Saturday, July 23, 2011

Terra dos Homens


Capa do livro


Não resisti.

Fui esta semana na exposição sobre do incensado livro O Pequeno Príncipe, lançado pelo escritor francês Antoine de Saint-Exupéry, em 1943.

A exposição é muito bonita, contudo para cativar ao público infantil. Na verdade, a obra em si não precisa pedir licença para cativar a mais ninguém. Mas fica no ar aquela avoenga e funestíssima eterna questão: o livro foi escrito para o público infantil ou para o público adulto? Mas não se preocupem: não vou responder a essa pergunta.

Às vezes eu tenho a impressão que todos leram a obra do Exupèry e ninguém fez a leitura correta. Outros, por sua vez, muito pelo contrário, ao se depararem com o que eles chamam de vida real, acabam desmistificando a mensagem da história.

É aquela história: você conhece alguém, você cativa ela, vocês se amam, depois vocês se decepcionam, depois vem o desenlace final, ela te trai e o culpado é o Pequeno Príncipe, com aquela lenga sobre cativar, amor e amizade, saudades e etc. Mas também desa vez não se preocupem, não vou escrever aqui nada a respeito de relacionamentos.

Vou falar de um outro livro do Exupèry, chamado Terra dos Homens. Acho que ele é interessante por ser uma espécie de romance de formação, que conta um pouco do começo da história do escritor francês que, além de beletrista, assim como o personagem do Le Petit Prince, era um piloto de avião a serviço do Correio francês.

Outra coisa legal no Terra dos Homens é que, de certa forma, ele recoloca Exupèry dentro de um contexto que explica a gênese da fábula do Pequeno Príncipe.

Como se sabe, a história do princepezinho que viajou do seu pequeno asteróide B-512 até o planeta Terra acabou injustamente se tornando um clichê - ainda mais aqui no Brasil, onde ele é citado por nove entre dez candidatas a Miss. Graças a Deus, como se sabe, já que hoje em dia as nossas candidatas lêem cada vez menos, o livro tem sido naturalmente cada vez menos citado.

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Saint-Exupèry virou aviador por acidente: fora reprovado na Escola Naval, em 1921. Um ano depois, ele recebe o brevê de piloto de aviação civil em Rabat. No mesmo ano, ele se torna soldado e, mais tarde, subtenente. Com quatro anos de experiência como piloto de caserna, ele é admitido na Sociedade Latècoère de Aviação. Aqui começa a sua carreira de piloto de linha, fazendo o percurso Toulouse-Casablanca-Dacar.

Pois o relato de Terra dos Homens (1939) começa em 1926, quando ele se torna piloto do Correio, e conhece veteranos que o iniciam nas artes do vôo sob o sol do deserto africano. Depois de dormir em cima de mapas e cartas metereológicas ele iria conhecer todo o mistério de uma ciência absurdamente empírica, que ia desde a navegar debaixo de chuva driblando cumes de picos e montanhas até a vida do deserto, com seus oásis, beduínos, jaus e miragens.

A primeira parte do livro é um misto do seu batismo como piloto da Latècoère e as histórias de vida dos seus colegas, como Jean Mermoz
, que inclusive foi o pioneiro da linha Casablanca-Dacar e Paris-Buenos Aires. E Henri Guillaumet(a quem Terra dos Homens é dedicado), que caiu nos Andes e sobreviveu milagrosamente para contar o seu renascimento após um desastre na vertente chilena da cordilheira. O próprio Exupèry, que à época também fazia a linha na América do Sul, foi um dos respionsáveis pelo resgate de seu companheiro.

- Muitos sinais anunciavam o fim - diz Guillaumet. - Por exemplo, era obrigado a parar de duas em duas horas para abrir um pouco mais minhas botinas, esfregar neve nos pés que inchavam ou simplesmente dar um pequeno descanso ao coração. Nos últimos dias comecei a perder a memória. Muito tempo depois de recomeçar a marcha é que me lembrava: havia esquecido alguma coisa. Da primerira vez foi uma luva, e isso era grave, com o frio que me gelava as mãos. Eu a havia apanhado no chão, ao meu lado, e seguira caminho sem apanhá-la. Depois foi o relógio, depois o canivete. Depois a bússola. Em cada parada eu me empobrecia. O que salva é dar um passo. Mais um passo. É sempre o mesmo passo que se recomeça (...) o que eu fiz, palavra que nenhum bicho, só um homem, era capaz de fazer.



Em O Deserto, Exupèry conta as histórias do tempo em que ele chefiou a estação de Cap Juby (Tarfaya, uma vila ao sul do Marrocos) pela Compagnie Générale Aéropostale e de sua relação com os chefes mouros, que então habitavam os territórios não submissos à França ou Espanha.

Através deles o escritor do Pequeno Príncipe conheceu um escravo, chamado Bark. Ele dizia a todos que se chamava Mohammed ben Lhaoussin, que era um rei e que havia se tornado cativo dos mouros por traição. Bark pedia à Antoine para que o escondese no avião e o levasse para Agadir. Exupèry sabia que eles se vingariam.

Então resolveu juntar dinheiro com seus companheiros da Aéropostale e conseguir comprá-lo. Com engenho e arte, nosso herói convenceu o chefe dos beduínos que ele poderia comprar escravos mais jovens com o dinheiro. E assim Bark foi cedido aos franceses. Deram-lhe mil francos a fim de que o jau pudese se sustentar até que conseguisse emprego.

Em Agadir, no entanto, ele não babia dentro de si de tanta alegria. Foi visto fazendo caridade para crianças. Comprava-lhes pequenos regalos. "Guarde o seu dinheiro"", diziam. E Bark não os ouvia. À guisa de conclusão, Exupèry explica: "Acharam que ele tivesse ficado louco de alegria. Mas ele possuía, desde que era livre, os bens essenciais, o direito de se fazer amar, de caminhar para o norte ou para o sul, de ganhar o seu pão pelo trabalho. Para quê o dinheiro? Sentia, como se sente uma fome profunda, a necessidade de ser um homem entre os homens, ligado aos homens (...) Era livre, mas infinitamente livre, a ponto de não sentir o seu peso sobre a terra. Faltava-lhe o peso das relações humanas que entrava a marcha do homem, e as lágrimas, e os adeuses, e as lamentações, e as alegrias, tudo o que um homem acaricia ou ofende sempre que ele esboça um gesto: esses mil laços que o prendem aos outros, que lhe dão gravidade. Mas sobre Bark já pesavam mil esperanças...".

...

O heróico episódio de Henri Guillaumet nos Andes assombra Exupèry novamente quando ele e o co-piloto André Prevot perfazem um trajeto de Benghazi até a Indochina. É o começo de No Deserto, o relato mais impressionante de Terra dos Homens.

Ainda no deserto, seu avião cai e os tripulantes sobrevivem milagrosamente. Perdidos, eles restam vivos para morrerem sob as areias do norte da África. Passam por todas as privações e toda a visão reversa de mundo pela qual passou Guillaumet.


Fenech: a raposa do Exupèry

Sobreviver para quê? Sem bússola, sem provimentos, sem água, sem perspectiva: seria necessário pelo menos duas ou três semanas de busca para encontrar no deserto os destroços de um avião pelo qual nada se sabe a respeito, num raio de mais de 3 mil quilômetros.

Antoine e Prevot em vão tentam caçar algum animal. No entanto, acaba travando conhecimento com uma raposa branca de orelhas de coelho e com o corpo do tamanho de uma ratazana: a fenech. Através do rastro das raposas, ele descobre o esconderijo de comida das fenechs. De cem em cem metros, era possível avistar pequenos arbustos carregados de caracóis.

Exupèry notou que a raposa não devorava todos os moluscos. Claro, a raposa espertamente observava a necessidade de reprodução do pequeno gasterópodo e a sua própria sobrevivência no deserto. A raposinha fenech involuntariamente acabou salvando a vida do escritor e, ao mesmo tempo, assim como o saara, ela acabou se tornando sua personagem: é com a fenech que o princepezinho trava o seu famoso diálogo.

O oitavo e último capítulo de Terra dos Homens, por sua vez, é quase que uma introdução ao tipo de filosofia que Antoine de Saint Exupéry iria transmudar na parábola do Le Petit Prince, cinco anos depois, em 1944. Sua experiência de quase morte lhe franqueou uma outra visão de vida quando, segundo ele, um homem "descobre a si mesmo e se torna seu amigo".

"Não sabemos prever o essencial", diz o escritor. "Cada um de nós conheceu as alegrias mais ardentes onde nada as prometia: elas deixaram em nós uma tal nostalgia, que temos saudades até de nossas misérias, se foram nossas misérias que as permitiram. Nós todos, ao encontrar depois de algum tempo os companheiros, sentimos o encanto de relembrar as horas amargas".

A busca do "essencial" para ele era algo como ter um insight de entender 1) a extrema necessidade do ser humano em encontrar-se em si 2) a necessidade de encontrar-se no outro. Do primeiro apontamento, Exupèry pega o exemplo de um compositor como Mozart ter a sua virtude coberta pela finitude da vida passada em vão pelo espírito de manada das pessoas em moldar-se pela banalidade dos ritos comuns, o desperdício das relações ensimesmadas e pélas convenções, a falta de transcendência em tudo e em todos, da carência da falta dessa experiência sensível que nos ligaria de forma mais substancial com o mundo a nossa volta. Para ele, um talento iria soçobrar diante do convencionalismo do encaixotamento progressivo das relações sociais, como um fenômeno existencial-endêmico.

Por outra, do segundo apontamento, a partir do primeiro, ele pega o exemplo da capacidade de abstração pueril típica das crianças para delimitar a extrema distância da visão poética da vida que perdemos com o tempo e preservada na imagem do Pequeno Príncipe, desde a dedicatória do livro até as crianças "que esmagam seus narizes nos vidros dos rápidos". A visão final de Terra dos Homens é um casal transformado em seres de barro, desgastados pela vida e pela degradação das relações pessoas, trazendo no colo uma criança pura (ou ainda pura) dessa degradação. Diz Exupèry: "certamente que as vocações ajudam o homem a se libertas; mas é igualmente necessário libertar as vocações".

Ou seja, de nada adiantaria a vocação de um futuro compositor se ele for jogado num mundo indiferente. A disparidade de visão de mundo que o escritor francês explica na parábola do principezinho (criança X adulto) é a continuação e a reconstituição alegórica da história que Exupèry encerra o seu Terra dos Homens. Eis o trecho:



Há alguns anos, durante uma longa viagem de estrada de ferro, resolvi visitar aquela pátria em marcha em que ficaria por três dias, prisioneiro, durante os três dias, daquele ruído de seixos rolados pelo mar. Levantei-me. Pela uma hora da madrugada corri os carros, de ponta a ponta. Os dormitórios estavam vazios. Os carros de primeira classe estavam vazios.

Mas os carros de terceira estavam cheios de centenas de operários poloneses despedidos na França, que voltavam para a sua Polônia. Caminhei pelo centro do carro levantando as pernas para não tocar nos corpos adormecidos. Parei para olhar. De pé, sob a lâmpada do carro, contemplei naquele vagão sem divisões que parecia um quarto, que cheirava a caserna e a delegacia, toda uma população confusa, sacudida pelos movimentos do trem. Toda uma população mergulhada em sonhos tristes, que regressava para a sua miséria. Grandes cabeças raspadas rolavam no encosto dos bancos. Homens, mulheres, crianças, todos se viravam da direita para a esquerda, como atacados por todos aqueles ruídos, por todas aquelas sacudidelas que ameaçavam seu sono, seu esquecimento. Não achavam ali a hospitalidade de um bom sono.

E assim eles me pareciam ter perdido um pouco a qualidade humana, sacudidos de um extremo a outro da Europa pelas necessidades econômicas, arrancados à casinha do Norte, ao minúsculo jardim, aos três vasos de gerânio que notei outrora nas janelas dos mineiros poloneses. Nos grandes fardos mal arrumados, mal amarrados, eles haviam juntado apenas seus utensílios de cozinha, suas roupas de cama e cortinas. Mas tudo o que haviam acariciado e amado, tudo a que se haviam afeiçoado em quatro ou cinco anos de vida na França, o gato, o cachorro, os gerânios, tudo tiveram de sacrificar, levando apenas aquelas baterias de cozinha.

Uma criança chupava o seio de sua mãe que de tão cansada parecia dormir. A vida transmitia-se assim no absurdo e na desordem daquela viagem. Olhei o pai. Um crânio pesado e nu como uma pedra. Um corpo dobrado no desconforto do sono, preso nas suas vestimentas de trabalho, um rosto escavado com buracos de sombra e saliências de ossos. Aquele homem parecia um monte de barro. Era como um desses embrulhos sem forma que se deixam ficar à noite nos buracos das feiras. E eu pensei: o problema não reside nessa miséria, nem nessa sujeira, nem nessa fealdade. Mas esse homem e essa mulher sem dúvida se conheceram um dia, e o homem sorriu para a mulher; levou-lhe, sem dúvida, algumas flores depois do trabalho. Tímido e sem jeito, ele temia ser desprezado. Mas a mulher, por fagueirice natural, a mulher, certa de sua graça, talvez se divertisse em inquietá-lo. E ela, que hoje é apenas uma máquina de cavar ou de martelar, sentia assim no coração uma deliciosa angústia. O mistério está nisso: eles se terem tornado esses montes de barro. Por que terrível molde terão passado, por que estranha máquina de entortar homens? Um animal ao envelhecer conserva a sua graça. Porque essa bela argila humana se estraga assim?

E continuo minha viagem entre uma população de sono turvo e inquieto. Flutua no ar um barulho vago feito de roncos roucos, de queixas obscuras, do raspar das botinas dos que se viram de um lado para outro. E sempre, em surdina, o infatigável acompanhamento dos seixos rolados pelo mar.

Sento-me diante de um casal. Entre o homem e a mulher a criança, bem ou mal, havia se alojado, e dormia. Volta-se, porém, no sono, e seu rosto me aparece sob a luz da lâmpada. Ah, que lindo rosto! Havia nascido daquele casal uma espécie de fruto dourado. Daqueles pesados animais havia nascido um prodígio de graça e encanto. Inclinei-me sobre a testa lisa, a pequena boca ingênua. E disse comigo mesmo: eis a face de um músico, eis Mozart criança, eis uma bela promessa de vida. Não são diferentes dele os belos príncipes das lendas. Protegido, educado, cultivado, que não seria ele? Quando, por mutação, nasce nos jardins uma rosa nova, os jardineiros se alvoroçam. A rosa é isolada, é cultivada, é favorecida. Mas não há jardineiros para os homens. Mozart criança irá para a estranha máquina de entortar homens. Mozart fará suas alegrias mais altas da música podre na sujeira dos cafés-concertos. Mozart está condenado.

Voltei para o meu carro. E pensava: essa gente quase não sofre o seu destino. E o que me atormenta aqui não é a caridade. Não se trata da gente se comover sobre uma ferida eternamente aberta. Os que a levam não a sentem. É alguma coisa como a espécie humana, e não o indivíduo, que está ferida, que está lesada. Não creio na piedade. O que me atormenta é o ponto de vista do jardineiro. O que me atormenta não é essa miséria na qual, afinal de contas, um homem se acostuma, como no ócio. Gerações de orientais vivem na sujeira e gostam de viver assim.

O que me atormenta, as sopas populares não remediam. O que me atormenta não são essas faces escavadas nem essa feiúra. É um pouco, em cada um desses homens, Mozart assassinado.




PS: visitem a exposição, vai até domingo que vem. :)

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