Friday, November 27, 2015

Bonfim de Ponta a Ponta


Cartaz do documentário "Filme Sobre um Bom Fim"


Antes de assistir ao "Filme Sobre um Bom Fim" eu havia lido o Esquina Maldita (1), do Paulo César Teixeira duas vezes. Por coincidência, após a primeira sessão do documentário na Sala redenção, na noite terça passada, fui coincidentemente apresentado à uma das entrevistadas da película, a Polaca, plena Lancheria do Parque. No meio da conversa, perguntei se ela havia lido o livro, e ela respondeu que não.

Pois desse encontro que eu resolvi juntar as duas pontas. A despeito de ter sido lançado há pouco mais de três anos, a obra do Paulo César — que é um dos primeiros depoimentos do filme, perfeitamente ambientado numa das mesas do Marius ainda é pouco conhecida. Minha impressão é justamente a de que o filme parece começar quando o livro termina.

Teixeira praticamente fez um belo documentário sobre a cena cultural que ocorreu no Bonfim a partir da Esquina Maldita. Aquela cena surgiu no final dos anos 60, na esquina das ruas Sarmento Leite e Qswaldo Aranha justamente porque, naquele tempo, todos os cursos de Humanas da UFRGS ficavam no Campus Centro.

Por causa disso, todo o movimento jovem culturalmente engajado passava pelos bares da região. Aquela foi a primeira cena "jovem" daquela região, porém antes do túnel — pegando o mote de um (também pouco difundido) livro do Juremir Machado da Silva que tenta, como eu aqui, juntar as pontas do Bonfim (2).

O Esquina Maldita trata primeiro da forma, o surgimento de bares como o Alaska e o Copa 70 para, num segundo momento, lidar com o conteúdo, os personagens daqueles dias políticos, suas histórias e seus dramas. Na verdade, ao contrário do que foi o movimento oitocentista, o Bonfim da Esquina Maldita tem os seus momentos de idealismo, mas é uma história triste.

Naquele momento, nasciam os festivais universitários de música e de teatro e os primeiros movimentos políticos estudantis na capital. Porém, o clima de repressão era cada vez maior. A polícia dava batidas surpresa nos bares da esquina. Se havia um clima de liberação sexual ali, ele era restrito. Como se sabe, era impensável, no começo dos anos 70, uma aglomeração de pessoas como as que eram comuns no Escaler, quinze anos depois.

Fora que muitos dos que romperam com o PCB e realmente partiram para a luta armada, não voltariam. No livro, vemos inúmeras histórias políticas daqueles que acreditavam, como ocorrera em Cura, era possível derrubar o regime através de guerra de guerrilhas. em pouco tempo, aquela esperança e aquela utopia transformou a Esquina numa espécie de reduto do desbunde porto-alegrense.

Assim como vemos no documentário do Boca Migotto, existia uma resistência à repressão. Porém, ali, ela não era apenas política, mas cultural também. O provincianismo e o bairrismo, que são questionados pelas vozes do documentário, nos anos 70, faziam as regras. O livro do Paulo César Teixeira consegue captar esses momentos felizes em que aquela juventude, à sua maneira e mesmo sendo cerceada em todos os campos, estava plantando muito do que vemos hoje, nos movimentos pelos Direitos Civis — e isso explica a atualidade de um ícone da Esquina, a Nêga Lu que, não gratuitamente, ganhou uma biografia este ano, publicada pelo mesmo Teixeira.

O provincianismo e a ditadura cultural dos anos 70 era forte o suficiente para explicar aquilo que não aconteceu ali, mas que foi florescer e explodir com toda a força "depois do túnel" (da Conceição, da construção da elevada e geograficamente também), a partir do show Deu Pra Ti, de Nei Lisboa e do Augusto Licks (1979), que desaguaria na produção cinematográfica do Giba Assis Brasil e do Nelson Nadotti.

Aliás, o leitmotiv tanto do filme quanto do documentário é, justamente, aquele traveling que junta as duas pontas do Bonfim, da Sarmento até o Trianon. O meio do caminho é justamente o Ocidente que, por sinal, é quase que o elo que une as duas pontas do Bonfim.

A Esquina Maldita teve a sua história resgatada mas, se houve um saldo positivo, foi o de abrir caminho para os anos 80. Antes do túnel, muita coisa ficou represada. Os espaços culturais eram, praticamente, espaços de resistência. Se houve um elemento que desse forma àquele substrato cultural setentista, ele foi a resistência. Com a abertura política, esse elemento latente da Esquina, aos poucos saiu do gueto e foi situar-se à esquerda do espectro ideológico partidário. Contudo, o seu palco, agora era outro.

A cena havia mudado. Talvez isso explique por que o movimento oitentista no Bonfim foi, com efeito, um movimento estético. pelo menos, pegando como eixo o documentário, houve o surgimento de um sem número de espaços culturais. A prática de fazer cultura, a explosão do rock como um fenômeno de massa (e não como coisa de magro trique-trique rolimã e tomador de panca dos 70), o surgimento das emissoras de rádio em frequência modulada (a Bandeirantes FM e, depois a Ipanema) criaram o palco natural para que todo esse movimento surgisse.

Agora, o Bonfim, pelo menos por uma década, deixou de ser um gueto (com os negros e com os judeus primeiramente, depois com os estudantes da esquina Maldita) para tornar-se uma arena cultural. O fim da ditadura viabilizaria as aglomerações de público; as novas tecnologias (3), como o vídeo, permitiram que as pessoas tivessem acesso ao que vinha de fora. As FMs, por sua vez, iriam tribalizar esse público. Como diz o Egisto a folhas tantas, no documentário: o Bonfim não era mais o bairro dos seus moradores, mas um catalisador de todos aqueles que sintonizavam com essas boas vibrações.

No meio do filme, aparece Claudinho Pereira lendo o seu livro de memórias (4). Ali ele cita, para lá de en passant, algo que passou quase batido: o Fedor. Ou Shitink, ou Serafim, o estabelecimento tem um subcapítulo de outro livro (5) do Juremir (que é uma das vozes do documentário) e é uma das histórias que limitaram-se a rasantes no filme do Boca Migotto. Aliás, a autobiografia do Claudinho conta uma história curiosa: havia um acordo "logístico" entre o Fedor e o Zé do Passaporte (outro que passou batido) para que o primeiro só vendesse bebidas, o segundo lanches; dessa forma, um não entrava no negócio do outro e, de quebra, se complementavam: você bebia até cair no Serafim, e depois ia matar a larica no Zé...

O Serafim pegou fogo e virou aquele prédio (da esquina da Fernandes com Oswaldo) da matéria de arquivo do Peninha no Prá Começo de Conversa. A versão oficial é a de que a causa do sinistro foi o forno de uma pizzaria, que ficava nos fundos do Fedor. A não-oficial, amplamente difundida pelo saudoso Sampaulo, é a de que uma empada do Serafim explodiu, em pleno balcão. Dentro muitos ex-frequentadores (entre eles, Moacyr Scliar), essa era a causa mais provável.

Mas a repressão também batia no outro lado do túnel: o Fedor também também tinha problemas com a polícia, tanto pela venda de drogas nos arredores quanto ao carteado do Fluminense, clube que ficava no andar de cima do estabelecimento — e que também virou cinzas.

O livro Noite dos Cabarés tem a ver com o eixo "boêmio" do filme, e que salta aos olhos aos espectadores de hoje e que, naturalmente, não vivenciaram o que foi o Bonfim dos anos 80. Do Lola (João Telles) até a Fernandes, havia, contando o Mercado, pelo menos sete botecos. Isso sem contar o Escaler e os que nasciam e desapareciam à roda do HPS e do Maomé. Porém, no novo contexto da pós-modernidade, segundo Juremir, aquela discussão política bizantina dos tempos da Esquina transformou-se em hedonismo puro ou, usando um eufemismo eficiente, mero papo de boteco.

Os freaks bebem e dormem nas calçadas. Sentados nos degraus, consomem Valium e exibem sua miséria. No Bar João, eles lembram Janis Joplin e dizem que "toda política é suja". Bebem cachaça e execram os grupos que os sucederam. Tido como local de violência, o Bonfim não pode escondê-la. Mas luta para evitar a neurose da classe média. Sua guerra, antes de tudo, é visual(p.73).

O livro, no entanto, entra num eixo naturalmente não explorado pelo documentário que é, de certa formam, um corte antropológico na tipologia e análise das diversas tribos que compunham as tribos jovens do Bonfim. Intelectuais modernos na Lancheria, new romantics e a boemia bem vestida no Ocidente, freaks e rockers no João e pela Oswaldo afora. De certa forma, houve a mudança, da primeira geração, compulsoriamente reprimida e desbundada até talvez por falta de opção pelas saturnais a céu aberto do que foi os anos Berlim-Bonfim da segunda metade dos anos 80.

O fim daquilo, de certa forma, pode ser explicado por uma certa estagnação daquela ciclo. Tudo aquilo estava ligado ao contexto da abertura democrática e, com o tempo, deixou de ser novidade. O que é possível vislumbrar em perspectiva é, pegando as duas pontas da Oswaldo, como um travelling histórico um pouco maior do que o da abertura do Deu Prá Ti. A Esquina Maldita, por seu turno, foi o princípio de algo que estava manifesto e que evoluiu num tempo e espaço. Uma das leituras possíveis dentro do espectro do tema — que foi tratado de forma sublime no documentário.

É possível contestar a validade daquele movimento. De repente, todos estavam fazendo história, e não sabiam; ou, por outra, achavam que estavam escrevendo a sua trajetória para a eternidade, e que eram apenas uma versão farofa e terceiro mundista da Rive Gauche ou do Village, como disse o Peninha. na verdade, isso é o que menos importa aqui.

O que interessa é que essa história aconteceu. Hoje, ao desavisado e maravilhado espectador do "Filme Sobre um Bom Fim", pode parecer inacreditável que a região entre o Araújo Vianna e a volta do Mercado do bairro lotasse de gente até no lustre (na ponta de cá do Bonfim) — da mesma forma que uma malfadada utopia estudantil e meninória (como diria o Carlos Reverbel) existiu na Esquina Maldita (na ponta de lá). Talvez a mais acachapante das tantas belas imagens do documentário seja a do areal da frente do Escaler (hoje uma cafeteria, como os arautos da lei e da ordem preferiram) apinhado de gente, num domingo de tarde — aquilo aconteceu em Porto Alegre.




(1) Esquina Maldita. Libretos, 2012.
(2) Antes do Túnel - uma História Pessoal do Bom Fim. Editora da Cidade, 2007.
(3) Mauro Borba, Prezados Ouvintes. Artes e Ofícios, 1996. ele cita, no livro, exemplos como home vídeos com shows do Cure — numa época em que não existia Youtube e poucos possuíam vídeo-cassetes. Fora o sem- número de casos em que tanto lançamentos internacionais como as da Vanguarda Paulistana chegavam á Porto Alegre através de fitas-cassete, então ainda difíceis de se conseguir
(4) Na Ponta da Agulha. Editora da Cidade, 2012.
(5) A Noite dos Cabarés, Mercado Aberto, 1991.

No comments: