Saturday, November 07, 2015

Kafka e o Narrador falso 9


Kafka


A Metamorfose, do Franz Kafka, tá fazendo 100 anos. Kafka me lembra do meu primeiro semestre na faculdade. O professor de Língua Portuguesa era o Tatata Pimentel, e ele mandou a gente fazer uma resenha do livro.

Primeiro semestre era uma loucura. A maior peça que pregaram na gente não foi trote de bixo, mas foi a perda da inocência de deixar o Ensino Médio e cair no colo da vida acadêmica.

O Tatata estava acostumado certamente com a nova leva de aprendizes que apareciam todo semestre. Como quase sempre, as turmas noturnas na Famecos eram egressas de supletivos. Assim, ele nos chamava carinhosamente de "Monteiro Lobato (conhecido supletivo da cidade, para os desavisados). Por exemplo, ele escrevia no quadro-negro e, depois perguntava: "o Monteiro Lobato já copiou? Posso apagar?".

O grande trote era esse: depois de uma vida inteira perdido em apostilas de cursinho, deparar-se com Escola de Frankfurt, Saussire e coisas do tipo não eram bem aquilo que a gente queria saber. Aliás, como ocorre na maioria dos cursos de graduação, o que os alunos mais querem e passar de ano. Num começo de curso, ou você sabe o que quer da vida ou não sabe. Se não sabe, pelo menos, sabe o que não quer da vida, e aquilo não era o que a gente esperava.

Havia um professor que era da pós, e estava substituindo uma professora. Ele, naturalmente acostumado com o perfil do aluno-pesquisados do mestrado e do doutorado, não tinha lá muita paciência com bixos. O divertido é que a aula dele (analisando hoje), era uma aula de pós. Mas ele sabiamente queria incutir aos incautos calouros que aquele tempo da inocência acabou. Não tem mais redação "minhas férias". Agora, o negócio é fichar livros, citar fontes e fazer uma conta no xerox.

Da ementa de Língua Portuguesa, uma das avaliações era ler o Kafka. O Tatata ainda exigiu que lêssemos a edição da Brasiliense, que recém havia publicado toda a obra do escritor praguense com tradução direta do alemão feita pelo Modesto Carone. A gente naturalmente não entendia muito o porquê dessa exigência. Era uma questão típica de Literatura Comparada. Como era comum, muitas traduções brasileiras eram "retraduções". Ou seja, a tradução de Kafka, antes, era vertida do francês, por exemplo

Parecia mero purismo, mas essas traduções canhestras (de acordo com o Tatata) transformavam "canapé" em "sofá", ao passo que, se formos pensar bem, existe uma diferença enorme entre um sofá e um canapé (nenhum dos alunos sabia o que era um canapé"). Logo, sua explicação parecia um tanto razoável. A tal tradução a que ele se referia, obviamente, deveria ser a do Syomara Cajado, que era a mais popular e fácil de achar (comprei na Feira do Livro daquele ano, por sinal).

Não me lembro em qual trecho, mas a tradução do "canapé" por "sofá" foi no Syomara Cajado. Desobedeci às ordens do Tatata e não li a versão do Carone, que iria ler muito tempo depois, já liberto dos grilhões da Famecos. A tradução dele, da Nova Época, do começo dos anos 70, era vertida do inglês, como se sabe. A do Carone, dos anos 90, foi a primeira feita direto dos originais.

De qualquer maneira, esse papo de excelência de tradução era mais para o pessoal da Literatura Comparada do que para nós, calouros "Monteiro Lobato" (eu não fiz Monteiro Lobato). (Aliás, eu achava a maior graça do apelido, muito embora notasse que muitos dos meus colegas da 389 ficassem ligeiramente irritados com isso).

No final do curso, depois que entregássemos as resenhas da novela do Kafka, o Tatata então, como nos havia prometido, iria interpretar A Metamorfose para a psicanálise e do ponto de vista da teoria marxista. Eu lembro que ele explicou, contudo, mas aquilo não impressionou ninguém. Pelo menos, a mim, o que eu não esqueci dessas aulas foi que ele disse que havia uma interpretação errônea em associar o inseto da história como "barata". Me recordo que ele salientava o tempo todo: "não é uma barata!".

Durante anos eu fiquei assombrado com isso: a barata do Kafka não era barata, era um inseto. Porém, o mistério é que isso ele não explicou.


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Até que eu li essa edição recente do Kafka que saiu pela Companhia das Letras, o Essencial Franz Kafka. O livro é uma antologia de novelas do escritor praguense, mas com o texto completo de "A Metamorfose". A tradução é, pois, a do Carone.

À guisa de introdução à centenária novela, há a transcrição de uma palestra do tradutor "contra interpretações psicanalíticas, teológicas e existencialistas".

Dois pontos interessantes na análise do Modesto me chamaram a atenção: a primeira se refere à questão do narrador no conto. A sua tese (se não estiver deturpando ela) é a de que o narrador kafkiano é singular. Ao escrever em terceira pessoa, ele parece ser onisciente. No entanto, ele não é; o narrador não vai muito além do que o próprio Gregor pode ver ou perceber, ao longo da história. Algo como se este narrador fosse como uma câmera instalada na cabeça do inseto.

Carone compara o narrador da Metamorfose com a de Dom Quixote. Este é ciente da loucura infrene do protagonista e, com efeito, faz caso dessa situação. Já o de A Metamorfose parece não estar certo do que está acontecendo: não há uma distância estética entre a confusão de Gregor e a armação daquilo que está sendo narrado. Ao contrário, o único elemento de concisão é o texto conciso, quase cartorial, de Kafka, em narrar de forma escorreita algo que parece mais um mundo mal descrito e jogado elegantemente no colo do leitor.

em outras palavras, é como se o narrador em Kafka é o falso 9. Ele falseia os fundamentos do narrador tradicional no plano da linguagem mas ele só descreve o que vê. Walter Benjamin (outra grande lembrança do primeiro semestre da Famecos) é quem iria além ao paroxismo de desenvolver uma teoria de que Kafka é o exemplo definitivo daquilo que ele explicava como o "fim da narrativa". O romance kafkiano, para ele, não sintetiza o problema da narrativa, mas é o seu mais perfeito sintoma: é uma dialética morta, uma síntese que não acontece, é a comédia humana que bateu num iceberg e afundou.

Carone explica: "é nesse passo que o leitor se sente tão impotente quanto o herói para perceber com discernimento as coordenados do mundo que ambos tateiam". O narrador é falso 9 porque é impessoal". Contudo, a confusão de Gregor é legitimada por essa impessoalidade. A ruptura acontece no fim, quando Gregor morre e o narrador permanece. Isso fez com que Kafka considerasse o final "falso" (ele chama de "ilegível", ou fora do contexto do falso 9, já que a perda da perspectiva no inseto "quebra" a unidade da narração até aquele ponto.

O outro ponto reside no fato de que Carone entende a metamorfose em dois planos. A do arrimo da família transformado em inválido e a "metamorfose" da família. Para ele, os Samsa deixam de ser os parasitas para tornarem-se auto-suficientes e autônomos. Todo esse processo está aquém da narrativa, embora Gregor, à maneira de Édipo em Sófocles (como explica Modesto Carone) já num processo de inversão, tenta relembrar e enfeixar todo o seu passado.

Todavia, ao contrário do marido-filho de Jocasta, o nosso caixeiro não consegue racionalizar os fatos da mesma maneira. Ao mesmo tempo, na mesma perspectiva de inversão, a invalidez de Gregor em A Metamorfose resulta na sua liberdade. Porém, essa liberdade acaba se metamorfoseando em problema aos olhos dos agora pró-ativos Samsa. Eles não magoavam o protagonista em serem parasitas; agora, eles não aceitam a condição inversa.

A partir dali, como diria o (terrível, mítico, românico) patriarca da família: o dilema reside em considerar Gregor como alguém da família: "nossa infelicidade é justamente até agora termos acreditado nisso". O pobre caixeiro não era mais o jovem varão da família era havia se metamorfoseado num "inseto".

Aqui chegamos àquilo que o Tatata havia falado a respeito do porquê nosso herói não deveria ser confundido com um uma barata. Kafka, como se sabe, era um conhecedor de etimologia. No original em alemão, ele desperta como um "inseto monstruoso" (ungeheures ungeziefer). Carone explica que a expressão não foi colocada ao acaso: "ungeheuer" ou "monstro", etimologicamente quer dizer, "aquilo que não é familiar, aquilo que está fora da família" e se opõe a "geheuer", aquilo que é manso, familiar. Já "ungeziefer" significa (etimologicamente) "animal impuro, ou, que não se presta ao sacrifício". Com o tempo - diz Carone, a expressão foi ressemantizada, designando animais nocivos, como a barata, em oposição aos não-nocivos, os domésticos.

Essa explicação, revela Carone, dá a matriz verbal para explicar a metamorfose do parasitado em parasita - ou daquele que se prestava ao animal servil (como um burro de carga, como Gregor era) para outro, que não "se presta mais ao sacrifício (culto ou, emfim, utilidade)". Esse animal que era servil agora é um inseto, etimologicamente falando. É por isso que Gregor é um inseto, e não uma barata.

Matei a charada, vinte anos depois.







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