Saturday, July 04, 2015

Dionísio no Rock


Cena do filme The Doors


(um parêntese à guisa de introdução (e resumo): esse artigo é uma análise da influência da teoria do filósofo Friedrich Nietzsche e a influência de seu O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música no filme The Doors. O objetivo é colocar uma outra luz em cima tanto da influência do autor alemão na poesia de Jim Morrison quanto uma maneira de entender os motivos do filme de Oliver Stone, além de questões já analisadas pelos cotovelos, como a contracultura e Aldous Huxley, por exemplo. A justificativa é que, a despeito de todas as referências no roteiro, essa intertextualidade entre Nietzsche e o filme é negligenciado em muitos estudos)


1. Oliver Stone e o problema da verossimilhança em The Doors, de 1991

Quando a cinebiografia da banda The Doors entrou em cartaz (Oliver Stone, 1991), muitos fãs e críticos elogiaram a atuação do ator principal, Val Kilmer, na sua caracterização do líder do conjunto norte-americano, Jim Morrison.

No entanto, tanto boa parte da crítica quanto músicos do quarteto californiano rechaçaram o roteiro.

Para eles, a caracterização de Morrison é “imprecisa e falseadora da realidade”. Ou, por outra, o roteiro teria destacado um “lado superficial” do músico que, embora caísse bem para o estereótipo de uma estrela do rock, estaria longe da realidade.

A despeito destes entraves, o filme ganhou fumos de cult movie e pavimentou todo um retorno à obra da banda numa época em que toda a contracultura dos anos 60 havia sido quase esquecida por completo.

Aliás, pode-se dizer que boa parte do sucesso do filme, por sinal, reside justamente na forma como o roteiro lida facilmente com o estereótipo do crooner de uma banda de rock.

No entanto, entendemos que Stone como descendente da geração da New Hollywood, ex-combatente do Vietnã e fã dos Doors e de Morrison, quis imprimir, no roteiro, uma visão nietzschiana do mito de Dionísio em O Nascimento da Tragédia (1).

Para o diretor, o autor de “Riders on the Storm” era uma espécie de recriação da imagem do artista dionisíaco, porém, baseado no rock e na contracultura norte-americana dos anos 60, fazendo uma ponte entre o filósofo alemão e movimentos culturais da segunda metade do século XX, como a Off-Broadway do The Livin’ Theatre, o blues, a Geração Beat, Wilhelm Reich e livre-pensadores, como Colin Wilson e Allen Ginsberg entre outros.

A noblesse oblige do rock quer o líder de uma banda de rock mais ou menos como Jim Morrison: um poeta incompreendido, contestador, beberrão, canastrão e carismático. De certa maneira, poderíamos dizer que imagem proposta pelo filme caiu bem à imagem que os fãs gostariam de ter de um artista como ele.

Também cabe ressaltar que Stone havia trabalhado originalmente o roteiro do filme com Ray Manzarek, tecladista dos Doors e Patrícia Kennealy, ex-namorada de Jim. Mesmo assim, o diretor optou dar a sua versão da história, fato que desagradou a ambos.

Porém, mais do que esboçar a trajetória quase estereotipada de um astro do rock, pode-se dizer que, em The Doors, numa visão mais acurada, isto é, além da interpretação simplista a que todos acabariam incorrendo, é possível perceber que Oliver Stone quis defender uma teoria que buscou cotejar a trajetória de Jim Morrison associada à queda do próprio mito trágico de Dionísio dentro do pensamento moderno de Nietzsche.

Para tanto, podemos notar que o autor faz uso de intertextualidade (incluindo as falas do filme), citando o filósofo alemão em vários trechos da película.

É importante notar que, ao escrever o roteiro, o diretor conhecia a obra de Morrison e naturalmente sabia dessa incidência literária na proposta poética da banda.

Ou seja, não se trata de uma mera interpretação da obra de Nietzsche a partir da música dos Doors mas, sim, uma fábula em cima da própria abstração da teoria do autor alemão no referente à forma como o quarteto a interpretou como projeto estético, e consequentemente a ótica do roteirista em perceber isso e recriar, de forma alegórica, no texto.
Enfim: Se ele utilizou destas fontes para a elaboração do filme, no final, o que ficou – como não poderia deixar de ser – foi a visão do diretor.






2. Morrison e Nietzsche: rock e tragédia grega


Muitos biógrafos destacam a influência do pensamento de Nietzsche em Morrison. Um deles, Stephen Davis (2), refere-se à identificação do músico com o “sofrimento de Dionísio”. Ainda nos anos 60, jornalistas de rock destacavam sua imagem de “xamã superstar”, como Richard Goldstein (3). Para ele, o frontman dos Doors dava entender que “você precisaria ler Nietzsche na essência da tragédia para entender onde ele realmente se situa; seus olhos movem-se até que ele encete uma discussão da luta apolíneo/dionisíaca pelo controle da força da vida”.

Morrison descobriu Nietzsche com os beats na adolescência, primeiro pela leitura de Jack Kerouac. Jim se identificava com o herói de On The Road, Dean Moriarty. Mais tarde, na leitura de “The Outsider”, de Colin Wilson (3).

Morrison citava Wilson a respeito da seção 7 de O Nascimento da Tragédia. Sua identificação nasceu da passagem em que este referia-se ao comentário do filósofo alemão a respeito de Hamlet onde este, segundo o autor de “Assim Falava Zaratustra” na peça de Shakespeare, de forma arquetípica, se assemelha a Dionísio que, por sua vez, busca transcender a “náusea do absurdo”.

Para ele, ambos lançam um olhar verdadeiro à essência das coisas, ambos passaram a conhecer, e a ambos enoja atuar; pois sua atuação não pode modificar em nada a essência das coisas, e eles sentem como algo ridículo e humilhante que lhes exija endireitar de novo o mundo que está desconjuntado (Op Cit, p.56)

Ele via uma ligação entre a geração beat e os hippies, acreditando que o ethos de inspiração “dionisíaca” no sentido de expansão espiritual era evidente, embora pensasse que o movimento era fraco e infrutífero.
Nietzsche entendia que só o orfismo banido da polís e apócrifo ainda trazia o atavismo na Grécia de Eurípedes e Sócrates.

O coro das oceânides acredita ver efetivamente o titã Prometeu e considera a si próprio tão real quanto o deus na cena. O abismo entre um homem e outro dão lugar a um superpotente sentimento de unidade que reconduz ao coração da natureza (p.55)

Na analogia com a noção de niilismo em Nietzsche, tanto Morrison (via Wilson) entende que o filósofo deve experimentar a dor. Esse, para ele, é a epifania e o credo do herói outsider. Nesse sentido, ele acredita que o artista deve vivenciar a tudo aquilo que aspira, ao que tem como ideal artístico.

Dentro do seu ideal estético, Morrison primeiro buscou o cinema na faculdade, onde chegou a produzir um filme experimental. Influenciado por Reich e Nietzsche, seu filme foi tachado de ‘hermético’.

Mais tarde, descobriu no rock a melhor forma de apresentar sua poesia, dizendo que a música e sua qualidade hipnótica era a maneira de colocar o poeta num estado de espírito capaz de expor seu subconsciente

Ou seja, na sua forma mais primitiva, o rock, como uma reminiscência do blues, é a trilha sonora capaz de evocar a sua percepção perdida. É o apolíneo pavimentando o caminho para o seu dionisíaco.

Para Nietzsche, a origem da música reside além de toda individuação, ou seja, de seu elemento não-apolíneo. “A vontade é o objeto da música, não o princípio”. Ou, como diz Nietzsche referindo-se à Schopenhauer, em On Music And Words, a Fragment from 1871 (4): a música é uma representação da vontade, e certamente não se preocupa com as emoções de mesma maneira como ocorre com a poesia lírica. “O poeta lírico interpreta a música através do mundo simbólico das emoções”.

With regard however to the origin of music, I have already explained that that can never lie in the Will, but must rather rest in the lap of that force, which under the form of the " Will " creates out of itself a visionary world: the origin of music lies beyond all individuation, a proposition, which after our discussion on the Dionysian is self-evident (Op. Cit).

Ele entende que a linguagem nunca vai traduzir perfeitamente o elemento cósmico da música. Para ele, ela vive numa relação com a contradição primordial, a dor primordial no coração da Unidade Primal. Portanto, ela simboliza a esfera que está antes e além de todos os fenômenos.

Porém, o filósofo via a música folclórica como um vestígio da união do apolíneo e do dionisíaco. Nesse sentido, no fim do livro, saúda o retorno à raiz folclórica da música como uma forma de engrandecimento do espírito germânico através do “fogo mágico da música”.

À sua maneira, Morrison buscava adaptar a saudação de Nietzsche através do blues, mas idealizando um retorno ao primitivo do cênico e da poesia como expressão do irracional e do sonho.

Assim como Morrison assimila Nietzsche no espírito do dionisíaco, ele adapta o ritual na persona do Chefe (ou druida, ou pajé) Mojo Rising (um anagrama de “Morrison”, citado em L.A Woman (5)), que é uma forma de recriar o sátiro dionisíaco sob o disfarce do xamã, no elemento autóctone norte-americano.

Esse simbolismo perpassa a sua poesia e o próprio imaginário associado à Morrison e aos Doors. Num trecho do seu livro The Lords (6), Jim fala: “um pânico sensual, evocado por ervas de forma deliberada, cânticos e dança, que põe o xamã em estado de transe”.

Embora associado ao imaginário da banda, Morrison naturalmente entendia o xamã como um curandeiro (o personagem tipifica, ao falar à namorada, logo no começo do filme), algo que ele não era. Mas que ele entendia, contudo, como alguém que “excitasse” os brios das pessoas, que as excitasse.

Muito embora à ele mesmo, à moda de Dionísio, mestre dos disfarces, essa imagem fosse muito cara para Morrison, principalmente pelo fato de entronizar o espírito dionisíaco num contexto original, do autóctone ianque. Ou aquele a quem ele se identifica e projeta o
Dionísio de Nietzsche, mesmo que de forma anacrônica, já que a imagem do xamã não possui cognato na cultura grega.

O insight de miscigenar as formas de “transe” da tragédia grega ao palco do rock, passando pelo jazz e pelo free speech típico das leituras beat dos anos 50 foi uma interessante contribuição dos Doors ao rock num período em que este gênero musical que, no começo dos anos 60, havia ressurgido depois de um período de estagnação, no fim dos 50, estava à procura de um certo grau de maturidade.

Porém, é como se o modelo comercial de rock fosse “apolíneo” em excesso, cooptado pelas regras da indústria fonográfica, domesticado do seu primitivismo “dionisíaco” pré-Elvis, ao mesmo tempo que carente de um conteúdo poético que transcendesse a mera execução da música.

A partir dali, também influenciado por cantores-compositores como Leonard Cohen e Bob Dylan, o rock buscasse esse projeto de ‘retorno’ à arte das musas. De certa forma, os Doors, a despeito de todos os estereótipos “simplistas” (com o perdão da redundância), acreditava que um estilo tão “tacanho” como o rock pudesse aspirar à essa transcendência estética.

A ótica, nesse momento, transcende a lógica em favor do elemento cênico. É justamente esse paroxismo que, no roteiro, caracteriza, em todo o seu cúmulo, a ideia de Jim Morrison como o Dionísio moderno, a transposição do rito órfico, o momento em que vemos a aliança fraterna das duas deidades artísticas, como em O Nascimento da Tragédia.

De onde haveremos de derivar esse milagroso autodesdobramento, essa quebra do aguilhão apolíneo, se não da magia dionisíaca que, excitando aparentemente ao máximo as emoções apolíneas, é capaz, não obstante, de obrigar essa superabundância da força apolínea a ficar ao seu serviço. O mito trágico só deve ser entendido como uma afiguração da sabedoria dionisíaca através dos meios artísticos apolíneos; ele leva o mundo da aparência ao limite ao que este se nega a si mesmo e procura refugiar-se no regaço das verdadeiras e únicas realidades (Op. Cit, p.131)

Stephen Davis entende que, desde o começo, Morrison fazia uma clara analogia entre o nascimento do rock e o nascimento da tragédia.
Ao mesmo tempo que ele o rock era a síntese do apolíneo e do dionisíaco, ele era a síntese da música europeia e do material folclórico norte-americano. “Gosto de pensar na história do rock como a origem do drama grego. Isso começou no rés-do-chão durante a estação crucial, e começou com um bando de acólitos dançando e cantando. Assim, um dia, um homem possesso pulou para fora da turba e começou a imitar um deus” (Op. Cit, p. 246).

A Cultura Beat fez a ponte necessária ao incluir, em seu culto ao Bebop e, por conseguinte, a integração racial. O rock deu um novo status á artistas negros, antes segregados. Sua música seria a moldura essencial que iria galvanizar o rock, a partir dos anos 50.

Como Nietzsche entendia a ópera como o ‘filtro’ apolíneo pelo qual a arte dionisíaca poderia se expressar, o blues e o jazz, como gêneros primitivos, de raiz negra, no âmbito do rock psicodélico, seriam o veículo de expressão do rock e para a arte de Morrison.

Os Doors usavam basicamente dos mesmos princípios da música ligeira, isso é, do pop comercial. No entanto, ao misturar a experiência da expressão cênica e a temática referente à poesia ditirâmbica, ele criava um tipo diverso de comunicação com o público: ao invés do delírio convulsivo das “white socks” da beatlemania, o material temático dos Doors, misturando Brecht, poesia beat, a circularidade sonora do blues – aqui já eletrificado na voga do rock psicodélico, ele busca uma nova atitude por parte da plateia. A sua arte, no âmbito do rock, vira um “festival sagrado” em versão pop, uma versão sui generis do padrão da música ligeira tipificada pelos Beatles e congêneres.

3. Stone e Nietzsche: incidentes dionisíacos

Podemos entender a concepção do roteiro de Oliver Stone no filme The Doors em dois planos. Um no tocante à reelaboração moderna do mito do poeta trágico segundo a concepção nietzschiana. No outro, já no plano do enredo, o choque entre a figura (real-ficcional) exótica de Morrison diante do estabilishment.

A partir do flashback, eles começam no UCLA (Universidade da Califórnia), em 1965, com Ray e Jim tentando deslanchar uma carreira de cineastas. Eles dividem um bangalô em Venice, no balneário de Los Angeles. Eles compartilham sua frustração com a sétima arte e decidem partir para o lado da música. Manzarek apresenta Densimore (Kevin Dillon) e Krieger (Frank Whaley) e eles formam os Doors. Jim apresenta sua poesia a eles e o quarteto começa a ensaiar.

Num encontro, na praia, Ray pede para que ele mostrar suas canções. Ele mostra “Moonlight Drive”. Depois pergunta de sua temporada no deserto:

- Êxtase, loucura...
- Vamos montar uma banda de rock’n roll! Vai ser uma bomba, Jim! Eu sinto no ar! As pessoas querem lutar ou transar, amar ou matar. O Vietnã, ele está bem ali, cara, eles estão tomando partido. Vai arder tudo em chamas, cara! Esse planeta quer mudar, Jim Morrison, nós precisamos criar os mitos.
- Eu acho que deveria haver algumas orgias, sabe? Quando Dionísio chegou à Grécia, ele deixou todas as mulheres malucas, abandonando suas casas, é... Eu acho que devia ter grandes cópulas pelas ruas de Los Angeles..
- Vamos nos chamar “Dionísios”!
- Eu já tenho um nome. The Doors.
- As “portas!”
- Portas da mente!
- Ah, “portas da percepção”! A citação é de william Blake, na verdade. “Quando as portas da percepção foram limpas, todas as coisas aparecerão como elas são”.

Em alguns meses, eles começam a fazer o circuito boêmio da Sunset Strip. Desde o começo, havia o enlace do blues com as performances beat-poéticas de Morrison.

O resultado divide o público: uns acham a apresentação excêntrica e os rejeitam; outros aprovam, e alguns, como Jack Holzman, da Elektra, decide gravá-los.

A partir daí, começa a trajetória dos Doors rumo ao estrelato. Ao mesmo tempo, essa tensão entre a postura histriônica, arrogante e lisérgica da banda provoca uma série de tensões, que chegam a um cúmulo, o enfrentamento com a justiça e o exílio voluntário de Morrison, em 1970.

Stone começa mostrando falas de Morrison declamando em off sua poesia misturada a citações de Nietzsche no filme: “todas as grandes coisas devem usar máscaras assustadoras, a fim de se fincarem no coração dos homens” ou “este mundo é o desejo de poder, e nada além disso”.

Em Stone, por sua vez, podemos entender como se Morrison fosse Dionísio encarnado num jovem universitário (essa é uma das falas de Jim a Ray, na praia, logo no início, contando-lhe a respeito do mito) tentando impor sua arte numa Hélade que é a América dos anos 60, fruto do homem teórico, enfim, o que podemos chamar da hegemonia de um modo de coesão social “institucionalizada” pelo estado.

A postura de Morrison na sua trajetória, em Oliver Stone, é um embate permanente do artista querendo derrubar limites – limites estes que, mais do que os da percepção, são os da ordem instituída. Ele é o homem esquiliano metamorfoseado de poeta do rock na pólis do (usando a expressão nietzscheana) “serenojovial alexandrino”.

Um trecho do filme, o da coletiva de imprensa, ilustra a distância entre a expectativa dos repórteres diante de perguntas objetivas ao receber respostas tão presunçosas quanto enigmáticas:

P: De que falam suas músicas, sr. Morrison?
R: Amor, morte, viagem, revolta (...) estamos interessados no caos, desordem, atividades que não têm significado nenhum.
P: O que acham das péssimas críticas ao seu livro de poesias?
R: eu acho que eles não entenderam.
P: Acredita em drogas, sr. Morrison?
R: Acredito em excesso.
P: E quanto ao álcool ser ligado ao xamã?
R: É o estilo americano, que gasta mais com tabaco e álcool do que com educação.
P: Acredita no sucesso?
R: acredito num longo e prolongado caos psíquico e dos sentidos para alcançar o desconhecido (pausa). Eu vivo no subconsciente. Nossa razão pálida esconde um infinito. Sente dor? O que lhe dói mais? (silêncio)

Na sua ‘ética’ dionisíaca, o palco se transforma, volta à era trágica. Isso é notável desde a sua performance no filme na cena em que ele é expulso do palco do Whisky a Go-Go depois de representar o parricídio e incesto em “The End”.
Apenas quem o entende é um produtor, Paul Rotschild (Michael Wincott), que vê, na atuação dos Doors, um amálgama de Beckett, Sófocles, Brecht, e quer gravá-los.

O filme teoriza ostensivamente, dadas as recorrentes citações à mitologia grega ao falar de Morrison no objetivo de fundar uma banda de rock para quebrar todas as barreiras e perspectivas estanques de um universo em mudança, no auge do movimento flower-power.

Os Doors eram um produto da nova onda do rock norte-americano dos anos 60, cujo ponto de partida era a costa leste, o berço da geração beat.

O quarteto ganhou proeminência numa cena musical onde a cultura psicodélica florescia, com músicos que faziam o crossover entre o rock, o jazz, ritmos latinos, juventude universitária, marginalia, drogas recreativas e toda a boemia típica desse contexto, como os beatniks, porém baseado em San Francisco-Los Angeles, porém em escala mundial.

Stone apresenta a trajetória de Jim Morrison a partir de flashbacks, desde o incidente quando ele viu um índio morrer na estrada – a fundação do próprio mito de Morrison/xamã/Mojo Rising, sua experiência como aluno na UCLA jugando-se incompreendido como jovem cineasta citando Nietzsche. Tudo isso culmina na fundação da banda, em 1966.

Nota-se, a partir da formação dos Doors, é a postura cênica da banda, capitaneada por Morrison. A despeito da resistência dos seus colegas, ele impõe a sua poesia.

Uma cena que cifra perfeitamente o conflito entre a moral da época e a “moral” dionisíaca” de Jim é o incidente num bar da Sunset Street: o dono do estabelecimento os expulsa após a cena edipiana risqué de “The End”. Mesmo diante da plateia perplexa, Rotschild, ao contrário do dono do bar, reconhece neles alguma qualidade, e os convida para gravar, sem restrições.

A postura dos Doors, e mais precisamente a de Morrison é retratada pelo roteiro como o enfant terrible. A postura excêntrica é sempre salientada em várias cenas, porém sempre ressaltando algum tipo de conexão com o “leitmotiv” dionisíaco.

Outro episódio, esse real (e quase perfeitamente ficcionalizado em The Doors, de acordo com Robbie Krieger), foi o banimento do quarteto depois de não seguirem o decálogo do programa Ed Sullivan Show (que era exibido ao vivo domingo à noite, de costa a costa, para milhões de telespectadores) em alterar um trecho da letra de “Light My Fire”. Eles fingem obedecer (a expressão “get high” era equivalente, na época, à palavra F, por exemplo). No palco, eles cantam a letra inteira, para a perplexidade do staff do programa.

Nessas cenas, é possível entender que Stone faz uso do exagero nas falas e caracterizações de forma a teorizar sobre o papel da banda em ter uma ‘proposta’ (culto ao caos, à desordem social, como na coletiva de imprensa) que, no caso, alude sempre à uma postura livre diante da vida – porém sem parecer panegírico, ele venda a imagem pela sua conduta e pela música.

Isso porque o roteiro não deixa de expor os erros, as falhas e todas as efemérides relativas à sua postura no sentido de querer quebrar todos os limites (e entre os flashbacks, Morrison se explica, em retrospectiva). Porém, como um herói trágico de carteirinha, ele paga o preço de sua audácia, e isso vai ficando cada vez mais evidente.

O fecho possível de Stone no filme em trabalhar o imaginário do xamã associado (e sua relação apócrifa com bruxaria, por conta da sua relação com Patrícia Connely a Morrison naturalmente se presta mais à fabulação do que à realidade. Nos dois casos, vemos o personagem caracterizado como em transe com alguma forma de situação primitiva ritualística, onde, como diria Nietzsche, “ a liberação dionisíaca das cadeias do indivíduo”.

O fato de Jim apresentar-se na história ébrio (ou sempre com uma garrafa na mão) em quase todas as cenas é outro fator que o mostra sempre em transe, com sua poesia palavrosa, uma atitude excêntrica e desmedida e em palavras de ordem, cujo ápice é uma apresentação, em Miami, onde a cena criada por Stone, com efeito, transcende qualquer verossimilhança em nome da própria fábula dionisíaca de representar Morrison, já transmudado num sátiro, de barbas e roupas negras, no meio do público, num paroxismo onde palco e plateia se fundem.
Temos aqui uma perfeita representação do “orfismo dionisíaco” do rock. É pura fabulação, já que sabemos da distância do palco da plateia nos concertos de rock. Mas aqui, ela demonstra aquilo que Morrison pensava a respeito da apropriação do ethos da “Grécia esquiliana”.

A tragédia absorve em si o mais alto orgiasmo musical, de modo que é ela que, tanto entre os gregos quanto entre nós, leva diretamente a música à sua perfeição, mas, logo a seguir, coloca a seu lado o mito trágico, como o qual, então, como um poderoso titã, toma sobre o dorso o mundo dionisíaco inteiro e se alivia dele enquanto, em parte, graças à esse mesmo mito trágico, sabe libertar-nos, na pessoa do herói trágico, da ávida impulsão para essa existência, e com mão admoestadora, nos lembra de um outro ser, de um outro prazer superior, para o qual, o herói combatente, cheio de premonições, se prepara com a sua derrota e não com suas vitórias”(p.125).

Ainda que Morrison possa parecer, aos olhos do espectador menos atento, apenas mais um roqueiro hedonista, adepto da heterodoxa tríada do “sexo, drogas e rock’roll”, se apresenta aqui como a representação cinematográfica do sátiro helênico: ele desce para o público e todos cantam atrás dele, ao som da música, como se fosse o flautista de Hamelin.

A cena (1:50:00) sintetiza a imagem do poeta imerso no meio do espetáculo, levando todo o coro consigo. Esse trecho, com efeito, não ocorreu daquela forma (daí a crítica geral a respeito da versão de Stone), mas presta-se à resumir os motivos que aparecem desde o começo da história e culminam nessa cena.

O final, como se a realidade de fato servisse tão bem aos propósitos da tragédia (daí a forte e circular conexão do artista e do mito Morrison-Dionísio) mostra o líder dos Doors pagou um preço de seus excessos, mas menos para a sua visão de mundo (em vez de uma vida boa e longa, resolveu encarar seu destino de frente e morrer jovem, como Aquiles), e mais por desafiar a ordem instituída (é condenado e morreu com o processo em julgado. No retorno dos flashbacks, ele conclui sua última sessão de gravação, e parte para um exílio voluntário na França, onde morre, de overdose de heroína, em 1971.

Ele não vê saída, a realidade vence. A solução é a fuga e a morte –uma morte sórdida num quarto de hotel, longe de casa, mas que mais parece uma auto-imolação. O seu fim (na ótica do filme) perfaz a trajetória do herói trágico, a sua queda solitária e sua morte para a sua remissão (e a nossa).

Por conta disso, a ótica do roteiro busca fazer um “diálogo” entre o personagem de Morrison como uma recriação do mito dionisíaco num contexto onde a moralidade da época, no auge do movimento contracultural assomava os Estados Unidos e o líder dos Doors se mostra, na leitura de Stone, como um demiurgo que, como um Prometeu moderno, quer dar a luz aos homens e morre por isso.

É possível interpretar o pensamento hedonista de Morrison pela sua conduta. Porém, numa primeira leitura, podemos entender que se trata de um falso hedonismo, assim como muitas vezes ocorre numa leitura superficial da Geração Beat, pelo menos na literatura de Jack Kerouac, por exemplo. Isso pode ser explicado pelas reservas que tanto ele quando Morrison tinham a respeito dos hippies.
Porém, da mesma forma como o idealismo da geração beat era resumida à simples transgressão, Jim age livremente pela sua arte, pela sua potência de agir, ou como Berguson chamaria de élan vital.

Ele age pela sua ética e pelo seu ideal estético, enfrentando a sua realidade de viver, sem medo e sem arrependimento – porém, pagando o seu preço como uma vitória de Pirro, confrontando em parte a moralidade da época e, por outro, a queda de consumir-se como
Dionísio até o seu fim ou a sua queda.

No último diálogo entre Robbie Krieger e Jim Morrison (Val Kilmer), aquele diz: “eu fiz música com Dionísio!”.
Porém, a ‘morte’ de Dionísio lhe franqueou uma certa aura de santidade. Ele não morre pelos pecados da humanidade, mas seu mito renovado (Morrison/Dionísio) se transforma num exemplo atraente de redenção social e individuação pelo excesso e transfiguração, pela consciência de si mesmo, mas na busca de algo “sagrado”, que singra além de qualquer excesso – esse é o exemplo de outros que o inspiraram, de Artaud, Rimbaud, Huxley, Céline, Brecht e Kerouac até Nietzsche.



NOTAS:
(1) NIETZSCHE, Frederik. O nascimento da Tragédia. Companhia das Letras, 1992.
(2) DAVIS, Stephen. Jim Morrison: Life, Death, Legend, Ebury Press, 2004.
(3) GOLDSTEIN, Richard. Interwiew. http://mildequator.com/interviews/published.html (acessado em 16/06/2015)
(4) NIETZSCHE, Frederik. On Music and words: A Fragment from 1871 http://people.uta.fi/~simo.aaltonen/outsider.pdf (acessado em 20/05/2015
(5) DOORS, LA Woman, Elektra, 1970.


REFERÊNCIAS:
DAVIS, Stephen. Jim Morrison: Life, Death, Legend, Ebury Press, 2004
NIETZSCHE, Frederik. O nascimento da Tragédia. Companhia das Letras, 1992.
The Doors (filme) http://megafilmesonline.net/the-doors-o-filme-dublado/ (acessado em 27/06/15)

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