Friday, November 27, 2015

Bonfim de Ponta a Ponta


Cartaz do documentário "Filme Sobre um Bom Fim"


Antes de assistir ao "Filme Sobre um Bom Fim" eu havia lido o Esquina Maldita (1), do Paulo César Teixeira duas vezes. Por coincidência, após a primeira sessão do documentário na Sala redenção, na noite terça passada, fui coincidentemente apresentado à uma das entrevistadas da película, a Polaca, plena Lancheria do Parque. No meio da conversa, perguntei se ela havia lido o livro, e ela respondeu que não.

Pois desse encontro que eu resolvi juntar as duas pontas. A despeito de ter sido lançado há pouco mais de três anos, a obra do Paulo César — que é um dos primeiros depoimentos do filme, perfeitamente ambientado numa das mesas do Marius ainda é pouco conhecida. Minha impressão é justamente a de que o filme parece começar quando o livro termina.

Teixeira praticamente fez um belo documentário sobre a cena cultural que ocorreu no Bonfim a partir da Esquina Maldita. Aquela cena surgiu no final dos anos 60, na esquina das ruas Sarmento Leite e Qswaldo Aranha justamente porque, naquele tempo, todos os cursos de Humanas da UFRGS ficavam no Campus Centro.

Por causa disso, todo o movimento jovem culturalmente engajado passava pelos bares da região. Aquela foi a primeira cena "jovem" daquela região, porém antes do túnel — pegando o mote de um (também pouco difundido) livro do Juremir Machado da Silva que tenta, como eu aqui, juntar as pontas do Bonfim (2).

O Esquina Maldita trata primeiro da forma, o surgimento de bares como o Alaska e o Copa 70 para, num segundo momento, lidar com o conteúdo, os personagens daqueles dias políticos, suas histórias e seus dramas. Na verdade, ao contrário do que foi o movimento oitocentista, o Bonfim da Esquina Maldita tem os seus momentos de idealismo, mas é uma história triste.

Naquele momento, nasciam os festivais universitários de música e de teatro e os primeiros movimentos políticos estudantis na capital. Porém, o clima de repressão era cada vez maior. A polícia dava batidas surpresa nos bares da esquina. Se havia um clima de liberação sexual ali, ele era restrito. Como se sabe, era impensável, no começo dos anos 70, uma aglomeração de pessoas como as que eram comuns no Escaler, quinze anos depois.

Fora que muitos dos que romperam com o PCB e realmente partiram para a luta armada, não voltariam. No livro, vemos inúmeras histórias políticas daqueles que acreditavam, como ocorrera em Cura, era possível derrubar o regime através de guerra de guerrilhas. em pouco tempo, aquela esperança e aquela utopia transformou a Esquina numa espécie de reduto do desbunde porto-alegrense.

Assim como vemos no documentário do Boca Migotto, existia uma resistência à repressão. Porém, ali, ela não era apenas política, mas cultural também. O provincianismo e o bairrismo, que são questionados pelas vozes do documentário, nos anos 70, faziam as regras. O livro do Paulo César Teixeira consegue captar esses momentos felizes em que aquela juventude, à sua maneira e mesmo sendo cerceada em todos os campos, estava plantando muito do que vemos hoje, nos movimentos pelos Direitos Civis — e isso explica a atualidade de um ícone da Esquina, a Nêga Lu que, não gratuitamente, ganhou uma biografia este ano, publicada pelo mesmo Teixeira.

O provincianismo e a ditadura cultural dos anos 70 era forte o suficiente para explicar aquilo que não aconteceu ali, mas que foi florescer e explodir com toda a força "depois do túnel" (da Conceição, da construção da elevada e geograficamente também), a partir do show Deu Pra Ti, de Nei Lisboa e do Augusto Licks (1979), que desaguaria na produção cinematográfica do Giba Assis Brasil e do Nelson Nadotti.

Aliás, o leitmotiv tanto do filme quanto do documentário é, justamente, aquele traveling que junta as duas pontas do Bonfim, da Sarmento até o Trianon. O meio do caminho é justamente o Ocidente que, por sinal, é quase que o elo que une as duas pontas do Bonfim.

A Esquina Maldita teve a sua história resgatada mas, se houve um saldo positivo, foi o de abrir caminho para os anos 80. Antes do túnel, muita coisa ficou represada. Os espaços culturais eram, praticamente, espaços de resistência. Se houve um elemento que desse forma àquele substrato cultural setentista, ele foi a resistência. Com a abertura política, esse elemento latente da Esquina, aos poucos saiu do gueto e foi situar-se à esquerda do espectro ideológico partidário. Contudo, o seu palco, agora era outro.

A cena havia mudado. Talvez isso explique por que o movimento oitentista no Bonfim foi, com efeito, um movimento estético. pelo menos, pegando como eixo o documentário, houve o surgimento de um sem número de espaços culturais. A prática de fazer cultura, a explosão do rock como um fenômeno de massa (e não como coisa de magro trique-trique rolimã e tomador de panca dos 70), o surgimento das emissoras de rádio em frequência modulada (a Bandeirantes FM e, depois a Ipanema) criaram o palco natural para que todo esse movimento surgisse.

Agora, o Bonfim, pelo menos por uma década, deixou de ser um gueto (com os negros e com os judeus primeiramente, depois com os estudantes da esquina Maldita) para tornar-se uma arena cultural. O fim da ditadura viabilizaria as aglomerações de público; as novas tecnologias (3), como o vídeo, permitiram que as pessoas tivessem acesso ao que vinha de fora. As FMs, por sua vez, iriam tribalizar esse público. Como diz o Egisto a folhas tantas, no documentário: o Bonfim não era mais o bairro dos seus moradores, mas um catalisador de todos aqueles que sintonizavam com essas boas vibrações.

No meio do filme, aparece Claudinho Pereira lendo o seu livro de memórias (4). Ali ele cita, para lá de en passant, algo que passou quase batido: o Fedor. Ou Shitink, ou Serafim, o estabelecimento tem um subcapítulo de outro livro (5) do Juremir (que é uma das vozes do documentário) e é uma das histórias que limitaram-se a rasantes no filme do Boca Migotto. Aliás, a autobiografia do Claudinho conta uma história curiosa: havia um acordo "logístico" entre o Fedor e o Zé do Passaporte (outro que passou batido) para que o primeiro só vendesse bebidas, o segundo lanches; dessa forma, um não entrava no negócio do outro e, de quebra, se complementavam: você bebia até cair no Serafim, e depois ia matar a larica no Zé...

O Serafim pegou fogo e virou aquele prédio (da esquina da Fernandes com Oswaldo) da matéria de arquivo do Peninha no Prá Começo de Conversa. A versão oficial é a de que a causa do sinistro foi o forno de uma pizzaria, que ficava nos fundos do Fedor. A não-oficial, amplamente difundida pelo saudoso Sampaulo, é a de que uma empada do Serafim explodiu, em pleno balcão. Dentro muitos ex-frequentadores (entre eles, Moacyr Scliar), essa era a causa mais provável.

Mas a repressão também batia no outro lado do túnel: o Fedor também também tinha problemas com a polícia, tanto pela venda de drogas nos arredores quanto ao carteado do Fluminense, clube que ficava no andar de cima do estabelecimento — e que também virou cinzas.

O livro Noite dos Cabarés tem a ver com o eixo "boêmio" do filme, e que salta aos olhos aos espectadores de hoje e que, naturalmente, não vivenciaram o que foi o Bonfim dos anos 80. Do Lola (João Telles) até a Fernandes, havia, contando o Mercado, pelo menos sete botecos. Isso sem contar o Escaler e os que nasciam e desapareciam à roda do HPS e do Maomé. Porém, no novo contexto da pós-modernidade, segundo Juremir, aquela discussão política bizantina dos tempos da Esquina transformou-se em hedonismo puro ou, usando um eufemismo eficiente, mero papo de boteco.

Os freaks bebem e dormem nas calçadas. Sentados nos degraus, consomem Valium e exibem sua miséria. No Bar João, eles lembram Janis Joplin e dizem que "toda política é suja". Bebem cachaça e execram os grupos que os sucederam. Tido como local de violência, o Bonfim não pode escondê-la. Mas luta para evitar a neurose da classe média. Sua guerra, antes de tudo, é visual(p.73).

O livro, no entanto, entra num eixo naturalmente não explorado pelo documentário que é, de certa formam, um corte antropológico na tipologia e análise das diversas tribos que compunham as tribos jovens do Bonfim. Intelectuais modernos na Lancheria, new romantics e a boemia bem vestida no Ocidente, freaks e rockers no João e pela Oswaldo afora. De certa forma, houve a mudança, da primeira geração, compulsoriamente reprimida e desbundada até talvez por falta de opção pelas saturnais a céu aberto do que foi os anos Berlim-Bonfim da segunda metade dos anos 80.

O fim daquilo, de certa forma, pode ser explicado por uma certa estagnação daquela ciclo. Tudo aquilo estava ligado ao contexto da abertura democrática e, com o tempo, deixou de ser novidade. O que é possível vislumbrar em perspectiva é, pegando as duas pontas da Oswaldo, como um travelling histórico um pouco maior do que o da abertura do Deu Prá Ti. A Esquina Maldita, por seu turno, foi o princípio de algo que estava manifesto e que evoluiu num tempo e espaço. Uma das leituras possíveis dentro do espectro do tema — que foi tratado de forma sublime no documentário.

É possível contestar a validade daquele movimento. De repente, todos estavam fazendo história, e não sabiam; ou, por outra, achavam que estavam escrevendo a sua trajetória para a eternidade, e que eram apenas uma versão farofa e terceiro mundista da Rive Gauche ou do Village, como disse o Peninha. na verdade, isso é o que menos importa aqui.

O que interessa é que essa história aconteceu. Hoje, ao desavisado e maravilhado espectador do "Filme Sobre um Bom Fim", pode parecer inacreditável que a região entre o Araújo Vianna e a volta do Mercado do bairro lotasse de gente até no lustre (na ponta de cá do Bonfim) — da mesma forma que uma malfadada utopia estudantil e meninória (como diria o Carlos Reverbel) existiu na Esquina Maldita (na ponta de lá). Talvez a mais acachapante das tantas belas imagens do documentário seja a do areal da frente do Escaler (hoje uma cafeteria, como os arautos da lei e da ordem preferiram) apinhado de gente, num domingo de tarde — aquilo aconteceu em Porto Alegre.




(1) Esquina Maldita. Libretos, 2012.
(2) Antes do Túnel - uma História Pessoal do Bom Fim. Editora da Cidade, 2007.
(3) Mauro Borba, Prezados Ouvintes. Artes e Ofícios, 1996. ele cita, no livro, exemplos como home vídeos com shows do Cure — numa época em que não existia Youtube e poucos possuíam vídeo-cassetes. Fora o sem- número de casos em que tanto lançamentos internacionais como as da Vanguarda Paulistana chegavam á Porto Alegre através de fitas-cassete, então ainda difíceis de se conseguir
(4) Na Ponta da Agulha. Editora da Cidade, 2012.
(5) A Noite dos Cabarés, Mercado Aberto, 1991.

Thursday, November 26, 2015

O Sobrado em Transe


Erico Verissimo



No último dia 18, a Associação Cultural Acervo Literário de Erico Verissimo desenvolveu o seminário “O Sobrado em O Tempo e o Vento: ascensão e queda dos Terra Cambará”. A atividade contemplava uma palestra com três professores (e membros da ALEV), Maria da Glória Bordini, Márcia Ivana e Antônio Sanseverino (todos das Letras da UFRGS) a respeito do papel do Sobrado em O Tempo e o Vento (1949) (1).

A proposta é bem interessante, pois possibilita uma leitura ampla da obra-prima do escritor cruzaltense — além daquilo que foi mitificado pelas releituras que o livro sofreu (não sei se é a palavra certa) nos últimos sessenta anos. Releituras, estas, que não permitem, de certa forma, que se entenda a proposta de Erico em sua trilogia.

A leitura que os três realizam tem como perspectiva o Sobrado do ponto de vista da "consolidação do poder dos Terra Cambará e de sua decadência, como microcosmo da constituição da territorialidade do Rio Grande do Sul – de início amparada nas virtudes tradicionais da honra e da bravura e depois corroída pela ambição e corrupção de seus próceres".

O que parece — aos desavisados! — muitas vezes uma obra de exaltação à bravura e à história rio-grandenses, no ponto de vista da formação do Continente na figura de uma certa família Terra-Cambará, o que há mesmo é esse movimento de ascensão e queda, onde muitas vezes a adaptação só dá conta de uma parte que, falsamente, acaba valendo pelo todo. Como não existe um proêmio e uma musa para que o vate possa delimitar o tema, essas adaptações caem no equívoco fácil da simplificação e da mitificação.


O que vou ensejar aqui é o resultado das minhas leituras do livro mais as opiniões do seminário, naturalmente amparado aqui e ali com alguma matriz bibliográfica.

O que Erico apresenta, num quadro geral, aquém e além de adaptações (e daquilo que as pessoas em geral acabam depreendendo como o fulcro do O Tempo e o Vento) é uma contínua dualidade, contradição e ambiguidade moral no âmago dos protagonistas. Pedro Missioneiro é oprimido, luta por sua liberdade mas a sua violência é igual à daqueles a quem busca sobrepujar. Essa violência, como diz a Maria da Glória Bordini, os insere no quadro do poder que, de 1745 a 1895, está na mão de caudilhos que, com mão de ferro, controlam a peonada. Essa é, de certa forma, a matriz que irá explicar todo o processo político no Rio Grande (e no Prata) nos próximos duzentos anos.

O Continente

Nessa perspectiva dual, vemos que os personagens têm o seu respectivo fundo falso. O tão decantado Capitão Rodrigo luta pela liberdade no plano político mas, no pessoal, não é tão digno de simpatia; Bolívar é incapaz de defender um escravo amigo seu. A culpa o corrói a alma, ao mesmo tempo em que é dominado pela mãe (Bibiana) que, por sua vez, faz de tudo para destruir a nora, e vice-versa.

No segundo tomo de O Continente, Bibiana lembra vagamente a Cremilde do segundo tomo de A Canção dos Nibelungos (3). De personagem secundária, a heroína de Erico torna-se a protagonista de uma vingança tanto àqueles que mataram seu esposo quanto à Luzia. O primeiro passo da fria e calculista megera Bibiana foi casar seu filho com a herdeira do Sobrado de Agnaldo Silva. este, por sua vez, havia tomado as terras de Pedro Terra por dívidas, acabrunhando o velho e matando-o. Ora, logo, as terras do Sobrado eram dela.

O segundo passo da Cremilda de Santa Fé é, pois, impedir a qualquer custo que Luzia case-se novamente e tira o jovem Licurgo de suas mãos. Nisso, inicia-se um tenso jogo psicológico entre sogra e nora. Nessa guerra (título ambíguo do capítulo, que se refere também à Guerra do Paraguai) é difícil torcer para qualquer uma das duas. Para ficar com o neto do Capitão, elas dissimulam e disputam o jogo mais baixo possível.

Vence Bibiana, vence o Sobrado. Agora, contemplamos a formação de Licurgo como uma segunda geração de caudilhos: aqueles que vão instrumentalizar-se pelo poder político à moda moderna, "iluminista", semi-ilustrada (ainda para esses cantões do continente), à medida em que o republicanismo se insurge no Estado. Torna-se positivista e castilhista. Luta pela liberdade (como seu avô) e, como seu avô, entrega-se às suas ambiguidades morais. Afinal, ele tem uma amásia lá pelos lados do Angico (a estância dos Cambará) e, com o tempo, toda a cidade sabe — inclusive sua esposa, Alice.


Nessa perspectiva de asenção e queda, como se vê, nos episódios familiares dos Terra-Cambará, é quase como se na gênese dessa construção da realidade estivesse a sua própria ruína: nos subcapítulos do Sobrado, vemos o poder de Licurgo sendo contestado, como um Agamênon gaúcho, diante de sua prima, Maria Valéria, que demonstra ter mais brios do que muitos ordenanças do neto de Bibiana. Em meio ao sítio ao Sobrado, ele mal consegue administrar a famélica situação dos seus comandados, todos perdidos e entrincheirados dentro da mansão, cercada por maragatos sob o comendo dos amarais, seus vetustos inimigos políticos.


O Retrato

Em O Retrato (1951), vemos um exemplo singular dessa ambiguidade moral dos Cambará, agora cifrado na imagem de Rodrigo Cambará. Filho de Licurgo, ele é o caudilho moderno, da geração de Oswaldo Aranha, de Getúlio Vargas e de Flores da Cunha. Doutor, ilustrado, francófano, sua personalidade é delineada pelo povo de Santa Fé no capítulo que abre o segundo livro da trilogia, "Rosa-dos-Ventos". Todos t~em uma opinião a respeito de Rodrigo. Muitas são as vozes, muitas são as sentenças: entre elas, ele é um canalha, um malfeitor, ele é um benfeitor, um homem honrado e um político dissoluto e um putanheiro.

A partir dali, o livro divide-se em duas partes principais — "Chantecler" e "A Sombra do Anjo" — que mostram a trajetória do protagonista, desde a sua caracterização de jovem doutor, dândi, o seu engajamento e desejo do mudar o poder político local contra a repressão borgista em Santa Fé até a grande tragédia de sua vida. Depois de "fazer mal" a uma jovem violonista (Toni Weber) de uma trupe mambembe, ela comete suicídio — ao mesmo tempo que a morte coincide (e, de certas forma, é abafado) com o assassinato de Pinheiro Machado, em setembro de 1915.

Refugiado no Angico, Rodrigo corrói-se em culpa. Sua dor é verdadeira. Porém, não sabemos se ela é suficiente para expiar sua culpa. Até porque, veremos adiante que mesmo que Rodrigo tenha empatia e consciência suficientes paras analisar o que ele fez, isso vai acabar tonando-se uma constante em sua vida pessoal e política. O filho de Licurgo (ao contrário deste que, por sua vez, não guardamos qualquer simpatia) encarnará essa dualidade entre a revérie e a culpa abissal em vários episódios de sua vida.


O Arquipélago


O último capítulo de O Retrato, "Uma Vela para o Negrinho", é uma antecipação ao Arquipélago (1962), da mesma maneira como o primeiro (Rosa-dos-Ventos) é uma espécie de prolepse do livro seguinte. Nele vemos Floriano Cambará, filho de Rodrigo, que mal conhecemos, cantando a sua ária de apresentação. Ele reaparecerá adulto, nos capítulos "Reunião de Família" e como um jovem em formação nos capítulos que, à moda de O Continente, servem de flashbacks dos episódios de família de O Arquipélago (1962).

Rodrigo Cambará, filho de um ex-castilhista, luta pelo poder em Santa Fé. Mesmo anti-borgista, é melindrado pelo senador Pinheiro Machado com vistas à uma possível deputação pelo PRR em nível estadual. Mesmo contra Hermes e Pinheiro, após a morte deste, envereda-se pela política justamente pelo partido de Borges. A oposição era ainda muito liliputiana e, além do mais, era toda ela maragata. Isso seria de um problema intransponível à Licurgo que, por seu turno, jamais pensaria que, um dia, ele iria cair nessa esparrela e ter algo com comum com seus antípodas federalistas: ser inimigo de Borges.

Quando estoura a Revolução de 23, Rodrigo e seu irmão (e, meio a contragosto, seu pai) bandeiam-se para o lado dos rebeldes. Verissimo sempre foi discreto em cenas de guerra em O Tempo e o Vento mas, no capítulo "Lenço Encarnado", ele dá contornos épicos à bazófia que se instaurou na Campanha gaúcha, onde os veteranos maragatos queriam agora a intervenção federal contra os desmandos de Borges. Vem o fim da guerra, Toríbio parte com a Coluna.

Os subcapítulos "Reunião de Família" aludem ao tempo presente na narração de O Arquipélago, entremeando os capítulos do livro, da mesma forma como "O Sobrado" têm o mesmo papel em O Continente. Além da similitude com a forma, Erico mostra um outro problema familiar: se em "O Sobrado", vemos o grupo familiar em transe, porém todos como que impostos pela mão mítica e terrível de Licurgo, em "Reunião de Família" nós encontramos Rodrigo no fim da vida, em meio a uma crise cardíaca, tentando unir in extremis aquela família agora diluída e dividida. Ao contrário de Licurgo, o gongo não irá salvá-lo. O destino escapa à suas mãos.

O poder que nosso herói tem agora, tanto no plano político quanto familiar é fictício, quase uma mera delegação. Ele tem, com efeito, a procuração da experiência da vida. Por mais execrável que seja ou possa parecer, Rodrigo quer manter a família unida, mais do que tudo. Nisso, pelo menos ele dá a entender, o decano dos Terra-Cambarás é sincero.

No entanto, como vemos, na sucessão de episódios, desde 23, Rodrigo é um poço de contradições. Devastado agora pela morte da filha, Alicinha, não quer mais clinicar. Quando não sabe mais o que fazer da vida, se insurge a Aliança Liberal. Logo, filia-se às primeiras fileiras junto com Vargas (de quem, a princípio, considera um pusilânime no meio do movimento) e Oswaldo Aranha. Com a Revolução de 30, Rodrigo parte às cegas para a aventura dos gaúchos na Capital Federal.

Nisso decorrerá uma ruptura de Rodrigo com seu irmão, Toríbio. Este, apesar de ser um apolítico, é lúcido o suficiente para saber dos desmandos do governo Vargas. Mais tarde, às vésperas do golpe de 37, em plena noite de Ano Novo ("Noite de Ano Bom"), acusa o irmão de ser um comensal do Presidente, um chefete plenipotenciário de araque com fumos de cacique político, mas apenas um cambão de Getúlio, como tantos outros, e que foi para o Rio viver das benesses do poder e ficar rico às custas de um cartório, e viver a vida no café society do Cassino da Urca. Em dezembro daquele ano, Rodrigo tenta, de todas as formas e argumentos, justificar o Estado Novo.

Toríbio, como um Aquiles, briga feio com seu irmão, manda o Ano Novo às favas e arrasta Floriano para um cabaré. Este, por sua vez, seria testemunha da morte insólita do tio, perplexamente esfaqueado por um garoto no meio da festa. Morreu só sem tempo para poder reconciliar-se com Rodrigo.


Alguém falou em Floriano? Pois ele aparece, lá no final de O Retrato para ser caracterizado plenamente apenas a partir de O Arquipélago. Agora, temos uma quarta geração dos Cambará que, na figura dele, contesta o poder do pai (como não poderia deixar de ser) ao mesmo tempo que, à sombra dele, tenta juntar todos os pedaços de vida mal resolvidos: sua relação com o pai e com os irmãos, seu amor por Sílvia, uma enteada da família que acabaria por casar-se com Jango, irmão mais novo de Floriano).


Encruzilhada



Floriano é o jovem que vê o Sobrado, busca entender a essência dele, a história da sua família. Ele é quem tenta, como Édipo, ser o detetive de si mesmo, e de tudo o que se passa por ali. Para tanto, ele tem o seu Tirésias (pegando impiedosamente o mote da professora Márcia Ivana no seminário), que é Roque Bandeira. Talvez os melhores momentos de O Arquipélago estejam com eles. Como dois filósofos peripatéticos, eles parecem ser a consciência apolíneo-dionisíaca na história. Num plano, eles analisam a própria situação a respeito daquilo que os acerca. Por outro, Bandeira, mais conhecido como o Tio Bicho) desempenha esse papel de profeta, ou melhor, de preceptor, diante de Floriano que, pegando o mote de Érico, está nessa encruzilhada.

Tio Bicho é aquele que vai empreender a maiêutica sobre Floriano. De certa forma, nesse plano, é como se, ao mesmo tempo em que O Arquipélago é um desdobramento e conclusão da personalidade de Rodrigo, ele também pode funcionar como um romance de formação de Floriano, questionando-se como escritor, como filho, como irmão. Essa aventura ele empreende no embate com seus iguais, sempre entremeados pela análise ferina de Bandeira, quase um personagem queirosiano.

É no momento em que ele encerra o diálogo com Tio Bicho é que Floriano já está prestes a fazer um "ajuste de contas" com Rodrigo. O pai, entrevado, à beira da morte, o filho, o procura, como se lhe questionasse, como se lhe pedisse conselho, como se lhe pedisse perdão. No fim, ambos saem engrandecidos desse encontro. Tio Bicho pode partir, pois já desempenhou seu papel 'pedagógico'. Rodrigo já pode morrer, pois está em paz com todos os traumas e mal-entendidos com Floriano — seu filho mais velho e o mais parecido com ele.

Floriano está preparado? Poderíamos dizer que, analisando sob essa perspectiva de ascensão e queda, o que existe de contraditório do ponto de vista de gerações é que, do começo até o fim, é como se o clã dos Terra-Cambará vivesse essa dualidade e essa contradição intestina através dos tempos por carência de uma consciência, de uma empatia, de uma visão existencial que seus descendentes, por algum motivo, não possuíam, e isso serviria como uma maldição. Assim como Sílvia, no capítulo "Diário de Sílvia", onde ela ganha a primeira pessoa para colocar-se numa posição onde, pela primeira vez na trilogia, uma mulher do clã parece ganhar voz própria.

Da mesma forma, Floriano "obtém" essa voz própria. A análise com Tio Bicho e o último diálogo com Rodrigo foram catárticos para ele. Ele e Sílvia, por conseguinte, são os descendentes do clã que libertam-se dessa "maldição", assumem juntos — cada um a sua maneira — a sua voz própria e, como Electra e Orestes, libertam Santa Fé da maldição dos Atridas.

Por isso, Floriano está preparado. No final no livro, nas últimas linhas, ele entra na mansão dos Cambará às escuras, plena madrugada. Caminha pé ante pé e diz: "o Sobrado está vivo!". Sobe até a água-furtada, coloca o papel na máquina de escrever e começa: "era uma noite de lua cheia, as estrelas cintilavam, sobre a cidade de Santa Fé..."




(1) Érico Verissimo, O Tempo e o Vento. Globo, 1949/76.
(2) Maria da Glória Bordini,Regina Zilberman. O tempo e o vento: história, invenção e metamorfose. EDIPUCRS, 2003.
(3) Anônimo. A Canção dos Nibelungos; Colação Ghandara, Martins Fontes, 1996. Na história, Cremilda é mulher de Sigfried e este é morto por traição por Hagen, vassalo de Brunilda. Após a morte de Sigfried, Cremilda tenta reaver o tesouro perdido e assassinar todos os responsáveis pela morte de seu esposo.

Saturday, November 21, 2015

Querida mamãe



Eu sei que você nem vai ler essas palavras. Já estou imaginando a senhora jogando essa carta no chão, e pisoteando ela como se fosse um inseto repelente, depois catando ela, rasgando em pedacinhos e comendo ela. Mas eu sei que, depois, a senhora vai voltar a si, vai catar os pedaços, colar com durex e ler o que eu quero lhe dizer. Mamãe, mamãe, não chore, a vida é assim mesmo, eu fui-me embora. O que mais eu posso lhe dizer, se eu fui-me embora? Eu sei que a senhora já abriu um berreiro por aí. Falou que é teoria da conspiração, que vovô é um velho safado e é ele quem está por trás de toda essa história, que ele não respeita nada, e que acha que tem sempre a razão, e quem devia estar acorrentado numa pedreira com o fígado de janta de abutres era ele. Mas não é verdade, mamãe. A culpa não é dele e nem de ninguém. A culpa é toda minha. Aliás, a culpa não é minha, porque eu não tenho culpa nenhuma. Eu fiz apenas o que eu quis. Não é verdade o que andam dizendo por aí. Eu não fui forçada a nada. Foi o meu coração quem me disse. Se eu não fosse sua filha, eu iria dizer: me esqueça, me esqueça, porque vai ser melhor prá você. Você não tem a menor ideia de quanto esse amor materno me tolhe, me incomoda, como isso me sufoca! As mães não são felizes. Não sei quem foi quem disse isso, mas a verdade é vocês nunca serão felizes enquanto não resolverem esse amor que devora pelos filhos, um amor que não deixa vocês em paz, não nos deixa em paz, não te deixa em paz e não me deixa em paz! Mas é lógico que eu não posso dizer isso prá você, porque eu sou sua filha e porque eu amo você e porque eu também tenho saudades de você, mamãe. Eu tenho saudades da forma como você gostava de mim. Acredite, eu também estou chorando, aqui. Desculpe. Do jeito que vocês contam a minha história, parece que eu sou a vilã da história, uma réproba, uma desalmada, a ovelha negra da família. Mamãe, acorda, você tem que desconstruir esse paradigma. Eu sei que dói em você, porque dói em mim também. Mas essas coisas já estavam no colo dos deuses. Isso já estava escrito. Um dia, os filhos crescem e partem da casa dos pais. No fim das contas, passam as estações, a gente cresce e depois vira o pai e mãe de gente mesmo e vocês é que regridem, vocês viram as crianças. É engraçado como, no fim das contas, os filhos viram os pais dos pais. A mana Tritogênia disse que a senhora não sai de dentro de casa, fica trancada no quarto o dia inteiro, não cuida mais dos afazeres de casa, que a senhor nem se cuida mais. mamãe, você tem uma reputação! O mundo espera pela senhora. E eu falo assim porque eu conheço a senhora de outros carnavais, digo, de outras saturnais. Mamãe, mais dia, menos dia, a senhora vai ter que encarar a realidade, vai sair do seu quarto, vai sair do seu orgulho, vai sair dessa sua birrinha aí e ver a bagunça que a senhora deixou, que a senhor tem responsabilidades e que a gente tem muita vida para viver. Pare com esse mimimi. Eu não tinha dedos para dirigir-me à senhora depois de tudo, mas parece que vejo a senhora diante de mim. Eu prometo que, se as coisas mudarem, eu passo as férias de verão aí com a senhora. Então as coisas serão como nos velhos tempos. E a gente vai ver que a espera valeu a pena e, no fim, não doeu nada, não é, mamãe? Não se preocupe. Se as coisas parecem estar de cabeça para baixo, é porque a nossa história ainda não chegou ao fim. Não é isso o que a senhora sempre me dizia? O melhor ainda está por vir.
Beijos da sua eterna

Perséfone

Saturday, November 07, 2015

Kafka e o Narrador falso 9


Kafka


A Metamorfose, do Franz Kafka, tá fazendo 100 anos. Kafka me lembra do meu primeiro semestre na faculdade. O professor de Língua Portuguesa era o Tatata Pimentel, e ele mandou a gente fazer uma resenha do livro.

Primeiro semestre era uma loucura. A maior peça que pregaram na gente não foi trote de bixo, mas foi a perda da inocência de deixar o Ensino Médio e cair no colo da vida acadêmica.

O Tatata estava acostumado certamente com a nova leva de aprendizes que apareciam todo semestre. Como quase sempre, as turmas noturnas na Famecos eram egressas de supletivos. Assim, ele nos chamava carinhosamente de "Monteiro Lobato (conhecido supletivo da cidade, para os desavisados). Por exemplo, ele escrevia no quadro-negro e, depois perguntava: "o Monteiro Lobato já copiou? Posso apagar?".

O grande trote era esse: depois de uma vida inteira perdido em apostilas de cursinho, deparar-se com Escola de Frankfurt, Saussire e coisas do tipo não eram bem aquilo que a gente queria saber. Aliás, como ocorre na maioria dos cursos de graduação, o que os alunos mais querem e passar de ano. Num começo de curso, ou você sabe o que quer da vida ou não sabe. Se não sabe, pelo menos, sabe o que não quer da vida, e aquilo não era o que a gente esperava.

Havia um professor que era da pós, e estava substituindo uma professora. Ele, naturalmente acostumado com o perfil do aluno-pesquisados do mestrado e do doutorado, não tinha lá muita paciência com bixos. O divertido é que a aula dele (analisando hoje), era uma aula de pós. Mas ele sabiamente queria incutir aos incautos calouros que aquele tempo da inocência acabou. Não tem mais redação "minhas férias". Agora, o negócio é fichar livros, citar fontes e fazer uma conta no xerox.

Da ementa de Língua Portuguesa, uma das avaliações era ler o Kafka. O Tatata ainda exigiu que lêssemos a edição da Brasiliense, que recém havia publicado toda a obra do escritor praguense com tradução direta do alemão feita pelo Modesto Carone. A gente naturalmente não entendia muito o porquê dessa exigência. Era uma questão típica de Literatura Comparada. Como era comum, muitas traduções brasileiras eram "retraduções". Ou seja, a tradução de Kafka, antes, era vertida do francês, por exemplo

Parecia mero purismo, mas essas traduções canhestras (de acordo com o Tatata) transformavam "canapé" em "sofá", ao passo que, se formos pensar bem, existe uma diferença enorme entre um sofá e um canapé (nenhum dos alunos sabia o que era um canapé"). Logo, sua explicação parecia um tanto razoável. A tal tradução a que ele se referia, obviamente, deveria ser a do Syomara Cajado, que era a mais popular e fácil de achar (comprei na Feira do Livro daquele ano, por sinal).

Não me lembro em qual trecho, mas a tradução do "canapé" por "sofá" foi no Syomara Cajado. Desobedeci às ordens do Tatata e não li a versão do Carone, que iria ler muito tempo depois, já liberto dos grilhões da Famecos. A tradução dele, da Nova Época, do começo dos anos 70, era vertida do inglês, como se sabe. A do Carone, dos anos 90, foi a primeira feita direto dos originais.

De qualquer maneira, esse papo de excelência de tradução era mais para o pessoal da Literatura Comparada do que para nós, calouros "Monteiro Lobato" (eu não fiz Monteiro Lobato). (Aliás, eu achava a maior graça do apelido, muito embora notasse que muitos dos meus colegas da 389 ficassem ligeiramente irritados com isso).

No final do curso, depois que entregássemos as resenhas da novela do Kafka, o Tatata então, como nos havia prometido, iria interpretar A Metamorfose para a psicanálise e do ponto de vista da teoria marxista. Eu lembro que ele explicou, contudo, mas aquilo não impressionou ninguém. Pelo menos, a mim, o que eu não esqueci dessas aulas foi que ele disse que havia uma interpretação errônea em associar o inseto da história como "barata". Me recordo que ele salientava o tempo todo: "não é uma barata!".

Durante anos eu fiquei assombrado com isso: a barata do Kafka não era barata, era um inseto. Porém, o mistério é que isso ele não explicou.


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Até que eu li essa edição recente do Kafka que saiu pela Companhia das Letras, o Essencial Franz Kafka. O livro é uma antologia de novelas do escritor praguense, mas com o texto completo de "A Metamorfose". A tradução é, pois, a do Carone.

À guisa de introdução à centenária novela, há a transcrição de uma palestra do tradutor "contra interpretações psicanalíticas, teológicas e existencialistas".

Dois pontos interessantes na análise do Modesto me chamaram a atenção: a primeira se refere à questão do narrador no conto. A sua tese (se não estiver deturpando ela) é a de que o narrador kafkiano é singular. Ao escrever em terceira pessoa, ele parece ser onisciente. No entanto, ele não é; o narrador não vai muito além do que o próprio Gregor pode ver ou perceber, ao longo da história. Algo como se este narrador fosse como uma câmera instalada na cabeça do inseto.

Carone compara o narrador da Metamorfose com a de Dom Quixote. Este é ciente da loucura infrene do protagonista e, com efeito, faz caso dessa situação. Já o de A Metamorfose parece não estar certo do que está acontecendo: não há uma distância estética entre a confusão de Gregor e a armação daquilo que está sendo narrado. Ao contrário, o único elemento de concisão é o texto conciso, quase cartorial, de Kafka, em narrar de forma escorreita algo que parece mais um mundo mal descrito e jogado elegantemente no colo do leitor.

em outras palavras, é como se o narrador em Kafka é o falso 9. Ele falseia os fundamentos do narrador tradicional no plano da linguagem mas ele só descreve o que vê. Walter Benjamin (outra grande lembrança do primeiro semestre da Famecos) é quem iria além ao paroxismo de desenvolver uma teoria de que Kafka é o exemplo definitivo daquilo que ele explicava como o "fim da narrativa". O romance kafkiano, para ele, não sintetiza o problema da narrativa, mas é o seu mais perfeito sintoma: é uma dialética morta, uma síntese que não acontece, é a comédia humana que bateu num iceberg e afundou.

Carone explica: "é nesse passo que o leitor se sente tão impotente quanto o herói para perceber com discernimento as coordenados do mundo que ambos tateiam". O narrador é falso 9 porque é impessoal". Contudo, a confusão de Gregor é legitimada por essa impessoalidade. A ruptura acontece no fim, quando Gregor morre e o narrador permanece. Isso fez com que Kafka considerasse o final "falso" (ele chama de "ilegível", ou fora do contexto do falso 9, já que a perda da perspectiva no inseto "quebra" a unidade da narração até aquele ponto.

O outro ponto reside no fato de que Carone entende a metamorfose em dois planos. A do arrimo da família transformado em inválido e a "metamorfose" da família. Para ele, os Samsa deixam de ser os parasitas para tornarem-se auto-suficientes e autônomos. Todo esse processo está aquém da narrativa, embora Gregor, à maneira de Édipo em Sófocles (como explica Modesto Carone) já num processo de inversão, tenta relembrar e enfeixar todo o seu passado.

Todavia, ao contrário do marido-filho de Jocasta, o nosso caixeiro não consegue racionalizar os fatos da mesma maneira. Ao mesmo tempo, na mesma perspectiva de inversão, a invalidez de Gregor em A Metamorfose resulta na sua liberdade. Porém, essa liberdade acaba se metamorfoseando em problema aos olhos dos agora pró-ativos Samsa. Eles não magoavam o protagonista em serem parasitas; agora, eles não aceitam a condição inversa.

A partir dali, como diria o (terrível, mítico, românico) patriarca da família: o dilema reside em considerar Gregor como alguém da família: "nossa infelicidade é justamente até agora termos acreditado nisso". O pobre caixeiro não era mais o jovem varão da família era havia se metamorfoseado num "inseto".

Aqui chegamos àquilo que o Tatata havia falado a respeito do porquê nosso herói não deveria ser confundido com um uma barata. Kafka, como se sabe, era um conhecedor de etimologia. No original em alemão, ele desperta como um "inseto monstruoso" (ungeheures ungeziefer). Carone explica que a expressão não foi colocada ao acaso: "ungeheuer" ou "monstro", etimologicamente quer dizer, "aquilo que não é familiar, aquilo que está fora da família" e se opõe a "geheuer", aquilo que é manso, familiar. Já "ungeziefer" significa (etimologicamente) "animal impuro, ou, que não se presta ao sacrifício". Com o tempo - diz Carone, a expressão foi ressemantizada, designando animais nocivos, como a barata, em oposição aos não-nocivos, os domésticos.

Essa explicação, revela Carone, dá a matriz verbal para explicar a metamorfose do parasitado em parasita - ou daquele que se prestava ao animal servil (como um burro de carga, como Gregor era) para outro, que não "se presta mais ao sacrifício (culto ou, emfim, utilidade)". Esse animal que era servil agora é um inseto, etimologicamente falando. É por isso que Gregor é um inseto, e não uma barata.

Matei a charada, vinte anos depois.







Friday, October 09, 2015

Preclaro Amigo


Capa do livro

Esse post é, na verdade, um metapost: trata-se do blogueiro buscando vestígios para um texto a respeito do que poderíamos chamar de "Centenário do Antônio Chimango", é um poema de Ramiro Barcelos, obra literária que hoje pode ser considerada um clássico da sátira política no Brasil. Foi publicada pela primeira vez de forma clandestina, em 1915 como "poemeto campestre". Na verdade, trata-se de uma crítica mordaz e bem humorada ao presidente do estado, Borges de Medeiros.

Mesmo que seja a única obra que compôs, Barcelos (sob o pseudônimo de Amaro Juvenal), era jornalista e escritor de mão cheia. Creio que o seu legado, deixado em quase a sua totalidade em artigos e crônicas do jornal A Federação, ainda está por ser descoberto. Contudo, atribulado com sua carreira de médico e de político, acabou se dedicando apenas à literatura por ressentimento pessoal.

Aliás, Ramiro era o homem por trás da Federação, órgão do PRR, fundado por Júlio de Castilhos e Venâncio Aires em 1884, e que seria o maior jornal de seu tempo, menos pela qualidade editorial e mais pelo seu peso político. Ele era o principal colaborador da Federação - primeiro sustentáculo do antigo PRR em seu período de propaganda republicana e, depois, como órgão oficial do governo castilhista.

Barcelos assina o seu Antônio Chimango como Amaro Juvenal. Mesmo com a intenção de ser apócrifo, o "poemeto campestre" evidenciava sua íntima ligação com seu verdadeiro autor. Ainda n'A Federação, ele assinava centenas de artigos, ensaios e crônicas com esse pseudônimo.

O "Chimango" tem uma fortuna crítica imensa mas uma posteridade enxuta. Porém, parece sobreviver apenas dentro dos círculos literários da nossa província. Creio que a Regina Zilbermann não chega a citá-lo em seu clássico A Literatura No Rio Grande Do Sul. Como se não bastasse o fato de Ramiro Barcelos ser um poeta prá lá de bissexto, ainda enveredou-se pela sátira. e, como se sabe, literatura com teor satírico acaba quase sempre sendo chamada menor no reino dos céus do beletrismo.

É compreensível. Afinal de contas, todos nós conhecemos Tomás Antônio Gonzaga mais pela sua Marília de Dirceu do que pelas suas Cartas Chilenas (que, além de sátira, é uma paráfrase (paródia?)) de Montesquieu). De qualquer maneira, nosso apócrifo Amaro não buscava os pícaros azulados da fama ou a classis de scola com o seu poemeto. Muito pelo contrário: como os melhores poemas do gênero, ele queria o seu Chimango na charla das pulperias, no rés-do-chão das venetas de calçada, no calor da hora do debate político.

Em 1915, Barcelos teve a sua candidatura ao Senado negada pelo então presidente do Estado, Borges de Medeiros. Foi, possivelmente, a gota d'água: muitos outros republicanos de primeira água já haviam desembarcado do paquete castilhista do PRR. Fernando Abbott, por exemplo, saiu do partidão para, justamente, enfrentar a sua ex-situação nas eleições ao governo da província. Perdeu para Carlos Barbosa.

Do ponto-de-vista pessoal, Ramiro foi discreto. Todavia, longe do estéril turbilhão da rua, no aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego, ele escreveu a sua vingança. Um poema breve mas que, com um topete marcial, achincalhava o presidente do Estado!

Homem discreto, mais misterioso que baú de solteirona, não existem anedotas envolvendo de Borges de Medeiros. A única história que entrou para os anais foi, justamente, "Antônio Chimango". No poema, Dr. Borges é um capataz de um certo Coronal Prates (Júlio Prates de Castilhos). Com a morte deste, restou ao ordenança o comando da "estância de São Pedro". A partir dali, a tal fértil fazenda acaba virando uma charneca. Claro que, imagine o leitor, o que seria atacar um cidadão de caráter ilibado, sisudo, discreto e timorato, temido e admirado por (quase) todos?

Algo de uma insolência sem limites. Coisa que, se pensarmos bem, da forma como foi, não poderia ter vindo de um maragato. Pois foi justamente um dissidente do PRR, talvez o maior de todos, o autor do "poemeto campestre".

Como diz Augusto Meyer, na introdução à primeira edição do livro pela Globo: "é uma caricatura da vida política naquele período que traçou Ramiro Barcelos, nem poderia ser outra coisa, considerada a intenção; mas, revelados seus lados cômicos, revirando-a pelo avesso, corrigia um excesso com outro, e emendava a versão oficial ao introduzir ao coro o falsete malicioso".

À bem da verdade, começava a desgastar-se o sistema político-eleitoral que sustentava o governo viciado que campereava no Rio Grande desde o "Coronel Prates". Se Barcelos resolveu criticar os desmandos de Borges de Medeiros no Estado, a verdade é que, com o passar do tempo, o "Antônio Chimango" acabou caindo no gosto da peonada. a partir dali e até a Revolução de 23, o livro foi ganhando sucessivas reedições (à revelia de seu autor, que morreu logo depois em 1916) e tornando-se o combustível essencial para que a oposição pegasse em armas para acabar com o casuísmo que perpetuava o ordenança do Coronel Prates no governo.

Esse período foi, talvez, o de maior popularidade do "Chimango". Como explica Maria Helena Martins num ensaio definitivo sobre a obra magna de Barcelos (1) ela diz que o "reconhecimento da qualidade literária do texto coincidiu com seu esquecimento no âmbito popular, eis que o poema vai perdendo, ao longo do tempo, sua motivação política".

Isso explica (em parte) o seu paradoxo: mesmo sendo hoje considerado um clássico, o poemeto de Amaro Juvenal parece figurar à parte, quando muito citado, como tento demonstrar acima - e essa é, quem sabe, a minha tentativa frustrada de tentar entender como e o que comemorar no centenário de "Antônio Chimango", um livro tão citado e tão pouco lido?


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Na época em que era o editor (imediato, logo abaixo de Castilhos que, por sua vez, depois de presidente, preferia ficar bebendo as lágrimas de Santo Antônio em sua chácara na Glória a ter que debruçar-se sobre a papelada da burocracia que ele próprio criou para si, era quase sempre ausente na redação) d' A Federação, ele era um dos responsáveis por organizar, nas colunas do jornal, uma escala de adjetivos que dava a cotação dos políticos na bolsa partidária.

A coisa acontecia sempre de acordo com o status do político em questão. Quando estava em ascensão, o jovem era sempre chamado de "futuroso". Daí era questão de tempo para que o rapaz fosse incluído em alguma chapa de deputação estadual. Se o sujeito estivesse em vias de chegar à Câmara Federal, então era sempre chamado de "prestigioso". Agora, quando o correligionário em questão atingisse o posto de senador, aí ele (depois dele, só o Presidente!) era era agraciado com o epíteto de "preclaro". Era "preclaro" prá cá, "preclaro" prá cá. Esse era o galardão magno de um Pinheiro Machado, por exemplo, o "condestável da república".

Pinheiro Machado que foi, esse, o co-autor do "Antônio Chimango". Depois de abrir mão da candidatura à Presidência da República, ele foi o artífice da escolha do nome do Marechal Hermes da Fonseca à candidatura ao Senado - em detrimento de Ramiro Barcelos (que já havia exercido o cargo em duas ocasiões). Borges o barrou e o preclaro condestável lançou o nome do ex-presidente, este, por sinal, enfrentando uma rejeição que chegava às portas do Palácio do Conde dos Arcos, no Rio de Janeiro.

Quando se deu o rompimento entre Barcelos e Borges, nas derradeiras vezes em que foi citado, o célebre cachoeirense foi chamado de "insaciável" e "incorrigível" no texto de um telegrama, de Borges a Pinheiro. Barcelos, já sob a persona (non grata) de Amaro Juvenal, soube do conteúdo do texto, e deu a devida resposta ao preclaro amigo no seu "poemeto campestre":


Velho gaúcho - insaciável
de fazer aos mandões guerra
Nestas páginas encerra
Por um pendor invencível
Seu amor - incorrigível
Às tradições dessa terra (2).




(1) Maria Helena Martins, A Agonia do heroísmo. LPM, Porto Alegre, 1980
(2) Amaro Juvenal. Antônio Chimango, Martins Livreiro, Porto Alegre, 1978.









Saturday, September 26, 2015

Atavismos


Capa do livro


Lembro quando uma colega de faculdade (a Ariana) me achou no saguão da Famecos, no intervalo (ou no Mazza, não me lembro bem. enfim), isso creio que era no inverno de 1997. Ela era aluna do Juremir, e disse que o Décio Freitas ia dar uma palestra na aula de Técnica de Reportagem. Me agarrou vorazmente pelo braço e me levou para a aula, disse que ele estava lançando um livro. Era o "O Maior Crime da terra", sobre os crimes da Rua do Arvoredo - que comprei na época e li, pálido de espanto, como no soneto.

O Décio revelou um episódio quando ele era jovem repórter no Diário de Notícias, no tempo do Ernesto Corrêa. ele teve a ideia de publicar uma matéria sobre José Ramos e o famoso caso do canibalismo em Porto Alegre. Porém, disse o historiador, muita gente na época foi contra a tal publicação. O diário acabou sofrendo uma espécie de censura prévia por parte de setores religiosos do nosso burgo açoriano. No fim, a matéria não saiu.

Isso em 1963. Reflexão do Décio era a de que, mais do que o crime em si - dois assassinatos, a polêmica questão não era bem a crueza das mortes mas, sim, a bisonha prática do canibalismo involuntário na cidade. Nós, canibais? Não muito. Refletindo, tempos depois, à guisa de introdução ao livro, Freitas notou que o caso da censura à reportagem sobre os crimes da Rua do Arvoredo chamava a atenção principalmente pela mão invisível daquela sociedade provinciana que dedicava-se ao ofício de esquecer certas coisas que a escandalizava.

Ou seja, o tema era um tabu. Claro que os tempos mudaram. Hoje lidamos com esse episódio com certa naturalidade. Contudo, essa mão invisível era tão forte que, por décadas, o caso da "linguiça humana" tinha ares de lenda urbana. Ninguém sabia precisar detalhes sobre o incidente. Hoje temos o livro do Décio - que eu conheci graças àquele convite insólito em pleno saguão da Famecos (ou no Mazza).


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Grande Décio Freitas, um historiador tão pouco lembrado hoje em dia! Lembrei desse causo dos tempos da PUCRS depois de terminar a leitura de outro livro do Freitas, o "O Homem que Inventou a Ditadura no Brasil". Estava devendo essa leitura há muito tempo, até que a obra quase me caiu no colo, nas bibliotecas da vida. O mais curioso é que, sendo uma espécie de sequência do "O maior Crime...", que havia saído três anos antes deste, em 1997.

"O Homem..." tem a mesma ótica. Na história da Rua do Arvoredo, o historiador analisa o perfil psicológico de José Ramos para tentar entender até onde chegou o bicho homem que, em última análise, é o arquétipo do medico e do monstro. Mesmo que possa sublimar suas pulsões, ele sempre dá corda ao seu atavismo assassino. Os dois livros dialogam com essa mesma questão: a luta entre a civilização e a barbárie.

Esse é o excuso do autor para tentar entender tanto os atos do açougueiro da linguiça humana * quanto ao fratricídio da Revolução Federalista de 1893. Nos dois casos, a fronda intestina entre razão e instinto parece ceder para o lado deste. Sem querer virar uma mera tese naturalista, Décio Freitas analisa, de forma singularíssima (como diria Augusto dos Anjos), a nossa "revolta da degola".

Décio descobriu que tinha uma grande história nas mãos. Pesquisando sobre a Revolução, descobriu que um jornalista da cadeia do Hearst (na época, ele trabalhava para o San Francisco Examiner e o Tribune), Ambrose Bierce, foi mandado para Montevideu para cobrir o que poderia ser uma violenta guerra separatista de uma província do Brasil, o Rio Grande do Sul, com vistas de unir-se com o Uruguai. Décio teve acesso às extensas anotações do jornalista e às reportagens, além de esboços de textos que acabaram censurados ou simplesmente engavetados.

Devido a interesses ianques na região do Prata naqueles tempos, não é difícil entender por que Hearst iria interessar-se por uma guerra aqui, neste fim de mundo. Pelas descrições, Freitas concluiu que era o famoso satirista Ambrose Bierce, que morreu cobrindo a Revolução Mexicana em 1914.

O homem esteve em Porto Alegre, entrevistou Júlio de Castilhos, Silveira Martins, Joca Tavares e Gumercindo saraiva (pouco antes de morte, em combate, nos estertores da guerra).

O livro narra, pelo ponto-de-vista do Bierce, que não difere muito do do Freitas, com riqueza de detalhes, o que foi a loucura miltarista do Castilhos pró-Floriano e o delírio coletivo dos líderes federalistas, na maioria caudilhos de muita liderança porém de pouca ilustração, e que não tinham uma noção global do que estavam defendendo, fora o fato de que a adesão dos Republicanos gaúchos ao governo central coibia o contrabando, e todos os caudilhos da Campanha viviam do contrabando.

Assim como Décio torna-se uma espécie de alter-ego do dr. sarmento Leite jovem, analisando José Ramos em "O Maior Crime da Terra", em "O Homem que Inventou a Ditadura..." ele se projeta na imagem do prático e cínico Bierce. Como estrangeiro, o jornalista americano pôde colocar-se acima dos acontecimentos, analisando a Revolução sem procurar heróis ou bandidos: aliás, muito pelo contrário. O desenrolar dos acontecimentos, seguindo os passos do repórter nos revela um ambiente sombrio, rarefeito, que vai desde o miasma que era a Porto Alegre nos fins do Século XIX até o delírio em marcha de mentes e corações dos protagonistas daquilo que seria considerada a mais infame guerra civil brasileira de todos os tempos.


Bierce vê que a bandeira dos federalistas era essa. Na verdade, o Décio mostra que não tinha mocinho na história, a mentalidade dos líderes políticos era genocida e estreita. Ele descreve a loucura que foram os genocídios das degolas coletivas em Rio Negro (em Bagé) e Boi Preto. ele descreve a degola, os combatentes capturados ficavam num chiqueiro para abate, um a um, sendo degolados nus, depois de terem até as roupas do corpo confiscadas. e ninguém ousava enterrar.

O correspondente dos jornais do Hearst conta que chegou em Boi Preto (em Palmeira das Missões) e era um cheiro de carne em putrefação que se sentia a quilômetros de distância. E essas contingências de guerra que ele descreve em 93 já existiam antes, nos Farrapos, porém não como aqui, 10 mil mortos, 700 degolados contando os dois lados, maragatos e pica-paus.

O que choca Bierce, Décio Freitas, e provavelmente o desavisado leitor é que, apesar de copiosa bibliografia sobre o tema (como “Voluntários do martírio, narrativa da revolução de 1893”, de Ângelo Dourado. ou “Maragatos e pica-paus – guerra civil e degola no Rio Grande”, do Carlos Reverbel), a dinâmica de livro-reportagem do "O Homem que Inventou a Ditadura no Brasil" que, a despeito do título um tanto burlesco, assim como "O Maior Crime", aborda também um tema desagradável (ou "desagradável").

Assim como a "mão invisível" que quis esquecer o canibalismo porto-alegrense quando Décio produzia a matéria sobre o assunto, a Federalista também é outro tabu. Sousa Docca, historiador são-borjense, negou-se a publicar capítulo sobre a "revolta da degola" em sua História do Rio Grande do Sul. Décio explica:

- Geralmente ufanos de suas passadas revoluções, os gaúchos sentem-se contrafeitos face à guerra civil de 1893-95, diz. - a fantástica orgia de bestialidade promovida pelas duas facções políticas estigmatizou o conflito como uma guerra bárbara e suja.

No livro, Décio levanta a questão do contrabando como causa determinante do conflito. Treze anos após nossa independência, foi esta uma das causas da Guerra dos Farrapos. Terminada a revolta, o Imperio criou uma tarifa de fronteira, mas apenas fazia vista grossa para a instituição do contrabando no estado. A fronteira era uma área vital de livre-comércio.

A República quis pôr fim àquilo; porém, a repressão iria naturalmente desarticular um gigantesco esquema. Toda a produção escoava pela fronteira. Mais: muitos brasileiros eram donos de terras no Uruguai. Em Rivera, 80% dos campos eram "de propriedade de rio-grandenses". Muitos estanceiros, como Silveira Martins, viviam de passar gado de um lado para o outro.

Ambrose Bierce já havia visto esse filme. os gaúchos estavam apenas seguindo o exemplo da revolução da independência norte-americana, motivada pelos impostos e pelo contrabando. Mas, além do fato de que os ideais dos maragatos não eram tão "nobres" assim, como a bandeira do parlamentarismo, o intrépido repórter dá voz aos caudilhos federalistas Joca Tavares e Gumercindo Saraiva. Para eles, o seu credo, como a do (in) verossímil Capitão Rodrigo Cambará, é a "revolução". Apenas quer a "liberdade pelos humildes". E só.

No fim, entrevistando Apolinário Porto Alegre - um desafeto de Castilhos, depois perseguido pelo Governo com a vitória dos pica-paus, Bierce concorda que todas as guerras são iguais - execução de prisioneiros, carcheios (o butim). Mas, a Federalista ia além. A escalada de mortes e a degola fratricida era estimulada por ambos os lados. Castilhos e Silveira Martins, diz Freitas, sabiam das degolas e jamais as tinham condenado. Castilhos, aliás, ele explica, chegara a estimular, por escrito, as degolas. Era a doutrina da regeneração política pela degola...ambos sabiam que ela fazia parte da (atávica) cultura da morte, arraigada no Rio Grande do Sul".



* No fim, o artigo sobre os crimes foi liberado pelo Diário, porém, a relação entre as mortes e a fabricação de deliciosa iguaria que maravilhou os porto-alegrenses naquele ano de 1863 ficou COMO "inconclusivo".

Monday, September 21, 2015

O Passarinho


Às vezes, depois da almoço, eu vou estudar num paradisíaco saguão do anexo do campus. Ali, há sofás macios, espaçosos e devolutos para jibioar à vontade nas primeiras horas vespertinas, principalmente depois das 13 horas, quando o período das aulas da tarde começa, e os corredores ficam sonolentos e vazios.

O saguão tem um pé direito grande, equivalente a dois andares. O espaço equivalente à divisória deles corresponde a um espaço que contempla uma visão privilegiada da rua, através de um janelão, cuja seção superior é composto por vidros que naturalmente não podem ser abertos. Esse mesmo janelão é dividido, na altura da separação dos respectivos andares por uma estreita soleira de concreto. Recuado, o andar de cima parece um mezanino com vista para a tarde fatigada que passa.

A visão é idílica; é possível enxergar, a partir das copas das árvores rentes ao frontão do prédio, o Planetário, a esquina da Ipiranga e seu movimento de carros e ônibus, o prédio antigo da Psicologia. De cinco em cinco minutos, o São Manoel encosta na parada logo em frente, e descarrega magotes de alunos.

Hoje eles foram surpreendidos pela chuva. O tempo pareceu seco pela manhã. Depois das dez, começou a precipitação. A chuva era esparsa; depois, o tempo abria, como se fosse formar-se finalmente uma tarde de sol aberto. Logo, nuvens escuras (azuladas) apareciam. Troveja: e todos correm para proteger-se da tempestade em marcha.

Foi quando ele apareceu. Um dos sabiás que cantam pelas copas das árvores da praça ao lado, não sei como, acabou entrando prédio adentro. Sem saída, foi parar no topo do janelão.

Lá de cima, ele tinha uma vista melhor que a de qualquer um de nós. Porém, viu que o vidro proibia. O rufar de asas chamou a atenção de uma moça, sentada num sofá do outro lado do saguão. ela tentou fazer contato com o pássaro assobiando. distraído, tirei os olhos do livro que tinha no colo e olhei para ela. Sorrindo, a moça apontou o bichinho perdido, lá no alto.

Ela tentava chamar a atenção do animal. Perdido, ele fazia um movimento repetitivo de ir do topo dos janelões, bicando o vidro ao mesmo tempo em que tentava manter-se no ar como um desajeitado colibri - provavelmente sem entender o porquê de, a despeito de ver a transcendente paisagem à sua frente, ele não conseguia sair dali.

Cansado, o sabiá pousa na soleira (ou uma divisória à guisa de soleira para passarinhos perdidos). Minutos depois, tenta de novo. Vai de cima a baixo batendo as asas e bicando a janela, até voltar ao ponto de partida. Toda vez que ele parte para a sua empreitada, nós (já éramos três) olhávamos o movimento pacientemente desesperado do passarinho.

Depois de umas cinco ou seis vezes, muito empertigado, como se estivesse se sentindo vítima de um complô, ele põe-se a cantar, como que contrariado. A chuva parou, ele precisa cantar para avisar que a chuva parou. Mas ele não entende por que não consegue sair dali.

...


Quando ele canta, nós, que já estávamos meio cansados de observar suas investidas contra a janela, ficávamos a contemplá-lo, lá no alto, cantando para a tarde, não se sabe se para cumprir tabela ou porque ele estava, naquela altura dos acontecimentos, um tanto contrariado com aquela constrangedora situação.

Nós abrimos as janelas do andar de baixo, para que, talvez ouvindo o bulício da rua, ele entendesse que, ao contrário das janelas de cima, as do nosso andar estavam abertas. Mas, não: ele continuava naquele movimento de bicar o vidro de cima. Às vezes, tentava estribar-se nas divisórias, mas sem poder equilibrar-se, o sabiá acabava voltando à soleira.

O seu canto - que ressoava, de forma incomum, de dentro do prédio, chamava a atenção dos passantes...

Notei que ele se exasperava porque era assistido por gente que o observava lá de cima. quando chegava alguém, ele se assustava. Quando o movimento sumia, o pobre bichinho voltava às suas divagações e ao seu canto sem graça, da soleira dos janelões...

Muito tempo já havia passado; o remanescente era eu, que já havia terminado o livro e velava o sabiá em sua busca pela liberdade. Fazia conjecturas: pensei que ele fosse se cansar de vez, e tocar o chão. Ele permanecia ali na soleira mais pelo seu atávico e sábio medo dos seres humanos.

De repente, acho que ele parou para pensar a sua condição. Parou de fazer aquele tresloucado movimento sobe-e-desce e de embalde bicar o vidro. Começou a olhar fixamente para a balustrada do 'mezanino' do terceiro andar.

Respirou fundo, e deu um salto perfeito, da soleira até a balustrada. Virou-se para a rua; agora, com outro ponto-de-vista, ele pôde contemplar todas as janelas. Com efeito, notou finalmente que as do segundo andar - bem abaixo de onde ele estava antes, estavam abertas.

Fiquei pensando que, às vezes, nós somos como esse pássaro. Ficamos insistindo em saídas, soluções, modelos e processos que, na verdade, são, como diria o escritor norte-americano Scott Fitzgerald, apenas um passo à frente rumo ao nosso passado. E, no fim das contas, levamos anos andando em círculos até chegarmos a uma epifania sobre qual caminho seguir ou sobre o nosso destino.

E que, depois de muito tempo insistindo em causas perdidas, descobrimos que perdemos muito tempo de nossa vida breve em algo inútil e contraproducente. Às vezes, morremos sequer sem chegar à essa epifania fatal. Tudo por causa de um ponto-de-vista estreito e limitado - por algo ou por nós mesmos.

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Num voo em curva, nosso herói condoreiramente bateu asas da balustrada, desviou-se da fresta da janela mal aberta e alçou um intrépido voo até às árvores do Planetário, onde foi cantar o fim da tarde e de uma semana de chuva na cidade. Adeus, passarinho.



Saturday, August 22, 2015

O Eterno Retorno da Jovem Guarda


A trindade santa: Erasmo, Wanderlea e Roberto


Corro a vista nas matérias que saíram nos últimos dias sobre os 50 anos da Jovem Guarda. Pelo tom da maioria delas, noto que é impossível não cair no clichê. Porém, mais forte do que isso, é a força do mito e da consequente onda de nostalgia que o movimento, capitaneado pelo cantor Roberto Carlos a partir de famoso programa homônimo dos anos 60.

A Jovem Guarda sempre será, na memória daqueles que a viveram (e também na daqueles que sequer eram nascidos) uma época de ouro da música. Pelo menos no sentido de que a Jovem Guarda é, com efeito, a trilha sonora de toda uma época, ela é (já caindo no clichê) um símbolo daquela visão de mundo.

Afinal de conta, havia os bailes, as reuniões dançantes, os Beatles no cinema. Voltar à Jovem Guarda é voltar à época sagrada da juventude. Ouvir um disco rachado do Renato & seus Blue Caps, para quem viveu a época, é como ser proustianamente raptado a um tempo que parou no tempo.

Não existe, pelo menos na história da cultura do século XX, um estilo musical que sintetize tanto um espírito de época que seja revisitada de forma tão obsedante como a da Jovem Guarda. Existem os nostálgicos do desbunde e da contracultura dos 70, do BRock balonê dos anos 80; no entanto, o grande eterno retorno é a Jovem Guarda.

Não entro aqui na discussão a respeito da famosa querela entre o pessoal da MPB e a Jovem Guarda, assunto de dezenas de teses e livros. Ainda não se chegou a um termo se ela era realmente um movimento musical; seus detratores (e eles sempre existem), dizem que não passava de um fenômeno mercadológico.

Ao mesmo tempo, acusam a Jovem Guarda de alienante (1) – acusação feita pela “linha dura” da MPB da Era dos Festivais e acusação esta que, por sua vez, perdura até hoje.

Mas não é essa a questão. O problema aqui não é lembrar da Jovem Guarda para salientar pontos “negativos”. A música jovem naqueles moldes foi um fenômeno em escala mundial. Propagada pela invasão das bandas britânicas, a partir de 1964, o poder da “música jovem” invadiu as paradas e o mundo.

O pulo do gato da Jovem Guarda, na verdade, não foi o programa. Como podemos ler no livro de Paulo César Araújo sobre Roberto Carlos (2), tudo se deveu a um twist of fate: Roberto estava na geladeira como segundo cantor jovem da CBS, atrás de Sérgio Murilo.

Este, em litígio com a gravadora, abriu espaço para o jovem cantor de Cachoeiro do Itapemirim. Já o futuro parceiro de Erasmo teve uma ajuda do destino. Foi quando Evandro Ribeiro passou a responder pela direção musical do selo, no lugar de Roberto Côrte Real.
Com Evandro, Roberto passou a ter mais autonomia em estúdio.

Esta era a grande questão para se entender o fenômeno da Jovem Guarda em seu começo. No Brasil, até ali, era praxe nas gravações que todo o cast fosse providenciado pela gravadora. Para tanto, bata que ouçamos os primeiros sucessos do rock nacional. Celly Campelo, Sérgio Murilo, Carlos Gonzaga, Ronnie Cord, todos gravavam com o auxílio de músicos de estúdio.

Pois coube a Roberto – e esse é um mérito dele – pôr o pé na porta e convencer Ribeiro a gravar músicas dele, e gravadas por gente jovem, não por pés-de-boi de estúdio que, por sinal, não sabiam ou sequer gostavam de rock.

Em resumo: num primeiro momento, essa foi a revolução da Jovem Guarda, e isso quando ela ainda não tinha esse nome. Uma ideia simples, mas que ninguém até então tinha pensado em executá-la: música jovem para gente jovem. Nada de tão revolucionário assim.

Afinal, os Beatles e Bob Dylan já faziam isso há algum tempo. O grande desafio era convencer os executivos de gravadoras de que aquele tipo de som “exótico” era radiofônico, tinha público e era tão rentável quanto os boleros de gente como Anísio Silva, Lucho Gatica e Altemar Dutra nas listas dos mais vendidos.

No Brasil, até então, rock era algo que era explorado pelas gravadoras de forma apenas parcial. Acreditava-se que fosse um fenômeno passageiro, mesmo com os Beatles. O que bateu o martelo a favor da Jovem Guarda foi a sua viabilidade comercial. A prova de fogo, como diria Wanderléa, era conquistar a televisão.

O dia 22 de agosto de 65 na história do nosso rock é o 9 de fevereiro de 1964 para os Beatles: é quando a música jovem, já sob a alcunha de “Jovem Guarda”, tomou de assalto as mentes e corações do público.

A partir dali o rock brasileiro, se não estava atingindo a sua maturidade, pelo menos já estava estruturado com bons compositores (Erasmo, ainda antes de ser intérprete, já era compositor quase profissional, fazendo versões brasileiras de canções estrangeiras).

Roberto já tinha uma banda. As gravadoras começavam a formar um cast para a demanda de público. Pouco a pouco, jovens intérpretes já pontificavam nas rádios a partir de São Paulo – onde tudo explodia musicalmente naquele tempo.

O que a tevê fez, a partir daquele 22 de agosto de 65 foi, aí sim, explorar merdadologicamente a franquia “Jovem Guarda”. Tudo era Jovem Guarda. Até o que não era rock.

Era o rock brasileiro ganhando fumos de Indústria Cultural. O rastro disso foi que, nos quatro anos seguintes, o movimento (e, sim, eu defendo que, pelo menos e, também, comercialmente, ela foi um movimento) foi explorado à exaustão.

Esse, talvez, fosse o começo do fim. Nesse curto espaço de tempo, o que era um movimento subterrâneo de uma garotada do subúrbio carioca a favor da “música jovem” foi capitaneado pela indústria fonográfica. Selos e mais selos andavam pelo Brasil á cata de novos talentos, novos cantores, novos compositores. Todas queriam achar um novo Roberto Carlos, numa nova Wanderléa.

Todas passaram a produzir novos astros em escala fordista: um novo cantor, um novo compacto, uma nova versão brasileira de um rock estrangeiro. Tudo era Jovem Guarda. Até o que não era rock. Os produtores das gravadoras já haviam “manjado” o esquema. O esquema, por sua vez, começou a virar clichê. Muitos cantores, como Wanderley Cardoso, gravavam como nos tempos do Sérgio Murilo, com músicos de estúdio.

O grande problema da Jovem Guarda (que era dela e que concorria contra ela) era o excesso de versões brasileiras. Não sei se existe uma estatística, mas uma parte considerável da produção do gênero é oriunda de traduções tanto do rock britânico ou norte americano quanto do pop italiano, que fazia muito sucesso no Brasil.

Não que fosse um problema da Jovem Guarda: tanto antes, quanto depois (e hoje e sempre), o nosso mercado fonográfico é uma fábrica de versões brasileiras. É o que a gente poderia chamar de “rock Herbert Richards”.

Se levarmos em consideração apenas os grandes sucessos do Renato & seus Blue Caps, eles são grandes tributários dessa prática. Seus grandes sucessos são, em grande parte, oriundos de versões dos Beatles. O curioso disso é que, se levarmos em conta a fase iê-iê-iê do quarteto de Liverpool, ela foi explorada á exaustão.

O "porém" é que a Jovem Guarda sucumbiu ao experimentalismo progressivo da banda – e a própria Jovem Guarda se ressentiu disso também. Tanto é que, do Rubber Soul em diante, as versões brasileiras do conjunto inglês desapareceram.

Acho que essa é uma questão pouco explorada no que se diz respeito à questão rock-Jovem Guarda. Com o passar dos anos, enquanto a primeira parte do binômio evoluiu lá fora, a segunda parte, aqui no Brasil tornou-se, sob os auspícios das gravadoras, um gênero “conservador”. Tudo o que se pensava musicalmente em escala nacional, passava necessariamente pelo crivo do comercial e radiofônico.

Por isso é tão difícil entender onde começa o rock e onde termina a Jovem Guarda, e vice-versa.

Quando a JG morreu como movimento e como fenômeno de comunicação de massa, com o fim do programa, o rock tomou um rumo que ou abraçava o tropicalismo – talvez a continuação da linha evolutiva do rock tanto quanto da Bossa Nova, como defendia Augusto de Campos, ou caia na clandestinidade. O Tropicalismo fez melhor para a linha evolutiva do rock nacional do que da Bossa Nova, que já estava deglutida na MPB.

O “espírito” rock sobreviveu nas tropicalices experimentalóides dos Mutantes, por exemplo. Contudo, pela trajetória da banda de Arnaldo Baptista pelos anos 70, pudemos ver que gravadoras não se interessavam por "música jovem" com linguagem que cotejasse o que era a vanguarda do rock. Postular o rock brazuca comercialmente nos 70 era um investimento pírrico, a fundo perdido. Isso numa época em que vinil valia e muito (até a Crise de 73). Ao rock, restou a contracultura. À distopia da Jovem Guarda, o pop brega das rádios AM.

O que restou como subproduto da Jovem Guarda, depois de 1969, ao que parece, já estava embalsamado pelo gosto das gravadoras. De comum acordo, todos resolveram embalsamar a Jovem Guarda. O que havia de “comercialmente viável” e/ou “de formato radiofônico” foi um pop quadrado e moldado para os fãs de Roberto Carlos e companhia que, por sua vez, já estava mais crescidinho.
Nesse momento, o rock já estava dissociado do que era a Jovem Guarda. fazer rock ou “música jovem” fora do esquemão das gravadoras era uma aventura. Era algo como pregar no deserto.

O formato clichê da Jovem Guarda, entronizado pelo Lafayette, principalmente nos discos de 66 e 67 de Roberto Carlos, viraram a base para a produção desses egressos do gênero, agora moldados como cantores românticos (3) como Reginaldo Rossi (que apareceu com um cover de “Deixa de Banca”, de Eduardo Araújo), Paulo Sérgio (emulando o “inimitável RC), Nelson Ned, Paulo Henrique (“Uma Lágrima”), Nílton César, entre outros, como Antônio Marcos. Ele começou com "Tenho um Amor Melhor do que o Seu" e tornou-se um dos grandes cantores dos anos 70 (hoje totalmente esquecido), com inúmeros sucessos.

O que a Jovem Guarda mudou nesse ínterim foi que, até 1964, a vertente “romântica” (prá não dizer “brega”) que aparecia nas paradas emulava boleros, de Orlando Dias a Anísio Silva. Depois de Roberto Carlos, a segunda onda do brega, em sua dialética voraz, já havia deglutido o bolero e instituído o upbeat da Jovem Guarda e o seu inefável tecladinho Lafayette.

E o rock? Aí já é outra história.

......

Se a gente pega um tema como "O Bom", do Eduardo Araújo, é algo puramente brasileiro, ou "brasileiro". Como não é cover dos Beatles, soa completamente autônomo. Porém, sem o atavismo do que é o rock, esse tipo de canção da Jovem Guarda soa como alguma coisa com uma na bateria.

O nosso rock ainda tinha influência daquela produção pastiche "teen idols", que não tinha influência bem do blues, nem do R&B, nem do soul. O soul é algo vital para entendermos o mod inglês e o começo dos Beatles. No caso da Jovem Guarda, mais parecia uma música que nascia sem essas referências.

Tirando o cânone de Roberto, a produção de gente como Erasmo ou Eduardo Araújo é bastante original, mas sua originalidade reside no fato de ser um som jovem pop brasileiro associado ao que seria o rock brasileiro - resumido e racionalizado como o som da Jovem Guarda: existe bateria, guitarras e baixo elétrico, mas está próximo daquele pop ingênuo que inundava as paradas americanas antes da Beatlemania.

Em última análise, a Jovem Guarda foi e é, em seu tempo, uma evolução do que seria ou viria a ser o rock brasileiro. Mais do que apenas querer questionar o caráter não-militante (ou alienante) das letras (discussão na época do infame protesto contra as guitarras) é tentar entender que o som da Jovem Guarda, se for associada a o que chamaríamos de rock à brasileira, ele o é por falta de opção.

Muito embora, e isso é algo que surgiu numa espécie de onda revisionista, no final dos anos 90, de se revisitar toda a produção de rock e pop que apareceu no país entre 1965 e 1970 e que ficou longe do mainstream, isto é, o programa Jovem Guarda, tudo aquilo que foi modernamente rotulado de "Brazillian Nuggets", ou seja, o lado B da Jovem Guarda. Se formos pensar assim, à titulo de pesquisa, mesmo que de forma esparsa e mal divulgada, havia uma produção de rock nacional que "bebia da fonte" e que reproduzia esse modelo, porém, era uma turma que estava fora da grande festa de arromba da Jovem Guarda.

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Mas, nostalgias à parte, se formos levantar uma grande virtude da Jovem Guarda, mesmo passando pelo condão da Indústria Cultural, foi rejuvenescer a música pop romântica e varrer o Anísio Silva das paradas. Nada contra ele, mas a verdade é que quem emprestou essa nota modernizante à música brasileira a partir dali foi a Jovem Guarda e não exatamente a Bossa Nova. Se a Bossa Nova revolucionou a forma de se fazer música aqui, a Jovem Guarda reinventou o mercado do disco e do rádio e as formas de se pensar ambos.

Toda a indústria fonográfica passou a regurgitar o modelo que foi entronizado pela JG a partir de meados dos anos 60, tanto para o bem quanto para o mal. É comum franquear este pepel à Bossa Nova, mas sabemos que o gênero popularizado por João Gilberto paradoxalmente não era popular o suficiente para mudar o linguagem das gravadoras.

E a Jovem Guarda, via Roberto Carlos, também foi influenciada pela BN, e o cantor de "Quero que Vá Tudo para o Inferno", o piece de resistance do movimento, é o maior exemplo disso.

A influência da Jovem Guarda na questão da "linha evolutiva" (pegando emprestado a expressão já citada, de Augusto de Campos) da música brasileira, junto com a MPB nascente e o Tropicalismo, ou melhor, o fato de historicamente se desrelativizar a sua importância nesse processo "evolutivo", é um assunto ainda a ser discutido.



(1) Na verdade, a Jovem Guarda apenas pagava o preço da sua visibilidade. Afinal de contas, eles não foram os primeiros "alienados" e tampouco os últimos.
(2) Paulo César de Araújo, Roberto Carlos em Detalhes, Planeta, 2006.
(3) Um caso clássico é o Márcio Greyck, que tem um ótimo e esquecido disco de estreia no tempo das jovens tardes de domingo.

Friday, August 21, 2015

Tempos Modernos


Edna Purviance e Charlie Chaplin em The Pawn Shop

Tava vendo a notícia de um detento que rasgou o alvará de soltura porque, segundo ele, era melhor ficar na cadeia. Isso me lembrou uma cena do Tempos Modernos, quando o Carlitos é solto por bom comportamento e não quer sair, até porque ele se acostumou com a rotina e já sabe muito bem como é a vida lá fora.

A primeira coisa que ele faz quando sai é entrar numa confeitaria, pedir um petit déjeuner, faz uma lauta refeição e, depois, diz para a balconista que não tem dinheiro, pede licença, vai até a porta, assobia para o guarda. explica a situação. Ele, naturalmente, é algemado e sai feliz para o xilindró.

Há pouco tempo atrás, resolvi assistir a todos os filmes do Chaplin, inclusive as suas últimas produções. Li também a sua autobiografia, o Minha Vida.

O curioso nisso tudo é que, depois dessa avalanche de informação, não consegui olhá-lo com os olhos de um fã. Pelo contrário, acho ele um sujeito maluco, um completo maluco. No entanto, acho o Carlitos uma criação sensacional depois de ver toda a influência de sua vida miserável na Inglaterra e sua experiência precoce nos teatros britânicos como um background fantástico para a elaboração do personagem do vagabundo.

Carlitos virou um ícone riponga, até pelo seu famoso discurso humanista, no fim do O Grande Ditador, filme pelo qual não consigo nutrir grande empatia. Nem mesmo o Tempos Modernos.

Quando à este, ficou marcado pela crítica ao fordismo e suas consequências. Mas o que mais me chama a atenção na película é o outro lado do trabalho, o desemprego. Carlitos é obrigado a trabalhar. é perseguido pela polícia. na sequência de sua prisão, ao invés de ser recolhido, conhece a flapper Paulette Godard, que faz com que ele mude seus planos. sua luta contra o desamparo, a falta de teto, a fome, a despeito dos êxitos, eles são sempre acossados, até o fim, pela polícia.

O que me choca, aliás,revendo os filmes, é o excesso de violência. Principalmente Easy Street. Filme da Mutual, de 1917, um dos últimos onde aparece Eric Campbell. O filme é um primor de violência gratuita, além de cenas de uso de drogas: eram os tempos anteriores ao famoso Código de Hollywood.

Em Easy Street, um homem amedronta Edna Purviance depois de injetar-se com heroína. De forma involuntária, durante o confronto, Carlitos (de policial) acaba sentando na agulha com a droga. Alucinado, como se tivesse tomado a poção mágica do Panoramix, ele liquida com a gangue que amedronta o bairro.

Daí lembrei-me que Chaplin usou a mesma ideia quase vinte anos depois, em Tempos Modernos. Nesse caso, um detento esconde cocaína num saleiro (por sinal, essas cenas de drogas passam batido quando lembramos dos filmes do Carlitos). Nosso herói distraidamente põe na comida na cena do refeitório. Dopado, ele enfrenta sozinho uma rebelião. Por conta de sua bravura, é por isso que ele é beneficiado com a liberdade. é solto à contragosto - e voltamos ao começo do meu plá.

Chaplin foi passando o Carlitos à limpo. Em O Grande Ditador, ele já havia passado do ponto. Estava distante daquelas comédias da Keystone - quase todas muito ruins, por sinal.

Claro que posso estar analisando fora do respectivo contexto. Imagine que aqueles primeiros pastelões foram produzidos há exatos cem anos. Naquela época, acho que só Griffith levava a sétima Arte realmente à sério, como se fosse um Homero do cinema. Pastelão era a alma daquele tipo de entretenimento barato. Os enredos inexistem. Por isso, poucos hoje se lembram de todas as películas chaplianas daqueles primeiros anos. Da Keystone, gosto muito de Laughing Gas, que é tão ruim que é ótimo.

E o meu preferido da Keystone nem é um filme dirigido pelo Chaplin: Tillie's Punctured Romance, que é dirigido pela Mack Sennett e estrelado pela Marie Dressler. Charlie faz um papel que sequer é o seu vagabundo.

O melhor Chaplin e o melhor Carlitos, para mim, são com a Edna Purviance. Ela é sensacional por quebrar a grosseria como um contraponto suave e doce ao pastelão infrene. ela tinha um jeito de atuar que era espontâneo, e esse era o seu trunfo. Aí já entramos na fase da Essanay e da Mutual. A edna é o melhor Chaplin. Aliás, esse post deveria ser somente para ela. seu sorriso em The Immigrant é apaixonante. Ela é sempre o melhor momento do filme.

No A Dog's Life, ela protagoniza uma cena hilariante como singer num café-cantante imundo, levando todos às lágrimas (de esguicho) cantando uma ária triste. Depois, é obrigada a flertar com Carlitos para que ele consuma no bar. Depois, ela é demitida, mas descobre que o vagabundo é como ele: dois desamparados na chuva. Ou ela vestida de homem para arrumar trabalho em Behind the Screen, beijando Carlitos ante os risinhos de um contra-regras.

Acho que o último filme da Edna é o The Kid. Ela é a mãe do menino. A cena em que ela faz um mimo à ele no beco sem saber que está com seu filho e vai embora depois de um suspiro é de cortar o coração. Se não, reveja.

Depois, vieram a Merna Kennedy (O Circo), Georgia Hale (Em Busca do Ouro) e a Paulette Goddard. Mas nenhuma se compara à musa eterna em nossos corações Edna, que sequer era atriz.

Acho que esse vídeo vai me dar razão:









Tuesday, July 07, 2015

A Condessa de Araque


Maysa


O jornalista e compositor Ronaldo Bôscoli tem um interessante livro de memórias muito interessante*. Na obra, ele dedica um capítulo à inesquecível cantora Maysa Matarazzo. Ali, o autor de "Lobo Bobo" relata as suas núpcias de fogo com a cantora de "Meu Mundo Caiu". Uma história, pelo menos, é digna de menção.

Estavam os dois já separados há algum tempo (isso lá por meados dos anos 60), quando Bôscoli teve um caso com a Condessa Mimi D' Arcange, que era amiga da irmã de Ronaldo, Lila.

Certa feita, ela quis conhecer Cabo Frio, no litoral do estado do Rio de Janeiro. Nesse meio tempo, a imprensa soube do caso e os paparazzos apareceram. Ele, derretendo-se em sua paixão pela moça, pigarreou, alçou a fronte e falou para a caravana da reportagem:

- Troquei uma condessa de araque por uma condessa de verdade.

Um tempo depois, plena madrugada, Bôscoli estava com seu fiel escudeiro, Miéle, dividindo a famosa sopa da fome do La Fiorentina, no Leme. Nisso, toca o telefone, o garçom vai ter com ele:

- Seu Ronaldo, a Maysa no telefone, de São Paulo.

Ele, que não falava com ela há milênios, foi atendê-la. Maysa foi adorável: disse que estava com saudaqdes, que ele era o amor da vida dela. Lá pelas tantas, dispatrou:

- Ronaldo, eu quero que você produza a minha próxima apresentação aqui em São Paulo antes da minha viagem à Itália.

Bôscoli estava batalhando seus pocket-shows no Beco das Garrafas. Porém, apesar de muito requisitado, a grana era curta. Prá não dizer nenhuma. Ele quis saber de dinheiro. ela respondeu:

- Grana não é problema.

Mesmo ressabiado, resolveu topar. O problema era Miéle. Ele resumia a proposta à Miéle, tapando o bocal do telefone. Este, por sua vez, com o sobrolho carregado, parecia cético. Maysa pediu para passar para ele. Depois de vários "ahans", a tensão se esvaneceu do semblante de Miéle. De qualquer maneira, quem não tem nada, não tem nada a perder...

Bôscoli pegou o fone. Falou.

- Tá bom, a gente topa. amanhã eu te ligo e a gente combina tudo...

- Não - cortou Maysa. - Venha para São Paulo agora mesmo!

- Agora? - gemeu Bôscoli.

- Você pode pegar um carro de praça e vem. Não tem problema, deixe que eu pago a corrida. Já faz parte dos custos da produção.

Com a sopa do La Fiorentina pela metade, eles saíram para a rua. Conseguiram convencer um motorista a fazer a viagem. Antes, passaram no apartamento onde moravam, não muito longe dali, e pegaram a Rio-São Paulo.

No meio do trajeto, furou um pneu do carro. Com o último tostão, eles ajudaram o taxista a pagar o borracheiro. Porém, a perspectiva de dinheiro e sucesso subiram á cabeça de Bôscoli. Emplogado, com o olho rútilo e o lábio trêmulo, ele contava ao motorista os seus arrufos com Maysa. Este, por sua vez, entre incrédulo e divertido, apenas respondia:

- O quê? Esse cara aí, liso, de caso com a Maysa? a cantora? Tá querendo me enrolar?

De manhã, eles chegam em São Paulo e dirigem-se à casa de Maysa. Ela não estava. Uma criada, todavia, tinha um envelope para Bôscoli.


Ronaldo,


A condessa de araque partiu para sempre. Tchau.


Maysa



Estupefato, ele passa o papel para Miéle que, perplexo, fixa os olhos em Bôscoli. Voltam à realidade com a buzina do carro de praça:

- E aí?

Sem dinheiro nenhum em São Paulo, completamente perdidos e com a conta da viagem e com fome, o que fazer? Miéle tinha um parentes, mas não queria recorrer à eles de maneira alguma, muito menos assim.

Ronaldo tinha uma prima. Tinha viajado. Porém, conseguiu algum com a empregada dela. Então eles explicaram o problema para o chofer que, vendo a situação extrema de nossos heróis, preferiu protelar o escarcéu. Com o dinheiro da criada da prima, conseguiram saldar parte da dívida. O taxista, por via das dúvidas, quis ficar com as malas da dupla por garantia.

Deram o endereço deles em Copacabana. e lá se foi o motorista, fulo da vida, mas com a bagagem e os documentos deles.

Brancos de fome, andando pela cidade sem destino, foram parar num botequim. Ali acontecia um surrealista campeonato: desafiado pelo dono da bodega, um cidadão tinha que comer cinquenta ovos. Em desespero, Ronaldo e Miéle comiam desesperadamente os restos de comida que caiam na mesa e no chão.

Já refeitos, procuraram um conhecido num estúdio, a fim de conseguir algum dinheiro.

- Grana não tem - disse o homem. - Mas tem um bar aqui embaixo que tem conta comigo, podem beber à vontade.

Para matar a fome, passaram o resto do dia bebendo. Eis que, depois de dar uns telefonemas, Miéle descobriu que tinha um esquema no programa da Hebe. Lá foram eels.

Chegando lá, muito gente famosa. O cenário do programa era numa beira de piscina, quase um garden-party. De repente eles poderiam conseguir um bico ali.

- Grana não tem - disse a Hebe. - Mas podem ficar por aí, porque tem muita gente importante convidada. De repente, vocês conseguem divulgar o trabalho de vocês.

Ficaram até o fim da noite, salvos pelos acepipes oferecidos no programa e doses colossais de Cinzano, que era o patrocinador da Hebe.

Horas e horas tentando se enturmar e nada. De repente, no meio dos convidados, acharam a Marisa Gata Mansa. Bôscoli então contou a situação famélica em que se encontravam - pelo menos a ponto de convencê-la a emprestar-lhes o dinheiro suficiente para voltarem para casa.

Pegaram um cata-jecas para o retorno ao Rio. O semi-direto veio de parada em parada, lotado e sem banheiro. Com muita diplomacia, Miéle conseguiu ficar na janela, enjeitado com Ronaldo e um japonês com cara de agricultor. No meio da viagem, o martini com ovo pagou o seu preço. Bôscoli começou a passar mal e vomitou no colo do japonês.

A sorte é que o cidadão estava no sétimo sono, e não viu o autor. O problema foi quando o reparo começou a feder dentro do ônibus lotado. Logo todos acusaram o japonês. espantado, ele apenas dizia: "no, no". O mal estar foi tão grande que, mesmo contrariado, ele teve que descer bem antes do ponto final, ainda em Bonsucesso.

Bôscoli ria ao ver o cidadão sendo expulso do comboio aos rapapés. Miéle brigou com ele:

- Seu maluco! E se ele fosse lutador de caratê?

Miéle ficou o resto da viagem xingando Bôscoli e ameaçando ir às vias de fato. Porém, o cansaço e a fome o impediam de fazer qualquer esforço além de esperar.

Ao chegarem na frente do prédio, lá estava o chofer, esperando por nossos chapilinianos heróis. Com ele, firam até a redação da Manchete, onde conseguiram o resto do dinheiro.

....


E Maysa? Já devia estar na Espanha, onde iria morar. Aliás, quando estava em turnê pela Argentina pela primeira vez, era chamada, por ser da família Matarazzo, de "la condessa cantante", apelido que ela detestava. A vingança, como diz o profeta, é um prato que se come frio.



* Eles & Eu, Editora Nova Fronteira, 1994.


















Saturday, July 04, 2015

Dionísio no Rock


Cena do filme The Doors


(um parêntese à guisa de introdução (e resumo): esse artigo é uma análise da influência da teoria do filósofo Friedrich Nietzsche e a influência de seu O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música no filme The Doors. O objetivo é colocar uma outra luz em cima tanto da influência do autor alemão na poesia de Jim Morrison quanto uma maneira de entender os motivos do filme de Oliver Stone, além de questões já analisadas pelos cotovelos, como a contracultura e Aldous Huxley, por exemplo. A justificativa é que, a despeito de todas as referências no roteiro, essa intertextualidade entre Nietzsche e o filme é negligenciado em muitos estudos)


1. Oliver Stone e o problema da verossimilhança em The Doors, de 1991

Quando a cinebiografia da banda The Doors entrou em cartaz (Oliver Stone, 1991), muitos fãs e críticos elogiaram a atuação do ator principal, Val Kilmer, na sua caracterização do líder do conjunto norte-americano, Jim Morrison.

No entanto, tanto boa parte da crítica quanto músicos do quarteto californiano rechaçaram o roteiro.

Para eles, a caracterização de Morrison é “imprecisa e falseadora da realidade”. Ou, por outra, o roteiro teria destacado um “lado superficial” do músico que, embora caísse bem para o estereótipo de uma estrela do rock, estaria longe da realidade.

A despeito destes entraves, o filme ganhou fumos de cult movie e pavimentou todo um retorno à obra da banda numa época em que toda a contracultura dos anos 60 havia sido quase esquecida por completo.

Aliás, pode-se dizer que boa parte do sucesso do filme, por sinal, reside justamente na forma como o roteiro lida facilmente com o estereótipo do crooner de uma banda de rock.

No entanto, entendemos que Stone como descendente da geração da New Hollywood, ex-combatente do Vietnã e fã dos Doors e de Morrison, quis imprimir, no roteiro, uma visão nietzschiana do mito de Dionísio em O Nascimento da Tragédia (1).

Para o diretor, o autor de “Riders on the Storm” era uma espécie de recriação da imagem do artista dionisíaco, porém, baseado no rock e na contracultura norte-americana dos anos 60, fazendo uma ponte entre o filósofo alemão e movimentos culturais da segunda metade do século XX, como a Off-Broadway do The Livin’ Theatre, o blues, a Geração Beat, Wilhelm Reich e livre-pensadores, como Colin Wilson e Allen Ginsberg entre outros.

A noblesse oblige do rock quer o líder de uma banda de rock mais ou menos como Jim Morrison: um poeta incompreendido, contestador, beberrão, canastrão e carismático. De certa maneira, poderíamos dizer que imagem proposta pelo filme caiu bem à imagem que os fãs gostariam de ter de um artista como ele.

Também cabe ressaltar que Stone havia trabalhado originalmente o roteiro do filme com Ray Manzarek, tecladista dos Doors e Patrícia Kennealy, ex-namorada de Jim. Mesmo assim, o diretor optou dar a sua versão da história, fato que desagradou a ambos.

Porém, mais do que esboçar a trajetória quase estereotipada de um astro do rock, pode-se dizer que, em The Doors, numa visão mais acurada, isto é, além da interpretação simplista a que todos acabariam incorrendo, é possível perceber que Oliver Stone quis defender uma teoria que buscou cotejar a trajetória de Jim Morrison associada à queda do próprio mito trágico de Dionísio dentro do pensamento moderno de Nietzsche.

Para tanto, podemos notar que o autor faz uso de intertextualidade (incluindo as falas do filme), citando o filósofo alemão em vários trechos da película.

É importante notar que, ao escrever o roteiro, o diretor conhecia a obra de Morrison e naturalmente sabia dessa incidência literária na proposta poética da banda.

Ou seja, não se trata de uma mera interpretação da obra de Nietzsche a partir da música dos Doors mas, sim, uma fábula em cima da própria abstração da teoria do autor alemão no referente à forma como o quarteto a interpretou como projeto estético, e consequentemente a ótica do roteirista em perceber isso e recriar, de forma alegórica, no texto.
Enfim: Se ele utilizou destas fontes para a elaboração do filme, no final, o que ficou – como não poderia deixar de ser – foi a visão do diretor.






2. Morrison e Nietzsche: rock e tragédia grega


Muitos biógrafos destacam a influência do pensamento de Nietzsche em Morrison. Um deles, Stephen Davis (2), refere-se à identificação do músico com o “sofrimento de Dionísio”. Ainda nos anos 60, jornalistas de rock destacavam sua imagem de “xamã superstar”, como Richard Goldstein (3). Para ele, o frontman dos Doors dava entender que “você precisaria ler Nietzsche na essência da tragédia para entender onde ele realmente se situa; seus olhos movem-se até que ele encete uma discussão da luta apolíneo/dionisíaca pelo controle da força da vida”.

Morrison descobriu Nietzsche com os beats na adolescência, primeiro pela leitura de Jack Kerouac. Jim se identificava com o herói de On The Road, Dean Moriarty. Mais tarde, na leitura de “The Outsider”, de Colin Wilson (3).

Morrison citava Wilson a respeito da seção 7 de O Nascimento da Tragédia. Sua identificação nasceu da passagem em que este referia-se ao comentário do filósofo alemão a respeito de Hamlet onde este, segundo o autor de “Assim Falava Zaratustra” na peça de Shakespeare, de forma arquetípica, se assemelha a Dionísio que, por sua vez, busca transcender a “náusea do absurdo”.

Para ele, ambos lançam um olhar verdadeiro à essência das coisas, ambos passaram a conhecer, e a ambos enoja atuar; pois sua atuação não pode modificar em nada a essência das coisas, e eles sentem como algo ridículo e humilhante que lhes exija endireitar de novo o mundo que está desconjuntado (Op Cit, p.56)

Ele via uma ligação entre a geração beat e os hippies, acreditando que o ethos de inspiração “dionisíaca” no sentido de expansão espiritual era evidente, embora pensasse que o movimento era fraco e infrutífero.
Nietzsche entendia que só o orfismo banido da polís e apócrifo ainda trazia o atavismo na Grécia de Eurípedes e Sócrates.

O coro das oceânides acredita ver efetivamente o titã Prometeu e considera a si próprio tão real quanto o deus na cena. O abismo entre um homem e outro dão lugar a um superpotente sentimento de unidade que reconduz ao coração da natureza (p.55)

Na analogia com a noção de niilismo em Nietzsche, tanto Morrison (via Wilson) entende que o filósofo deve experimentar a dor. Esse, para ele, é a epifania e o credo do herói outsider. Nesse sentido, ele acredita que o artista deve vivenciar a tudo aquilo que aspira, ao que tem como ideal artístico.

Dentro do seu ideal estético, Morrison primeiro buscou o cinema na faculdade, onde chegou a produzir um filme experimental. Influenciado por Reich e Nietzsche, seu filme foi tachado de ‘hermético’.

Mais tarde, descobriu no rock a melhor forma de apresentar sua poesia, dizendo que a música e sua qualidade hipnótica era a maneira de colocar o poeta num estado de espírito capaz de expor seu subconsciente

Ou seja, na sua forma mais primitiva, o rock, como uma reminiscência do blues, é a trilha sonora capaz de evocar a sua percepção perdida. É o apolíneo pavimentando o caminho para o seu dionisíaco.

Para Nietzsche, a origem da música reside além de toda individuação, ou seja, de seu elemento não-apolíneo. “A vontade é o objeto da música, não o princípio”. Ou, como diz Nietzsche referindo-se à Schopenhauer, em On Music And Words, a Fragment from 1871 (4): a música é uma representação da vontade, e certamente não se preocupa com as emoções de mesma maneira como ocorre com a poesia lírica. “O poeta lírico interpreta a música através do mundo simbólico das emoções”.

With regard however to the origin of music, I have already explained that that can never lie in the Will, but must rather rest in the lap of that force, which under the form of the " Will " creates out of itself a visionary world: the origin of music lies beyond all individuation, a proposition, which after our discussion on the Dionysian is self-evident (Op. Cit).

Ele entende que a linguagem nunca vai traduzir perfeitamente o elemento cósmico da música. Para ele, ela vive numa relação com a contradição primordial, a dor primordial no coração da Unidade Primal. Portanto, ela simboliza a esfera que está antes e além de todos os fenômenos.

Porém, o filósofo via a música folclórica como um vestígio da união do apolíneo e do dionisíaco. Nesse sentido, no fim do livro, saúda o retorno à raiz folclórica da música como uma forma de engrandecimento do espírito germânico através do “fogo mágico da música”.

À sua maneira, Morrison buscava adaptar a saudação de Nietzsche através do blues, mas idealizando um retorno ao primitivo do cênico e da poesia como expressão do irracional e do sonho.

Assim como Morrison assimila Nietzsche no espírito do dionisíaco, ele adapta o ritual na persona do Chefe (ou druida, ou pajé) Mojo Rising (um anagrama de “Morrison”, citado em L.A Woman (5)), que é uma forma de recriar o sátiro dionisíaco sob o disfarce do xamã, no elemento autóctone norte-americano.

Esse simbolismo perpassa a sua poesia e o próprio imaginário associado à Morrison e aos Doors. Num trecho do seu livro The Lords (6), Jim fala: “um pânico sensual, evocado por ervas de forma deliberada, cânticos e dança, que põe o xamã em estado de transe”.

Embora associado ao imaginário da banda, Morrison naturalmente entendia o xamã como um curandeiro (o personagem tipifica, ao falar à namorada, logo no começo do filme), algo que ele não era. Mas que ele entendia, contudo, como alguém que “excitasse” os brios das pessoas, que as excitasse.

Muito embora à ele mesmo, à moda de Dionísio, mestre dos disfarces, essa imagem fosse muito cara para Morrison, principalmente pelo fato de entronizar o espírito dionisíaco num contexto original, do autóctone ianque. Ou aquele a quem ele se identifica e projeta o
Dionísio de Nietzsche, mesmo que de forma anacrônica, já que a imagem do xamã não possui cognato na cultura grega.

O insight de miscigenar as formas de “transe” da tragédia grega ao palco do rock, passando pelo jazz e pelo free speech típico das leituras beat dos anos 50 foi uma interessante contribuição dos Doors ao rock num período em que este gênero musical que, no começo dos anos 60, havia ressurgido depois de um período de estagnação, no fim dos 50, estava à procura de um certo grau de maturidade.

Porém, é como se o modelo comercial de rock fosse “apolíneo” em excesso, cooptado pelas regras da indústria fonográfica, domesticado do seu primitivismo “dionisíaco” pré-Elvis, ao mesmo tempo que carente de um conteúdo poético que transcendesse a mera execução da música.

A partir dali, também influenciado por cantores-compositores como Leonard Cohen e Bob Dylan, o rock buscasse esse projeto de ‘retorno’ à arte das musas. De certa forma, os Doors, a despeito de todos os estereótipos “simplistas” (com o perdão da redundância), acreditava que um estilo tão “tacanho” como o rock pudesse aspirar à essa transcendência estética.

A ótica, nesse momento, transcende a lógica em favor do elemento cênico. É justamente esse paroxismo que, no roteiro, caracteriza, em todo o seu cúmulo, a ideia de Jim Morrison como o Dionísio moderno, a transposição do rito órfico, o momento em que vemos a aliança fraterna das duas deidades artísticas, como em O Nascimento da Tragédia.

De onde haveremos de derivar esse milagroso autodesdobramento, essa quebra do aguilhão apolíneo, se não da magia dionisíaca que, excitando aparentemente ao máximo as emoções apolíneas, é capaz, não obstante, de obrigar essa superabundância da força apolínea a ficar ao seu serviço. O mito trágico só deve ser entendido como uma afiguração da sabedoria dionisíaca através dos meios artísticos apolíneos; ele leva o mundo da aparência ao limite ao que este se nega a si mesmo e procura refugiar-se no regaço das verdadeiras e únicas realidades (Op. Cit, p.131)

Stephen Davis entende que, desde o começo, Morrison fazia uma clara analogia entre o nascimento do rock e o nascimento da tragédia.
Ao mesmo tempo que ele o rock era a síntese do apolíneo e do dionisíaco, ele era a síntese da música europeia e do material folclórico norte-americano. “Gosto de pensar na história do rock como a origem do drama grego. Isso começou no rés-do-chão durante a estação crucial, e começou com um bando de acólitos dançando e cantando. Assim, um dia, um homem possesso pulou para fora da turba e começou a imitar um deus” (Op. Cit, p. 246).

A Cultura Beat fez a ponte necessária ao incluir, em seu culto ao Bebop e, por conseguinte, a integração racial. O rock deu um novo status á artistas negros, antes segregados. Sua música seria a moldura essencial que iria galvanizar o rock, a partir dos anos 50.

Como Nietzsche entendia a ópera como o ‘filtro’ apolíneo pelo qual a arte dionisíaca poderia se expressar, o blues e o jazz, como gêneros primitivos, de raiz negra, no âmbito do rock psicodélico, seriam o veículo de expressão do rock e para a arte de Morrison.

Os Doors usavam basicamente dos mesmos princípios da música ligeira, isso é, do pop comercial. No entanto, ao misturar a experiência da expressão cênica e a temática referente à poesia ditirâmbica, ele criava um tipo diverso de comunicação com o público: ao invés do delírio convulsivo das “white socks” da beatlemania, o material temático dos Doors, misturando Brecht, poesia beat, a circularidade sonora do blues – aqui já eletrificado na voga do rock psicodélico, ele busca uma nova atitude por parte da plateia. A sua arte, no âmbito do rock, vira um “festival sagrado” em versão pop, uma versão sui generis do padrão da música ligeira tipificada pelos Beatles e congêneres.

3. Stone e Nietzsche: incidentes dionisíacos

Podemos entender a concepção do roteiro de Oliver Stone no filme The Doors em dois planos. Um no tocante à reelaboração moderna do mito do poeta trágico segundo a concepção nietzschiana. No outro, já no plano do enredo, o choque entre a figura (real-ficcional) exótica de Morrison diante do estabilishment.

A partir do flashback, eles começam no UCLA (Universidade da Califórnia), em 1965, com Ray e Jim tentando deslanchar uma carreira de cineastas. Eles dividem um bangalô em Venice, no balneário de Los Angeles. Eles compartilham sua frustração com a sétima arte e decidem partir para o lado da música. Manzarek apresenta Densimore (Kevin Dillon) e Krieger (Frank Whaley) e eles formam os Doors. Jim apresenta sua poesia a eles e o quarteto começa a ensaiar.

Num encontro, na praia, Ray pede para que ele mostrar suas canções. Ele mostra “Moonlight Drive”. Depois pergunta de sua temporada no deserto:

- Êxtase, loucura...
- Vamos montar uma banda de rock’n roll! Vai ser uma bomba, Jim! Eu sinto no ar! As pessoas querem lutar ou transar, amar ou matar. O Vietnã, ele está bem ali, cara, eles estão tomando partido. Vai arder tudo em chamas, cara! Esse planeta quer mudar, Jim Morrison, nós precisamos criar os mitos.
- Eu acho que deveria haver algumas orgias, sabe? Quando Dionísio chegou à Grécia, ele deixou todas as mulheres malucas, abandonando suas casas, é... Eu acho que devia ter grandes cópulas pelas ruas de Los Angeles..
- Vamos nos chamar “Dionísios”!
- Eu já tenho um nome. The Doors.
- As “portas!”
- Portas da mente!
- Ah, “portas da percepção”! A citação é de william Blake, na verdade. “Quando as portas da percepção foram limpas, todas as coisas aparecerão como elas são”.

Em alguns meses, eles começam a fazer o circuito boêmio da Sunset Strip. Desde o começo, havia o enlace do blues com as performances beat-poéticas de Morrison.

O resultado divide o público: uns acham a apresentação excêntrica e os rejeitam; outros aprovam, e alguns, como Jack Holzman, da Elektra, decide gravá-los.

A partir daí, começa a trajetória dos Doors rumo ao estrelato. Ao mesmo tempo, essa tensão entre a postura histriônica, arrogante e lisérgica da banda provoca uma série de tensões, que chegam a um cúmulo, o enfrentamento com a justiça e o exílio voluntário de Morrison, em 1970.

Stone começa mostrando falas de Morrison declamando em off sua poesia misturada a citações de Nietzsche no filme: “todas as grandes coisas devem usar máscaras assustadoras, a fim de se fincarem no coração dos homens” ou “este mundo é o desejo de poder, e nada além disso”.

Em Stone, por sua vez, podemos entender como se Morrison fosse Dionísio encarnado num jovem universitário (essa é uma das falas de Jim a Ray, na praia, logo no início, contando-lhe a respeito do mito) tentando impor sua arte numa Hélade que é a América dos anos 60, fruto do homem teórico, enfim, o que podemos chamar da hegemonia de um modo de coesão social “institucionalizada” pelo estado.

A postura de Morrison na sua trajetória, em Oliver Stone, é um embate permanente do artista querendo derrubar limites – limites estes que, mais do que os da percepção, são os da ordem instituída. Ele é o homem esquiliano metamorfoseado de poeta do rock na pólis do (usando a expressão nietzscheana) “serenojovial alexandrino”.

Um trecho do filme, o da coletiva de imprensa, ilustra a distância entre a expectativa dos repórteres diante de perguntas objetivas ao receber respostas tão presunçosas quanto enigmáticas:

P: De que falam suas músicas, sr. Morrison?
R: Amor, morte, viagem, revolta (...) estamos interessados no caos, desordem, atividades que não têm significado nenhum.
P: O que acham das péssimas críticas ao seu livro de poesias?
R: eu acho que eles não entenderam.
P: Acredita em drogas, sr. Morrison?
R: Acredito em excesso.
P: E quanto ao álcool ser ligado ao xamã?
R: É o estilo americano, que gasta mais com tabaco e álcool do que com educação.
P: Acredita no sucesso?
R: acredito num longo e prolongado caos psíquico e dos sentidos para alcançar o desconhecido (pausa). Eu vivo no subconsciente. Nossa razão pálida esconde um infinito. Sente dor? O que lhe dói mais? (silêncio)

Na sua ‘ética’ dionisíaca, o palco se transforma, volta à era trágica. Isso é notável desde a sua performance no filme na cena em que ele é expulso do palco do Whisky a Go-Go depois de representar o parricídio e incesto em “The End”.
Apenas quem o entende é um produtor, Paul Rotschild (Michael Wincott), que vê, na atuação dos Doors, um amálgama de Beckett, Sófocles, Brecht, e quer gravá-los.

O filme teoriza ostensivamente, dadas as recorrentes citações à mitologia grega ao falar de Morrison no objetivo de fundar uma banda de rock para quebrar todas as barreiras e perspectivas estanques de um universo em mudança, no auge do movimento flower-power.

Os Doors eram um produto da nova onda do rock norte-americano dos anos 60, cujo ponto de partida era a costa leste, o berço da geração beat.

O quarteto ganhou proeminência numa cena musical onde a cultura psicodélica florescia, com músicos que faziam o crossover entre o rock, o jazz, ritmos latinos, juventude universitária, marginalia, drogas recreativas e toda a boemia típica desse contexto, como os beatniks, porém baseado em San Francisco-Los Angeles, porém em escala mundial.

Stone apresenta a trajetória de Jim Morrison a partir de flashbacks, desde o incidente quando ele viu um índio morrer na estrada – a fundação do próprio mito de Morrison/xamã/Mojo Rising, sua experiência como aluno na UCLA jugando-se incompreendido como jovem cineasta citando Nietzsche. Tudo isso culmina na fundação da banda, em 1966.

Nota-se, a partir da formação dos Doors, é a postura cênica da banda, capitaneada por Morrison. A despeito da resistência dos seus colegas, ele impõe a sua poesia.

Uma cena que cifra perfeitamente o conflito entre a moral da época e a “moral” dionisíaca” de Jim é o incidente num bar da Sunset Street: o dono do estabelecimento os expulsa após a cena edipiana risqué de “The End”. Mesmo diante da plateia perplexa, Rotschild, ao contrário do dono do bar, reconhece neles alguma qualidade, e os convida para gravar, sem restrições.

A postura dos Doors, e mais precisamente a de Morrison é retratada pelo roteiro como o enfant terrible. A postura excêntrica é sempre salientada em várias cenas, porém sempre ressaltando algum tipo de conexão com o “leitmotiv” dionisíaco.

Outro episódio, esse real (e quase perfeitamente ficcionalizado em The Doors, de acordo com Robbie Krieger), foi o banimento do quarteto depois de não seguirem o decálogo do programa Ed Sullivan Show (que era exibido ao vivo domingo à noite, de costa a costa, para milhões de telespectadores) em alterar um trecho da letra de “Light My Fire”. Eles fingem obedecer (a expressão “get high” era equivalente, na época, à palavra F, por exemplo). No palco, eles cantam a letra inteira, para a perplexidade do staff do programa.

Nessas cenas, é possível entender que Stone faz uso do exagero nas falas e caracterizações de forma a teorizar sobre o papel da banda em ter uma ‘proposta’ (culto ao caos, à desordem social, como na coletiva de imprensa) que, no caso, alude sempre à uma postura livre diante da vida – porém sem parecer panegírico, ele venda a imagem pela sua conduta e pela música.

Isso porque o roteiro não deixa de expor os erros, as falhas e todas as efemérides relativas à sua postura no sentido de querer quebrar todos os limites (e entre os flashbacks, Morrison se explica, em retrospectiva). Porém, como um herói trágico de carteirinha, ele paga o preço de sua audácia, e isso vai ficando cada vez mais evidente.

O fecho possível de Stone no filme em trabalhar o imaginário do xamã associado (e sua relação apócrifa com bruxaria, por conta da sua relação com Patrícia Connely a Morrison naturalmente se presta mais à fabulação do que à realidade. Nos dois casos, vemos o personagem caracterizado como em transe com alguma forma de situação primitiva ritualística, onde, como diria Nietzsche, “ a liberação dionisíaca das cadeias do indivíduo”.

O fato de Jim apresentar-se na história ébrio (ou sempre com uma garrafa na mão) em quase todas as cenas é outro fator que o mostra sempre em transe, com sua poesia palavrosa, uma atitude excêntrica e desmedida e em palavras de ordem, cujo ápice é uma apresentação, em Miami, onde a cena criada por Stone, com efeito, transcende qualquer verossimilhança em nome da própria fábula dionisíaca de representar Morrison, já transmudado num sátiro, de barbas e roupas negras, no meio do público, num paroxismo onde palco e plateia se fundem.
Temos aqui uma perfeita representação do “orfismo dionisíaco” do rock. É pura fabulação, já que sabemos da distância do palco da plateia nos concertos de rock. Mas aqui, ela demonstra aquilo que Morrison pensava a respeito da apropriação do ethos da “Grécia esquiliana”.

A tragédia absorve em si o mais alto orgiasmo musical, de modo que é ela que, tanto entre os gregos quanto entre nós, leva diretamente a música à sua perfeição, mas, logo a seguir, coloca a seu lado o mito trágico, como o qual, então, como um poderoso titã, toma sobre o dorso o mundo dionisíaco inteiro e se alivia dele enquanto, em parte, graças à esse mesmo mito trágico, sabe libertar-nos, na pessoa do herói trágico, da ávida impulsão para essa existência, e com mão admoestadora, nos lembra de um outro ser, de um outro prazer superior, para o qual, o herói combatente, cheio de premonições, se prepara com a sua derrota e não com suas vitórias”(p.125).

Ainda que Morrison possa parecer, aos olhos do espectador menos atento, apenas mais um roqueiro hedonista, adepto da heterodoxa tríada do “sexo, drogas e rock’roll”, se apresenta aqui como a representação cinematográfica do sátiro helênico: ele desce para o público e todos cantam atrás dele, ao som da música, como se fosse o flautista de Hamelin.

A cena (1:50:00) sintetiza a imagem do poeta imerso no meio do espetáculo, levando todo o coro consigo. Esse trecho, com efeito, não ocorreu daquela forma (daí a crítica geral a respeito da versão de Stone), mas presta-se à resumir os motivos que aparecem desde o começo da história e culminam nessa cena.

O final, como se a realidade de fato servisse tão bem aos propósitos da tragédia (daí a forte e circular conexão do artista e do mito Morrison-Dionísio) mostra o líder dos Doors pagou um preço de seus excessos, mas menos para a sua visão de mundo (em vez de uma vida boa e longa, resolveu encarar seu destino de frente e morrer jovem, como Aquiles), e mais por desafiar a ordem instituída (é condenado e morreu com o processo em julgado. No retorno dos flashbacks, ele conclui sua última sessão de gravação, e parte para um exílio voluntário na França, onde morre, de overdose de heroína, em 1971.

Ele não vê saída, a realidade vence. A solução é a fuga e a morte –uma morte sórdida num quarto de hotel, longe de casa, mas que mais parece uma auto-imolação. O seu fim (na ótica do filme) perfaz a trajetória do herói trágico, a sua queda solitária e sua morte para a sua remissão (e a nossa).

Por conta disso, a ótica do roteiro busca fazer um “diálogo” entre o personagem de Morrison como uma recriação do mito dionisíaco num contexto onde a moralidade da época, no auge do movimento contracultural assomava os Estados Unidos e o líder dos Doors se mostra, na leitura de Stone, como um demiurgo que, como um Prometeu moderno, quer dar a luz aos homens e morre por isso.

É possível interpretar o pensamento hedonista de Morrison pela sua conduta. Porém, numa primeira leitura, podemos entender que se trata de um falso hedonismo, assim como muitas vezes ocorre numa leitura superficial da Geração Beat, pelo menos na literatura de Jack Kerouac, por exemplo. Isso pode ser explicado pelas reservas que tanto ele quando Morrison tinham a respeito dos hippies.
Porém, da mesma forma como o idealismo da geração beat era resumida à simples transgressão, Jim age livremente pela sua arte, pela sua potência de agir, ou como Berguson chamaria de élan vital.

Ele age pela sua ética e pelo seu ideal estético, enfrentando a sua realidade de viver, sem medo e sem arrependimento – porém, pagando o seu preço como uma vitória de Pirro, confrontando em parte a moralidade da época e, por outro, a queda de consumir-se como
Dionísio até o seu fim ou a sua queda.

No último diálogo entre Robbie Krieger e Jim Morrison (Val Kilmer), aquele diz: “eu fiz música com Dionísio!”.
Porém, a ‘morte’ de Dionísio lhe franqueou uma certa aura de santidade. Ele não morre pelos pecados da humanidade, mas seu mito renovado (Morrison/Dionísio) se transforma num exemplo atraente de redenção social e individuação pelo excesso e transfiguração, pela consciência de si mesmo, mas na busca de algo “sagrado”, que singra além de qualquer excesso – esse é o exemplo de outros que o inspiraram, de Artaud, Rimbaud, Huxley, Céline, Brecht e Kerouac até Nietzsche.



NOTAS:
(1) NIETZSCHE, Frederik. O nascimento da Tragédia. Companhia das Letras, 1992.
(2) DAVIS, Stephen. Jim Morrison: Life, Death, Legend, Ebury Press, 2004.
(3) GOLDSTEIN, Richard. Interwiew. http://mildequator.com/interviews/published.html (acessado em 16/06/2015)
(4) NIETZSCHE, Frederik. On Music and words: A Fragment from 1871 http://people.uta.fi/~simo.aaltonen/outsider.pdf (acessado em 20/05/2015
(5) DOORS, LA Woman, Elektra, 1970.


REFERÊNCIAS:
DAVIS, Stephen. Jim Morrison: Life, Death, Legend, Ebury Press, 2004
NIETZSCHE, Frederik. O nascimento da Tragédia. Companhia das Letras, 1992.
The Doors (filme) http://megafilmesonline.net/the-doors-o-filme-dublado/ (acessado em 27/06/15)