Tuesday, July 07, 2015

A Condessa de Araque


Maysa


O jornalista e compositor Ronaldo Bôscoli tem um interessante livro de memórias muito interessante*. Na obra, ele dedica um capítulo à inesquecível cantora Maysa Matarazzo. Ali, o autor de "Lobo Bobo" relata as suas núpcias de fogo com a cantora de "Meu Mundo Caiu". Uma história, pelo menos, é digna de menção.

Estavam os dois já separados há algum tempo (isso lá por meados dos anos 60), quando Bôscoli teve um caso com a Condessa Mimi D' Arcange, que era amiga da irmã de Ronaldo, Lila.

Certa feita, ela quis conhecer Cabo Frio, no litoral do estado do Rio de Janeiro. Nesse meio tempo, a imprensa soube do caso e os paparazzos apareceram. Ele, derretendo-se em sua paixão pela moça, pigarreou, alçou a fronte e falou para a caravana da reportagem:

- Troquei uma condessa de araque por uma condessa de verdade.

Um tempo depois, plena madrugada, Bôscoli estava com seu fiel escudeiro, Miéle, dividindo a famosa sopa da fome do La Fiorentina, no Leme. Nisso, toca o telefone, o garçom vai ter com ele:

- Seu Ronaldo, a Maysa no telefone, de São Paulo.

Ele, que não falava com ela há milênios, foi atendê-la. Maysa foi adorável: disse que estava com saudaqdes, que ele era o amor da vida dela. Lá pelas tantas, dispatrou:

- Ronaldo, eu quero que você produza a minha próxima apresentação aqui em São Paulo antes da minha viagem à Itália.

Bôscoli estava batalhando seus pocket-shows no Beco das Garrafas. Porém, apesar de muito requisitado, a grana era curta. Prá não dizer nenhuma. Ele quis saber de dinheiro. ela respondeu:

- Grana não é problema.

Mesmo ressabiado, resolveu topar. O problema era Miéle. Ele resumia a proposta à Miéle, tapando o bocal do telefone. Este, por sua vez, com o sobrolho carregado, parecia cético. Maysa pediu para passar para ele. Depois de vários "ahans", a tensão se esvaneceu do semblante de Miéle. De qualquer maneira, quem não tem nada, não tem nada a perder...

Bôscoli pegou o fone. Falou.

- Tá bom, a gente topa. amanhã eu te ligo e a gente combina tudo...

- Não - cortou Maysa. - Venha para São Paulo agora mesmo!

- Agora? - gemeu Bôscoli.

- Você pode pegar um carro de praça e vem. Não tem problema, deixe que eu pago a corrida. Já faz parte dos custos da produção.

Com a sopa do La Fiorentina pela metade, eles saíram para a rua. Conseguiram convencer um motorista a fazer a viagem. Antes, passaram no apartamento onde moravam, não muito longe dali, e pegaram a Rio-São Paulo.

No meio do trajeto, furou um pneu do carro. Com o último tostão, eles ajudaram o taxista a pagar o borracheiro. Porém, a perspectiva de dinheiro e sucesso subiram á cabeça de Bôscoli. Emplogado, com o olho rútilo e o lábio trêmulo, ele contava ao motorista os seus arrufos com Maysa. Este, por sua vez, entre incrédulo e divertido, apenas respondia:

- O quê? Esse cara aí, liso, de caso com a Maysa? a cantora? Tá querendo me enrolar?

De manhã, eles chegam em São Paulo e dirigem-se à casa de Maysa. Ela não estava. Uma criada, todavia, tinha um envelope para Bôscoli.


Ronaldo,


A condessa de araque partiu para sempre. Tchau.


Maysa



Estupefato, ele passa o papel para Miéle que, perplexo, fixa os olhos em Bôscoli. Voltam à realidade com a buzina do carro de praça:

- E aí?

Sem dinheiro nenhum em São Paulo, completamente perdidos e com a conta da viagem e com fome, o que fazer? Miéle tinha um parentes, mas não queria recorrer à eles de maneira alguma, muito menos assim.

Ronaldo tinha uma prima. Tinha viajado. Porém, conseguiu algum com a empregada dela. Então eles explicaram o problema para o chofer que, vendo a situação extrema de nossos heróis, preferiu protelar o escarcéu. Com o dinheiro da criada da prima, conseguiram saldar parte da dívida. O taxista, por via das dúvidas, quis ficar com as malas da dupla por garantia.

Deram o endereço deles em Copacabana. e lá se foi o motorista, fulo da vida, mas com a bagagem e os documentos deles.

Brancos de fome, andando pela cidade sem destino, foram parar num botequim. Ali acontecia um surrealista campeonato: desafiado pelo dono da bodega, um cidadão tinha que comer cinquenta ovos. Em desespero, Ronaldo e Miéle comiam desesperadamente os restos de comida que caiam na mesa e no chão.

Já refeitos, procuraram um conhecido num estúdio, a fim de conseguir algum dinheiro.

- Grana não tem - disse o homem. - Mas tem um bar aqui embaixo que tem conta comigo, podem beber à vontade.

Para matar a fome, passaram o resto do dia bebendo. Eis que, depois de dar uns telefonemas, Miéle descobriu que tinha um esquema no programa da Hebe. Lá foram eels.

Chegando lá, muito gente famosa. O cenário do programa era numa beira de piscina, quase um garden-party. De repente eles poderiam conseguir um bico ali.

- Grana não tem - disse a Hebe. - Mas podem ficar por aí, porque tem muita gente importante convidada. De repente, vocês conseguem divulgar o trabalho de vocês.

Ficaram até o fim da noite, salvos pelos acepipes oferecidos no programa e doses colossais de Cinzano, que era o patrocinador da Hebe.

Horas e horas tentando se enturmar e nada. De repente, no meio dos convidados, acharam a Marisa Gata Mansa. Bôscoli então contou a situação famélica em que se encontravam - pelo menos a ponto de convencê-la a emprestar-lhes o dinheiro suficiente para voltarem para casa.

Pegaram um cata-jecas para o retorno ao Rio. O semi-direto veio de parada em parada, lotado e sem banheiro. Com muita diplomacia, Miéle conseguiu ficar na janela, enjeitado com Ronaldo e um japonês com cara de agricultor. No meio da viagem, o martini com ovo pagou o seu preço. Bôscoli começou a passar mal e vomitou no colo do japonês.

A sorte é que o cidadão estava no sétimo sono, e não viu o autor. O problema foi quando o reparo começou a feder dentro do ônibus lotado. Logo todos acusaram o japonês. espantado, ele apenas dizia: "no, no". O mal estar foi tão grande que, mesmo contrariado, ele teve que descer bem antes do ponto final, ainda em Bonsucesso.

Bôscoli ria ao ver o cidadão sendo expulso do comboio aos rapapés. Miéle brigou com ele:

- Seu maluco! E se ele fosse lutador de caratê?

Miéle ficou o resto da viagem xingando Bôscoli e ameaçando ir às vias de fato. Porém, o cansaço e a fome o impediam de fazer qualquer esforço além de esperar.

Ao chegarem na frente do prédio, lá estava o chofer, esperando por nossos chapilinianos heróis. Com ele, firam até a redação da Manchete, onde conseguiram o resto do dinheiro.

....


E Maysa? Já devia estar na Espanha, onde iria morar. Aliás, quando estava em turnê pela Argentina pela primeira vez, era chamada, por ser da família Matarazzo, de "la condessa cantante", apelido que ela detestava. A vingança, como diz o profeta, é um prato que se come frio.



* Eles & Eu, Editora Nova Fronteira, 1994.


















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