com um traficante, e morreu fulminado com três tiros. A degola ficava por conta da alegoria do outro vendedor. Mas isso não resolvia nada. O que seria dele agora? Seu cabelo estava cada vez maior. Se sentia observado. As pessoas o olhavam como se ele fosse um esquizofrênico, com uma longa cabeleira depressiva. Amedrontado, pegou um táxi.

Chegou em frente ao espelho. Pegou uma máquina e rapou seu cabelo. Em seguida, lavou a cabeça. Estava normal, de novo. Em minutos, o cabelo cresceu, consideravelmente. Cortou, cortou, cortou até que, exausto, dormiu. Aquilo parecia um pesadelo. No outro dia, sua cabeça pesava, se mexeu, e não pôde. Levantou os braços. Era o abominável homem das neves. Correu para o espelho do banheiro. Parecia um velho druida, o cabelo envelhecia 1a media em que crescia. Pior: quanto mais ele rapava, com mais fúria ele voltava. Agora, seu cabelo aumentava em espessura nas costas, braços, pernas e tórax. Estava virando um monstro capilar. Chorou, desesperado. Fechou cortinas e janelas. Ninguém poderia ver aquilo. Ele queria apenas ser atraente, mas virou uma atração de circo. Se sentia mais desesperado do que quanto estava apenas calvo.

Sentiu saudades de quando era apenas um careca simpático. Agoras, não podia sair de casa sem antes passar máquina em todo o corpo; se passasse, ele sabia que seus pelos cresceriam consideravelmente. Não foi mais ao trabalho. Cortou os telefones. A campainha tocava, ele colocou um aviso de que não estava em casa. Na verdade, queria fugir, mas estava fadado àquele trabalho de Sísifo, de se depilar e ver todo o cabelo crescer, na mesma medida. Além disso, a casa toda havia se transformado num enorme tapete de cabelos cortados. Cada vez mais desesperado, ele cortava tudo, incessantemente, enquanto via o cabelo ressurgir ao mesmo tempo. Não queria que ninguém o visse. Não conseguia pensar, não conseguia comer ou se comunicar, queria apenas sumir, não queria sair, se saísse, poderia ser preso como um babuíno de zoológico. Já não sabia mais como aquilo ia parar. Dormia achando que era um pesadelo ambulante. Aquilo não era de verdade. Não podia ser verdade. Acordava cada vez mais cabeludo e peludo.

Acordou sentindo falta de ar. Abriu caminho para as narinas, não conseguia achar o nariz. Enfiou as mãos dentro das narinas, ele tinha pêlos dentro do nariz. Não conseguia respirar, mexeu a língua, ele tinha pêlos enormes, pareciam pêlos de javali, por toda a língua. Tentou se dirigir até o espelho do banheiro, se resvalando na imensa peruca que o seu pequeno quarto havia se transformado, com a sua melena e todo o cabelo cortado pelo corredor. Via apenas os seus olhos inchados, no meio do espelho. Puxou um banco, e ficou sentado ali mesmo, olhando para si mesmo, com o seu cabelo preto com uma mecha branca de metros em fio, caindo ao lado do seu nariz, esperando que o ar lhe faltasse. A sua língua era uma hedionda bola de tricô, respirava alto, olhando para os seus olhos, tentando se lembrar do seu rosto antigo, da sua antiga e saudosa careca. Não pensava mais nele. Ele não era nada. Sabia que iria morrer o que sempre achou que fosse, como uma curiosa atração de circo. Pensou nos olhos castanhos de Marisa, nos seus olhinhos meigos, na sua voz doce e no seu sorrisinho de dentes falhos. Sabia que iria morrer, mas não tinha medo, porque ia morrer pensando em Marisa, que era pequena, meiga, e usava uma bandana preta. A lembrança do sorriso dela lhe deixou alado, leve como uma pluma, por um instante. Mas ela nem ao menos sabia o seu nome. Mas nada mais importava agora, Marisa. Ma-ri-sa. Três sílabas que ele guardava, com todo o seu ardor e paixão, no cofre do seu coração. Ele pensava em Marisa, pensava alto o nome mais lindo que ele jamais ouvira, e se sentia amortalhado de tanto amor por ela. Ele morria feliz. Finalmente feliz. Havia sido salvo pela doçura dos olhos dela e pelo sorriso lindo e tímido de Marisa, o seu mais intenso e derradeiro amor. Marisa.

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