Tuesday, June 14, 2011

Convite para Enterro

Não contei aqui do dia em que a minha vizinha morreu? Foi tão engraçado! Ela leu no jornal uma mulher com o mesmo nome e sobrenome dela — menos o último, que era a diferença entre as duas, não foi publicado no necrológio. A coitada da mulher fazia o buço no espelhinho do bidê, no recesso do seu lar. Bate a campainha. Era a vizinha de cima. Disse: "Ai amiga! Que bom que estás viva, fiquei tão aflita!". "Como assim?", quis saber. Aí a outra mostrou o jornal. É aquele tipo de coisa que é raro, mas sempre acontece, principalmente para quem se chama João da Silva, por exemplo. As duas olhavam para a página onde estava escrito "CONVITE PARA ENTERRO. A família de...".

Súbito, as duas se abraçaram, num uivo grosso, uma emocionada, a outra apavorada. Olhei a porta entreaberta da casa da vizinha, esbugalhado: "O que está acontecendo, mas que raios?". Não resisti, e arrisquei: "Quem morreu?".

Aí elas me explicaram tudo. Mas o mais engraçado estava por vir. Horas depois, um distante parente de Florianópolis queria saber quando era o enterro, aos prantos. Ligava para todo mundo, já que ninguém tinha o telefone da dona Margarete. No dia seguinte, familiares de São Borja já preparavam a viagem (ela não falava com eles há anos). Passou-se dois, três dias. Hirta, a vizinha tentava desmentir a desdita para todos, mas já era tarde. Era tanto conhecido para convencer, que ele capitulou. Disse: "Já sei. Vou à missa de Sétimo Dia, e explico tudo!". A outra apoiou a amiga, nesta hora “difícil”. Acontece.


Dias depois, mais pêsames: da gerente do spa, do oculista e do pediatra do filho. E ela contava os viúvos: o amigo do primo, o rapazote dos tempos dos bailes da Reitoria, os colegas do curso de Belas Artes, que debandaram para o Rio de Janeiro. Amigos de parentes que moravam no Espírito Santo, a secular tia de Minas e a tia-avó, de Santa Maria. A notícia se espalhava com lenta velocidade. Todos mugiam, compungidos de dor:

— Como, mas como ela pôde morrer? Me deixar assim, sem nem ao menos me dizer adeus? Nós, que éramos tão amigas, tão unidas, meu Deus, que jogamos bingo juntas, no verão passado! Ela ia tão bem, tão disposta e cheia de vida, Deus meu!

E com o pensamento distante, como se buscasse entender o que estava acontecendo:

— E ela me confidenciava que ia comprar um apartamento na Cavalhada com o dinheiro que tava prá receber, do Governo!

No dia do enterro, um costureiro amigo dela foi ao velório. Era um magrão e cabeludo, parecido com. Pois o cara chegou completamente bêbado, visivelmente fora da casinha, vestindo um pulôver de gola rolê e com o pescoço enrolado numa echarpe cor-de-rosa aos berros (ele é muito espalhafatoso. Assim são os cabelereiros). Entrou numa das câmaras do Cemitério, e cavalgou de desespero em cima do caixão, aos berros:

— Que vá tudo para a puta que pariu! Essa vida é uma merda, mesmo! Margarete, minha querida, tu não podes ter morrido assim! Ai! Me larguem! AAAAAAi! Laaarguem! Ai!

Um senhor lhe explicou, muito constrangido:

— Meu senhor — interpela com voz sumida, ao colocar a mão no braço do rapaz inconsolável, como se precisasse um esforço hercúleo para proferir palavra numa hora daquelas — Aqui é o enterro de um menino. Quem sabe o senhor não tenta na outra capela?

As notícias chegavam, numa velocidade esmagadora! O primo espírita dela, o Serginho Borboleta (saudoso Borboleta, por onde anda aquele santo senhor do Ateneu?), disse que já havia contatado com ela no plano astral. Disse: "Ela está muito bem, lá no Céu, com a santa paz de Deus". A dona Margarete não sabia onde se meter. "Eu falei com ela do além. Está tudo bem, lá". Depois, disse que ela sempre foi uma santa, etc e tal. Que agora, depois de tantos argúrios por este vale de lágrimas, ela iria descansar em paz. A bisneta foi consolada, dizendo que sua “bisa Marga” agora era um estrela, que ia tricotar para Deus lá no Céu, etc, etc, etc.

No Sétimo Dia, ela tomou coragem — teve que ser convencida pela outra vizinha, pela vendedora de Avon do 512, a costureira do bairro e pelo zelador - e foi à sua missa...
Sugeri que fosse com algodão nas narinas, para "dar mais realismo à cena". Quase fui apedrejado, como uma adúltera bíblica. Entrou na Igreja. Lá dentro, familiares, amigos, parentes distantes, todos (os que não sabiam) e os parentes da verdadeira Margarete, reunidos. Um padre que suspirava por ela desde os tempos do catecismo, compareceu. Coitado, morria de amores ao vê-la a tocar “Manhã de Carnaval” no violão, lá em Cidreira, e ele, um padre. Todos sabiam que ele amava a defunta, em sua plena juventude, quando ela se parecia com uma Anita Eckberg (em tempo: faz tempo). Era um longo e cristão amor antigo e docemente platônico, no seu enlevo de celibatário apaixonado. A missa estava cheia. Gente de toda a parte. Na verdade, já estava antes. Foi enchendo, enchendo. Parece que ia ter ainda um casamento, depois.
Tinha gente até no lustre — como dizia o profeta. Eis que, inesperadamente ela se insurge no meio dos bancos, e grita, entre confusa, aturdida e emocionada:

— Gente, gente, eu não morri, eu não morri, eu estou aqui! Foi um engano! O nome era igual, mas eu....

Foi uma debandada geral. Um medo pânico se instaurou naquela casa santa. O estouro da boiada dos pobres presentes, que pareciam se deparar com o Gasparzinho ou coisa parecida. Mulheres sapateavam em surto histérico, como bailarinas flamencas. O padre se jogou dentro do confessionário, como se visse o próprio Judas. Coroinhas corriam em todas as direções, como se fosse uma visão do diacho. Uns não entendiam nada, nada.


— Mas que porra tá havendo??— berrou uma velhinha, coçando a cabeça, entre intrigada e divertida.

Senhoras cavalgavam de horror nos bancos. Diante do pânico, um menino saiu correndo, tropeçando em tudo: “é a loira do banheiro, é a loira do banheiro, é a loira do banheiro!’. Dona Arlinda, coitada, urinou-se. Outros tropeçavam em tudo o que viam — santeiros, freiras, mesas (um se jogou de bico na pia batismal), pilares. Um horror apocalíptico.

Isso ela me contava, com um sorriso amarelo. "Você ainda ri, seu sem-vergonha?", perguntou. Eu disse: "E você queria afinal que eu fizesse o quê, você deveria Ter explicado antes, né. E olha só, além do mais, a senhora está aí, viva e chutando!". Enquanto ouvia, ela dava um suspiro e carinha de “eu mereço!”. E fui embora. Antes de sair, ela se lembra: me segura pelo braço, e segreda: "Olha aqui, Marcelo, não conte isso prá ninguém, prá ninguém, hein, menino, senão eu vou morrer de vergonha! Vão pensar que eu sou maluca". Sem escolha, fiz o juramento, colocando a minha mão esquerda sobre uma Bíblia imaginária, e bradei:


— Dou minha palavra.

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