Monday, September 21, 2015

O Passarinho


Às vezes, depois da almoço, eu vou estudar num paradisíaco saguão do anexo do campus. Ali, há sofás macios, espaçosos e devolutos para jibioar à vontade nas primeiras horas vespertinas, principalmente depois das 13 horas, quando o período das aulas da tarde começa, e os corredores ficam sonolentos e vazios.

O saguão tem um pé direito grande, equivalente a dois andares. O espaço equivalente à divisória deles corresponde a um espaço que contempla uma visão privilegiada da rua, através de um janelão, cuja seção superior é composto por vidros que naturalmente não podem ser abertos. Esse mesmo janelão é dividido, na altura da separação dos respectivos andares por uma estreita soleira de concreto. Recuado, o andar de cima parece um mezanino com vista para a tarde fatigada que passa.

A visão é idílica; é possível enxergar, a partir das copas das árvores rentes ao frontão do prédio, o Planetário, a esquina da Ipiranga e seu movimento de carros e ônibus, o prédio antigo da Psicologia. De cinco em cinco minutos, o São Manoel encosta na parada logo em frente, e descarrega magotes de alunos.

Hoje eles foram surpreendidos pela chuva. O tempo pareceu seco pela manhã. Depois das dez, começou a precipitação. A chuva era esparsa; depois, o tempo abria, como se fosse formar-se finalmente uma tarde de sol aberto. Logo, nuvens escuras (azuladas) apareciam. Troveja: e todos correm para proteger-se da tempestade em marcha.

Foi quando ele apareceu. Um dos sabiás que cantam pelas copas das árvores da praça ao lado, não sei como, acabou entrando prédio adentro. Sem saída, foi parar no topo do janelão.

Lá de cima, ele tinha uma vista melhor que a de qualquer um de nós. Porém, viu que o vidro proibia. O rufar de asas chamou a atenção de uma moça, sentada num sofá do outro lado do saguão. ela tentou fazer contato com o pássaro assobiando. distraído, tirei os olhos do livro que tinha no colo e olhei para ela. Sorrindo, a moça apontou o bichinho perdido, lá no alto.

Ela tentava chamar a atenção do animal. Perdido, ele fazia um movimento repetitivo de ir do topo dos janelões, bicando o vidro ao mesmo tempo em que tentava manter-se no ar como um desajeitado colibri - provavelmente sem entender o porquê de, a despeito de ver a transcendente paisagem à sua frente, ele não conseguia sair dali.

Cansado, o sabiá pousa na soleira (ou uma divisória à guisa de soleira para passarinhos perdidos). Minutos depois, tenta de novo. Vai de cima a baixo batendo as asas e bicando a janela, até voltar ao ponto de partida. Toda vez que ele parte para a sua empreitada, nós (já éramos três) olhávamos o movimento pacientemente desesperado do passarinho.

Depois de umas cinco ou seis vezes, muito empertigado, como se estivesse se sentindo vítima de um complô, ele põe-se a cantar, como que contrariado. A chuva parou, ele precisa cantar para avisar que a chuva parou. Mas ele não entende por que não consegue sair dali.

...


Quando ele canta, nós, que já estávamos meio cansados de observar suas investidas contra a janela, ficávamos a contemplá-lo, lá no alto, cantando para a tarde, não se sabe se para cumprir tabela ou porque ele estava, naquela altura dos acontecimentos, um tanto contrariado com aquela constrangedora situação.

Nós abrimos as janelas do andar de baixo, para que, talvez ouvindo o bulício da rua, ele entendesse que, ao contrário das janelas de cima, as do nosso andar estavam abertas. Mas, não: ele continuava naquele movimento de bicar o vidro de cima. Às vezes, tentava estribar-se nas divisórias, mas sem poder equilibrar-se, o sabiá acabava voltando à soleira.

O seu canto - que ressoava, de forma incomum, de dentro do prédio, chamava a atenção dos passantes...

Notei que ele se exasperava porque era assistido por gente que o observava lá de cima. quando chegava alguém, ele se assustava. Quando o movimento sumia, o pobre bichinho voltava às suas divagações e ao seu canto sem graça, da soleira dos janelões...

Muito tempo já havia passado; o remanescente era eu, que já havia terminado o livro e velava o sabiá em sua busca pela liberdade. Fazia conjecturas: pensei que ele fosse se cansar de vez, e tocar o chão. Ele permanecia ali na soleira mais pelo seu atávico e sábio medo dos seres humanos.

De repente, acho que ele parou para pensar a sua condição. Parou de fazer aquele tresloucado movimento sobe-e-desce e de embalde bicar o vidro. Começou a olhar fixamente para a balustrada do 'mezanino' do terceiro andar.

Respirou fundo, e deu um salto perfeito, da soleira até a balustrada. Virou-se para a rua; agora, com outro ponto-de-vista, ele pôde contemplar todas as janelas. Com efeito, notou finalmente que as do segundo andar - bem abaixo de onde ele estava antes, estavam abertas.

Fiquei pensando que, às vezes, nós somos como esse pássaro. Ficamos insistindo em saídas, soluções, modelos e processos que, na verdade, são, como diria o escritor norte-americano Scott Fitzgerald, apenas um passo à frente rumo ao nosso passado. E, no fim das contas, levamos anos andando em círculos até chegarmos a uma epifania sobre qual caminho seguir ou sobre o nosso destino.

E que, depois de muito tempo insistindo em causas perdidas, descobrimos que perdemos muito tempo de nossa vida breve em algo inútil e contraproducente. Às vezes, morremos sequer sem chegar à essa epifania fatal. Tudo por causa de um ponto-de-vista estreito e limitado - por algo ou por nós mesmos.

............

Num voo em curva, nosso herói condoreiramente bateu asas da balustrada, desviou-se da fresta da janela mal aberta e alçou um intrépido voo até às árvores do Planetário, onde foi cantar o fim da tarde e de uma semana de chuva na cidade. Adeus, passarinho.



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