Saturday, August 22, 2015

O Eterno Retorno da Jovem Guarda


A trindade santa: Erasmo, Wanderlea e Roberto


Corro a vista nas matérias que saíram nos últimos dias sobre os 50 anos da Jovem Guarda. Pelo tom da maioria delas, noto que é impossível não cair no clichê. Porém, mais forte do que isso, é a força do mito e da consequente onda de nostalgia que o movimento, capitaneado pelo cantor Roberto Carlos a partir de famoso programa homônimo dos anos 60.

A Jovem Guarda sempre será, na memória daqueles que a viveram (e também na daqueles que sequer eram nascidos) uma época de ouro da música. Pelo menos no sentido de que a Jovem Guarda é, com efeito, a trilha sonora de toda uma época, ela é (já caindo no clichê) um símbolo daquela visão de mundo.

Afinal de conta, havia os bailes, as reuniões dançantes, os Beatles no cinema. Voltar à Jovem Guarda é voltar à época sagrada da juventude. Ouvir um disco rachado do Renato & seus Blue Caps, para quem viveu a época, é como ser proustianamente raptado a um tempo que parou no tempo.

Não existe, pelo menos na história da cultura do século XX, um estilo musical que sintetize tanto um espírito de época que seja revisitada de forma tão obsedante como a da Jovem Guarda. Existem os nostálgicos do desbunde e da contracultura dos 70, do BRock balonê dos anos 80; no entanto, o grande eterno retorno é a Jovem Guarda.

Não entro aqui na discussão a respeito da famosa querela entre o pessoal da MPB e a Jovem Guarda, assunto de dezenas de teses e livros. Ainda não se chegou a um termo se ela era realmente um movimento musical; seus detratores (e eles sempre existem), dizem que não passava de um fenômeno mercadológico.

Ao mesmo tempo, acusam a Jovem Guarda de alienante (1) – acusação feita pela “linha dura” da MPB da Era dos Festivais e acusação esta que, por sua vez, perdura até hoje.

Mas não é essa a questão. O problema aqui não é lembrar da Jovem Guarda para salientar pontos “negativos”. A música jovem naqueles moldes foi um fenômeno em escala mundial. Propagada pela invasão das bandas britânicas, a partir de 1964, o poder da “música jovem” invadiu as paradas e o mundo.

O pulo do gato da Jovem Guarda, na verdade, não foi o programa. Como podemos ler no livro de Paulo César Araújo sobre Roberto Carlos (2), tudo se deveu a um twist of fate: Roberto estava na geladeira como segundo cantor jovem da CBS, atrás de Sérgio Murilo.

Este, em litígio com a gravadora, abriu espaço para o jovem cantor de Cachoeiro do Itapemirim. Já o futuro parceiro de Erasmo teve uma ajuda do destino. Foi quando Evandro Ribeiro passou a responder pela direção musical do selo, no lugar de Roberto Côrte Real.
Com Evandro, Roberto passou a ter mais autonomia em estúdio.

Esta era a grande questão para se entender o fenômeno da Jovem Guarda em seu começo. No Brasil, até ali, era praxe nas gravações que todo o cast fosse providenciado pela gravadora. Para tanto, bata que ouçamos os primeiros sucessos do rock nacional. Celly Campelo, Sérgio Murilo, Carlos Gonzaga, Ronnie Cord, todos gravavam com o auxílio de músicos de estúdio.

Pois coube a Roberto – e esse é um mérito dele – pôr o pé na porta e convencer Ribeiro a gravar músicas dele, e gravadas por gente jovem, não por pés-de-boi de estúdio que, por sinal, não sabiam ou sequer gostavam de rock.

Em resumo: num primeiro momento, essa foi a revolução da Jovem Guarda, e isso quando ela ainda não tinha esse nome. Uma ideia simples, mas que ninguém até então tinha pensado em executá-la: música jovem para gente jovem. Nada de tão revolucionário assim.

Afinal, os Beatles e Bob Dylan já faziam isso há algum tempo. O grande desafio era convencer os executivos de gravadoras de que aquele tipo de som “exótico” era radiofônico, tinha público e era tão rentável quanto os boleros de gente como Anísio Silva, Lucho Gatica e Altemar Dutra nas listas dos mais vendidos.

No Brasil, até então, rock era algo que era explorado pelas gravadoras de forma apenas parcial. Acreditava-se que fosse um fenômeno passageiro, mesmo com os Beatles. O que bateu o martelo a favor da Jovem Guarda foi a sua viabilidade comercial. A prova de fogo, como diria Wanderléa, era conquistar a televisão.

O dia 22 de agosto de 65 na história do nosso rock é o 9 de fevereiro de 1964 para os Beatles: é quando a música jovem, já sob a alcunha de “Jovem Guarda”, tomou de assalto as mentes e corações do público.

A partir dali o rock brasileiro, se não estava atingindo a sua maturidade, pelo menos já estava estruturado com bons compositores (Erasmo, ainda antes de ser intérprete, já era compositor quase profissional, fazendo versões brasileiras de canções estrangeiras).

Roberto já tinha uma banda. As gravadoras começavam a formar um cast para a demanda de público. Pouco a pouco, jovens intérpretes já pontificavam nas rádios a partir de São Paulo – onde tudo explodia musicalmente naquele tempo.

O que a tevê fez, a partir daquele 22 de agosto de 65 foi, aí sim, explorar merdadologicamente a franquia “Jovem Guarda”. Tudo era Jovem Guarda. Até o que não era rock.

Era o rock brasileiro ganhando fumos de Indústria Cultural. O rastro disso foi que, nos quatro anos seguintes, o movimento (e, sim, eu defendo que, pelo menos e, também, comercialmente, ela foi um movimento) foi explorado à exaustão.

Esse, talvez, fosse o começo do fim. Nesse curto espaço de tempo, o que era um movimento subterrâneo de uma garotada do subúrbio carioca a favor da “música jovem” foi capitaneado pela indústria fonográfica. Selos e mais selos andavam pelo Brasil á cata de novos talentos, novos cantores, novos compositores. Todas queriam achar um novo Roberto Carlos, numa nova Wanderléa.

Todas passaram a produzir novos astros em escala fordista: um novo cantor, um novo compacto, uma nova versão brasileira de um rock estrangeiro. Tudo era Jovem Guarda. Até o que não era rock. Os produtores das gravadoras já haviam “manjado” o esquema. O esquema, por sua vez, começou a virar clichê. Muitos cantores, como Wanderley Cardoso, gravavam como nos tempos do Sérgio Murilo, com músicos de estúdio.

O grande problema da Jovem Guarda (que era dela e que concorria contra ela) era o excesso de versões brasileiras. Não sei se existe uma estatística, mas uma parte considerável da produção do gênero é oriunda de traduções tanto do rock britânico ou norte americano quanto do pop italiano, que fazia muito sucesso no Brasil.

Não que fosse um problema da Jovem Guarda: tanto antes, quanto depois (e hoje e sempre), o nosso mercado fonográfico é uma fábrica de versões brasileiras. É o que a gente poderia chamar de “rock Herbert Richards”.

Se levarmos em consideração apenas os grandes sucessos do Renato & seus Blue Caps, eles são grandes tributários dessa prática. Seus grandes sucessos são, em grande parte, oriundos de versões dos Beatles. O curioso disso é que, se levarmos em conta a fase iê-iê-iê do quarteto de Liverpool, ela foi explorada á exaustão.

O "porém" é que a Jovem Guarda sucumbiu ao experimentalismo progressivo da banda – e a própria Jovem Guarda se ressentiu disso também. Tanto é que, do Rubber Soul em diante, as versões brasileiras do conjunto inglês desapareceram.

Acho que essa é uma questão pouco explorada no que se diz respeito à questão rock-Jovem Guarda. Com o passar dos anos, enquanto a primeira parte do binômio evoluiu lá fora, a segunda parte, aqui no Brasil tornou-se, sob os auspícios das gravadoras, um gênero “conservador”. Tudo o que se pensava musicalmente em escala nacional, passava necessariamente pelo crivo do comercial e radiofônico.

Por isso é tão difícil entender onde começa o rock e onde termina a Jovem Guarda, e vice-versa.

Quando a JG morreu como movimento e como fenômeno de comunicação de massa, com o fim do programa, o rock tomou um rumo que ou abraçava o tropicalismo – talvez a continuação da linha evolutiva do rock tanto quanto da Bossa Nova, como defendia Augusto de Campos, ou caia na clandestinidade. O Tropicalismo fez melhor para a linha evolutiva do rock nacional do que da Bossa Nova, que já estava deglutida na MPB.

O “espírito” rock sobreviveu nas tropicalices experimentalóides dos Mutantes, por exemplo. Contudo, pela trajetória da banda de Arnaldo Baptista pelos anos 70, pudemos ver que gravadoras não se interessavam por "música jovem" com linguagem que cotejasse o que era a vanguarda do rock. Postular o rock brazuca comercialmente nos 70 era um investimento pírrico, a fundo perdido. Isso numa época em que vinil valia e muito (até a Crise de 73). Ao rock, restou a contracultura. À distopia da Jovem Guarda, o pop brega das rádios AM.

O que restou como subproduto da Jovem Guarda, depois de 1969, ao que parece, já estava embalsamado pelo gosto das gravadoras. De comum acordo, todos resolveram embalsamar a Jovem Guarda. O que havia de “comercialmente viável” e/ou “de formato radiofônico” foi um pop quadrado e moldado para os fãs de Roberto Carlos e companhia que, por sua vez, já estava mais crescidinho.
Nesse momento, o rock já estava dissociado do que era a Jovem Guarda. fazer rock ou “música jovem” fora do esquemão das gravadoras era uma aventura. Era algo como pregar no deserto.

O formato clichê da Jovem Guarda, entronizado pelo Lafayette, principalmente nos discos de 66 e 67 de Roberto Carlos, viraram a base para a produção desses egressos do gênero, agora moldados como cantores românticos (3) como Reginaldo Rossi (que apareceu com um cover de “Deixa de Banca”, de Eduardo Araújo), Paulo Sérgio (emulando o “inimitável RC), Nelson Ned, Paulo Henrique (“Uma Lágrima”), Nílton César, entre outros, como Antônio Marcos. Ele começou com "Tenho um Amor Melhor do que o Seu" e tornou-se um dos grandes cantores dos anos 70 (hoje totalmente esquecido), com inúmeros sucessos.

O que a Jovem Guarda mudou nesse ínterim foi que, até 1964, a vertente “romântica” (prá não dizer “brega”) que aparecia nas paradas emulava boleros, de Orlando Dias a Anísio Silva. Depois de Roberto Carlos, a segunda onda do brega, em sua dialética voraz, já havia deglutido o bolero e instituído o upbeat da Jovem Guarda e o seu inefável tecladinho Lafayette.

E o rock? Aí já é outra história.

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Se a gente pega um tema como "O Bom", do Eduardo Araújo, é algo puramente brasileiro, ou "brasileiro". Como não é cover dos Beatles, soa completamente autônomo. Porém, sem o atavismo do que é o rock, esse tipo de canção da Jovem Guarda soa como alguma coisa com uma na bateria.

O nosso rock ainda tinha influência daquela produção pastiche "teen idols", que não tinha influência bem do blues, nem do R&B, nem do soul. O soul é algo vital para entendermos o mod inglês e o começo dos Beatles. No caso da Jovem Guarda, mais parecia uma música que nascia sem essas referências.

Tirando o cânone de Roberto, a produção de gente como Erasmo ou Eduardo Araújo é bastante original, mas sua originalidade reside no fato de ser um som jovem pop brasileiro associado ao que seria o rock brasileiro - resumido e racionalizado como o som da Jovem Guarda: existe bateria, guitarras e baixo elétrico, mas está próximo daquele pop ingênuo que inundava as paradas americanas antes da Beatlemania.

Em última análise, a Jovem Guarda foi e é, em seu tempo, uma evolução do que seria ou viria a ser o rock brasileiro. Mais do que apenas querer questionar o caráter não-militante (ou alienante) das letras (discussão na época do infame protesto contra as guitarras) é tentar entender que o som da Jovem Guarda, se for associada a o que chamaríamos de rock à brasileira, ele o é por falta de opção.

Muito embora, e isso é algo que surgiu numa espécie de onda revisionista, no final dos anos 90, de se revisitar toda a produção de rock e pop que apareceu no país entre 1965 e 1970 e que ficou longe do mainstream, isto é, o programa Jovem Guarda, tudo aquilo que foi modernamente rotulado de "Brazillian Nuggets", ou seja, o lado B da Jovem Guarda. Se formos pensar assim, à titulo de pesquisa, mesmo que de forma esparsa e mal divulgada, havia uma produção de rock nacional que "bebia da fonte" e que reproduzia esse modelo, porém, era uma turma que estava fora da grande festa de arromba da Jovem Guarda.

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Mas, nostalgias à parte, se formos levantar uma grande virtude da Jovem Guarda, mesmo passando pelo condão da Indústria Cultural, foi rejuvenescer a música pop romântica e varrer o Anísio Silva das paradas. Nada contra ele, mas a verdade é que quem emprestou essa nota modernizante à música brasileira a partir dali foi a Jovem Guarda e não exatamente a Bossa Nova. Se a Bossa Nova revolucionou a forma de se fazer música aqui, a Jovem Guarda reinventou o mercado do disco e do rádio e as formas de se pensar ambos.

Toda a indústria fonográfica passou a regurgitar o modelo que foi entronizado pela JG a partir de meados dos anos 60, tanto para o bem quanto para o mal. É comum franquear este pepel à Bossa Nova, mas sabemos que o gênero popularizado por João Gilberto paradoxalmente não era popular o suficiente para mudar o linguagem das gravadoras.

E a Jovem Guarda, via Roberto Carlos, também foi influenciada pela BN, e o cantor de "Quero que Vá Tudo para o Inferno", o piece de resistance do movimento, é o maior exemplo disso.

A influência da Jovem Guarda na questão da "linha evolutiva" (pegando emprestado a expressão já citada, de Augusto de Campos) da música brasileira, junto com a MPB nascente e o Tropicalismo, ou melhor, o fato de historicamente se desrelativizar a sua importância nesse processo "evolutivo", é um assunto ainda a ser discutido.



(1) Na verdade, a Jovem Guarda apenas pagava o preço da sua visibilidade. Afinal de contas, eles não foram os primeiros "alienados" e tampouco os últimos.
(2) Paulo César de Araújo, Roberto Carlos em Detalhes, Planeta, 2006.
(3) Um caso clássico é o Márcio Greyck, que tem um ótimo e esquecido disco de estreia no tempo das jovens tardes de domingo.

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