Thursday, November 26, 2015

O Sobrado em Transe


Erico Verissimo



No último dia 18, a Associação Cultural Acervo Literário de Erico Verissimo desenvolveu o seminário “O Sobrado em O Tempo e o Vento: ascensão e queda dos Terra Cambará”. A atividade contemplava uma palestra com três professores (e membros da ALEV), Maria da Glória Bordini, Márcia Ivana e Antônio Sanseverino (todos das Letras da UFRGS) a respeito do papel do Sobrado em O Tempo e o Vento (1949) (1).

A proposta é bem interessante, pois possibilita uma leitura ampla da obra-prima do escritor cruzaltense — além daquilo que foi mitificado pelas releituras que o livro sofreu (não sei se é a palavra certa) nos últimos sessenta anos. Releituras, estas, que não permitem, de certa forma, que se entenda a proposta de Erico em sua trilogia.

A leitura que os três realizam tem como perspectiva o Sobrado do ponto de vista da "consolidação do poder dos Terra Cambará e de sua decadência, como microcosmo da constituição da territorialidade do Rio Grande do Sul – de início amparada nas virtudes tradicionais da honra e da bravura e depois corroída pela ambição e corrupção de seus próceres".

O que parece — aos desavisados! — muitas vezes uma obra de exaltação à bravura e à história rio-grandenses, no ponto de vista da formação do Continente na figura de uma certa família Terra-Cambará, o que há mesmo é esse movimento de ascensão e queda, onde muitas vezes a adaptação só dá conta de uma parte que, falsamente, acaba valendo pelo todo. Como não existe um proêmio e uma musa para que o vate possa delimitar o tema, essas adaptações caem no equívoco fácil da simplificação e da mitificação.


O que vou ensejar aqui é o resultado das minhas leituras do livro mais as opiniões do seminário, naturalmente amparado aqui e ali com alguma matriz bibliográfica.

O que Erico apresenta, num quadro geral, aquém e além de adaptações (e daquilo que as pessoas em geral acabam depreendendo como o fulcro do O Tempo e o Vento) é uma contínua dualidade, contradição e ambiguidade moral no âmago dos protagonistas. Pedro Missioneiro é oprimido, luta por sua liberdade mas a sua violência é igual à daqueles a quem busca sobrepujar. Essa violência, como diz a Maria da Glória Bordini, os insere no quadro do poder que, de 1745 a 1895, está na mão de caudilhos que, com mão de ferro, controlam a peonada. Essa é, de certa forma, a matriz que irá explicar todo o processo político no Rio Grande (e no Prata) nos próximos duzentos anos.

O Continente

Nessa perspectiva dual, vemos que os personagens têm o seu respectivo fundo falso. O tão decantado Capitão Rodrigo luta pela liberdade no plano político mas, no pessoal, não é tão digno de simpatia; Bolívar é incapaz de defender um escravo amigo seu. A culpa o corrói a alma, ao mesmo tempo em que é dominado pela mãe (Bibiana) que, por sua vez, faz de tudo para destruir a nora, e vice-versa.

No segundo tomo de O Continente, Bibiana lembra vagamente a Cremilde do segundo tomo de A Canção dos Nibelungos (3). De personagem secundária, a heroína de Erico torna-se a protagonista de uma vingança tanto àqueles que mataram seu esposo quanto à Luzia. O primeiro passo da fria e calculista megera Bibiana foi casar seu filho com a herdeira do Sobrado de Agnaldo Silva. este, por sua vez, havia tomado as terras de Pedro Terra por dívidas, acabrunhando o velho e matando-o. Ora, logo, as terras do Sobrado eram dela.

O segundo passo da Cremilda de Santa Fé é, pois, impedir a qualquer custo que Luzia case-se novamente e tira o jovem Licurgo de suas mãos. Nisso, inicia-se um tenso jogo psicológico entre sogra e nora. Nessa guerra (título ambíguo do capítulo, que se refere também à Guerra do Paraguai) é difícil torcer para qualquer uma das duas. Para ficar com o neto do Capitão, elas dissimulam e disputam o jogo mais baixo possível.

Vence Bibiana, vence o Sobrado. Agora, contemplamos a formação de Licurgo como uma segunda geração de caudilhos: aqueles que vão instrumentalizar-se pelo poder político à moda moderna, "iluminista", semi-ilustrada (ainda para esses cantões do continente), à medida em que o republicanismo se insurge no Estado. Torna-se positivista e castilhista. Luta pela liberdade (como seu avô) e, como seu avô, entrega-se às suas ambiguidades morais. Afinal, ele tem uma amásia lá pelos lados do Angico (a estância dos Cambará) e, com o tempo, toda a cidade sabe — inclusive sua esposa, Alice.


Nessa perspectiva de asenção e queda, como se vê, nos episódios familiares dos Terra-Cambará, é quase como se na gênese dessa construção da realidade estivesse a sua própria ruína: nos subcapítulos do Sobrado, vemos o poder de Licurgo sendo contestado, como um Agamênon gaúcho, diante de sua prima, Maria Valéria, que demonstra ter mais brios do que muitos ordenanças do neto de Bibiana. Em meio ao sítio ao Sobrado, ele mal consegue administrar a famélica situação dos seus comandados, todos perdidos e entrincheirados dentro da mansão, cercada por maragatos sob o comendo dos amarais, seus vetustos inimigos políticos.


O Retrato

Em O Retrato (1951), vemos um exemplo singular dessa ambiguidade moral dos Cambará, agora cifrado na imagem de Rodrigo Cambará. Filho de Licurgo, ele é o caudilho moderno, da geração de Oswaldo Aranha, de Getúlio Vargas e de Flores da Cunha. Doutor, ilustrado, francófano, sua personalidade é delineada pelo povo de Santa Fé no capítulo que abre o segundo livro da trilogia, "Rosa-dos-Ventos". Todos t~em uma opinião a respeito de Rodrigo. Muitas são as vozes, muitas são as sentenças: entre elas, ele é um canalha, um malfeitor, ele é um benfeitor, um homem honrado e um político dissoluto e um putanheiro.

A partir dali, o livro divide-se em duas partes principais — "Chantecler" e "A Sombra do Anjo" — que mostram a trajetória do protagonista, desde a sua caracterização de jovem doutor, dândi, o seu engajamento e desejo do mudar o poder político local contra a repressão borgista em Santa Fé até a grande tragédia de sua vida. Depois de "fazer mal" a uma jovem violonista (Toni Weber) de uma trupe mambembe, ela comete suicídio — ao mesmo tempo que a morte coincide (e, de certas forma, é abafado) com o assassinato de Pinheiro Machado, em setembro de 1915.

Refugiado no Angico, Rodrigo corrói-se em culpa. Sua dor é verdadeira. Porém, não sabemos se ela é suficiente para expiar sua culpa. Até porque, veremos adiante que mesmo que Rodrigo tenha empatia e consciência suficientes paras analisar o que ele fez, isso vai acabar tonando-se uma constante em sua vida pessoal e política. O filho de Licurgo (ao contrário deste que, por sua vez, não guardamos qualquer simpatia) encarnará essa dualidade entre a revérie e a culpa abissal em vários episódios de sua vida.


O Arquipélago


O último capítulo de O Retrato, "Uma Vela para o Negrinho", é uma antecipação ao Arquipélago (1962), da mesma maneira como o primeiro (Rosa-dos-Ventos) é uma espécie de prolepse do livro seguinte. Nele vemos Floriano Cambará, filho de Rodrigo, que mal conhecemos, cantando a sua ária de apresentação. Ele reaparecerá adulto, nos capítulos "Reunião de Família" e como um jovem em formação nos capítulos que, à moda de O Continente, servem de flashbacks dos episódios de família de O Arquipélago (1962).

Rodrigo Cambará, filho de um ex-castilhista, luta pelo poder em Santa Fé. Mesmo anti-borgista, é melindrado pelo senador Pinheiro Machado com vistas à uma possível deputação pelo PRR em nível estadual. Mesmo contra Hermes e Pinheiro, após a morte deste, envereda-se pela política justamente pelo partido de Borges. A oposição era ainda muito liliputiana e, além do mais, era toda ela maragata. Isso seria de um problema intransponível à Licurgo que, por seu turno, jamais pensaria que, um dia, ele iria cair nessa esparrela e ter algo com comum com seus antípodas federalistas: ser inimigo de Borges.

Quando estoura a Revolução de 23, Rodrigo e seu irmão (e, meio a contragosto, seu pai) bandeiam-se para o lado dos rebeldes. Verissimo sempre foi discreto em cenas de guerra em O Tempo e o Vento mas, no capítulo "Lenço Encarnado", ele dá contornos épicos à bazófia que se instaurou na Campanha gaúcha, onde os veteranos maragatos queriam agora a intervenção federal contra os desmandos de Borges. Vem o fim da guerra, Toríbio parte com a Coluna.

Os subcapítulos "Reunião de Família" aludem ao tempo presente na narração de O Arquipélago, entremeando os capítulos do livro, da mesma forma como "O Sobrado" têm o mesmo papel em O Continente. Além da similitude com a forma, Erico mostra um outro problema familiar: se em "O Sobrado", vemos o grupo familiar em transe, porém todos como que impostos pela mão mítica e terrível de Licurgo, em "Reunião de Família" nós encontramos Rodrigo no fim da vida, em meio a uma crise cardíaca, tentando unir in extremis aquela família agora diluída e dividida. Ao contrário de Licurgo, o gongo não irá salvá-lo. O destino escapa à suas mãos.

O poder que nosso herói tem agora, tanto no plano político quanto familiar é fictício, quase uma mera delegação. Ele tem, com efeito, a procuração da experiência da vida. Por mais execrável que seja ou possa parecer, Rodrigo quer manter a família unida, mais do que tudo. Nisso, pelo menos ele dá a entender, o decano dos Terra-Cambarás é sincero.

No entanto, como vemos, na sucessão de episódios, desde 23, Rodrigo é um poço de contradições. Devastado agora pela morte da filha, Alicinha, não quer mais clinicar. Quando não sabe mais o que fazer da vida, se insurge a Aliança Liberal. Logo, filia-se às primeiras fileiras junto com Vargas (de quem, a princípio, considera um pusilânime no meio do movimento) e Oswaldo Aranha. Com a Revolução de 30, Rodrigo parte às cegas para a aventura dos gaúchos na Capital Federal.

Nisso decorrerá uma ruptura de Rodrigo com seu irmão, Toríbio. Este, apesar de ser um apolítico, é lúcido o suficiente para saber dos desmandos do governo Vargas. Mais tarde, às vésperas do golpe de 37, em plena noite de Ano Novo ("Noite de Ano Bom"), acusa o irmão de ser um comensal do Presidente, um chefete plenipotenciário de araque com fumos de cacique político, mas apenas um cambão de Getúlio, como tantos outros, e que foi para o Rio viver das benesses do poder e ficar rico às custas de um cartório, e viver a vida no café society do Cassino da Urca. Em dezembro daquele ano, Rodrigo tenta, de todas as formas e argumentos, justificar o Estado Novo.

Toríbio, como um Aquiles, briga feio com seu irmão, manda o Ano Novo às favas e arrasta Floriano para um cabaré. Este, por sua vez, seria testemunha da morte insólita do tio, perplexamente esfaqueado por um garoto no meio da festa. Morreu só sem tempo para poder reconciliar-se com Rodrigo.


Alguém falou em Floriano? Pois ele aparece, lá no final de O Retrato para ser caracterizado plenamente apenas a partir de O Arquipélago. Agora, temos uma quarta geração dos Cambará que, na figura dele, contesta o poder do pai (como não poderia deixar de ser) ao mesmo tempo que, à sombra dele, tenta juntar todos os pedaços de vida mal resolvidos: sua relação com o pai e com os irmãos, seu amor por Sílvia, uma enteada da família que acabaria por casar-se com Jango, irmão mais novo de Floriano).


Encruzilhada



Floriano é o jovem que vê o Sobrado, busca entender a essência dele, a história da sua família. Ele é quem tenta, como Édipo, ser o detetive de si mesmo, e de tudo o que se passa por ali. Para tanto, ele tem o seu Tirésias (pegando impiedosamente o mote da professora Márcia Ivana no seminário), que é Roque Bandeira. Talvez os melhores momentos de O Arquipélago estejam com eles. Como dois filósofos peripatéticos, eles parecem ser a consciência apolíneo-dionisíaca na história. Num plano, eles analisam a própria situação a respeito daquilo que os acerca. Por outro, Bandeira, mais conhecido como o Tio Bicho) desempenha esse papel de profeta, ou melhor, de preceptor, diante de Floriano que, pegando o mote de Érico, está nessa encruzilhada.

Tio Bicho é aquele que vai empreender a maiêutica sobre Floriano. De certa forma, nesse plano, é como se, ao mesmo tempo em que O Arquipélago é um desdobramento e conclusão da personalidade de Rodrigo, ele também pode funcionar como um romance de formação de Floriano, questionando-se como escritor, como filho, como irmão. Essa aventura ele empreende no embate com seus iguais, sempre entremeados pela análise ferina de Bandeira, quase um personagem queirosiano.

É no momento em que ele encerra o diálogo com Tio Bicho é que Floriano já está prestes a fazer um "ajuste de contas" com Rodrigo. O pai, entrevado, à beira da morte, o filho, o procura, como se lhe questionasse, como se lhe pedisse conselho, como se lhe pedisse perdão. No fim, ambos saem engrandecidos desse encontro. Tio Bicho pode partir, pois já desempenhou seu papel 'pedagógico'. Rodrigo já pode morrer, pois está em paz com todos os traumas e mal-entendidos com Floriano — seu filho mais velho e o mais parecido com ele.

Floriano está preparado? Poderíamos dizer que, analisando sob essa perspectiva de ascensão e queda, o que existe de contraditório do ponto de vista de gerações é que, do começo até o fim, é como se o clã dos Terra-Cambará vivesse essa dualidade e essa contradição intestina através dos tempos por carência de uma consciência, de uma empatia, de uma visão existencial que seus descendentes, por algum motivo, não possuíam, e isso serviria como uma maldição. Assim como Sílvia, no capítulo "Diário de Sílvia", onde ela ganha a primeira pessoa para colocar-se numa posição onde, pela primeira vez na trilogia, uma mulher do clã parece ganhar voz própria.

Da mesma forma, Floriano "obtém" essa voz própria. A análise com Tio Bicho e o último diálogo com Rodrigo foram catárticos para ele. Ele e Sílvia, por conseguinte, são os descendentes do clã que libertam-se dessa "maldição", assumem juntos — cada um a sua maneira — a sua voz própria e, como Electra e Orestes, libertam Santa Fé da maldição dos Atridas.

Por isso, Floriano está preparado. No final no livro, nas últimas linhas, ele entra na mansão dos Cambará às escuras, plena madrugada. Caminha pé ante pé e diz: "o Sobrado está vivo!". Sobe até a água-furtada, coloca o papel na máquina de escrever e começa: "era uma noite de lua cheia, as estrelas cintilavam, sobre a cidade de Santa Fé..."




(1) Érico Verissimo, O Tempo e o Vento. Globo, 1949/76.
(2) Maria da Glória Bordini,Regina Zilberman. O tempo e o vento: história, invenção e metamorfose. EDIPUCRS, 2003.
(3) Anônimo. A Canção dos Nibelungos; Colação Ghandara, Martins Fontes, 1996. Na história, Cremilda é mulher de Sigfried e este é morto por traição por Hagen, vassalo de Brunilda. Após a morte de Sigfried, Cremilda tenta reaver o tesouro perdido e assassinar todos os responsáveis pela morte de seu esposo.

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