Friday, October 09, 2015

Preclaro Amigo


Capa do livro

Esse post é, na verdade, um metapost: trata-se do blogueiro buscando vestígios para um texto a respeito do que poderíamos chamar de "Centenário do Antônio Chimango", é um poema de Ramiro Barcelos, obra literária que hoje pode ser considerada um clássico da sátira política no Brasil. Foi publicada pela primeira vez de forma clandestina, em 1915 como "poemeto campestre". Na verdade, trata-se de uma crítica mordaz e bem humorada ao presidente do estado, Borges de Medeiros.

Mesmo que seja a única obra que compôs, Barcelos (sob o pseudônimo de Amaro Juvenal), era jornalista e escritor de mão cheia. Creio que o seu legado, deixado em quase a sua totalidade em artigos e crônicas do jornal A Federação, ainda está por ser descoberto. Contudo, atribulado com sua carreira de médico e de político, acabou se dedicando apenas à literatura por ressentimento pessoal.

Aliás, Ramiro era o homem por trás da Federação, órgão do PRR, fundado por Júlio de Castilhos e Venâncio Aires em 1884, e que seria o maior jornal de seu tempo, menos pela qualidade editorial e mais pelo seu peso político. Ele era o principal colaborador da Federação - primeiro sustentáculo do antigo PRR em seu período de propaganda republicana e, depois, como órgão oficial do governo castilhista.

Barcelos assina o seu Antônio Chimango como Amaro Juvenal. Mesmo com a intenção de ser apócrifo, o "poemeto campestre" evidenciava sua íntima ligação com seu verdadeiro autor. Ainda n'A Federação, ele assinava centenas de artigos, ensaios e crônicas com esse pseudônimo.

O "Chimango" tem uma fortuna crítica imensa mas uma posteridade enxuta. Porém, parece sobreviver apenas dentro dos círculos literários da nossa província. Creio que a Regina Zilbermann não chega a citá-lo em seu clássico A Literatura No Rio Grande Do Sul. Como se não bastasse o fato de Ramiro Barcelos ser um poeta prá lá de bissexto, ainda enveredou-se pela sátira. e, como se sabe, literatura com teor satírico acaba quase sempre sendo chamada menor no reino dos céus do beletrismo.

É compreensível. Afinal de contas, todos nós conhecemos Tomás Antônio Gonzaga mais pela sua Marília de Dirceu do que pelas suas Cartas Chilenas (que, além de sátira, é uma paráfrase (paródia?)) de Montesquieu). De qualquer maneira, nosso apócrifo Amaro não buscava os pícaros azulados da fama ou a classis de scola com o seu poemeto. Muito pelo contrário: como os melhores poemas do gênero, ele queria o seu Chimango na charla das pulperias, no rés-do-chão das venetas de calçada, no calor da hora do debate político.

Em 1915, Barcelos teve a sua candidatura ao Senado negada pelo então presidente do Estado, Borges de Medeiros. Foi, possivelmente, a gota d'água: muitos outros republicanos de primeira água já haviam desembarcado do paquete castilhista do PRR. Fernando Abbott, por exemplo, saiu do partidão para, justamente, enfrentar a sua ex-situação nas eleições ao governo da província. Perdeu para Carlos Barbosa.

Do ponto-de-vista pessoal, Ramiro foi discreto. Todavia, longe do estéril turbilhão da rua, no aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego, ele escreveu a sua vingança. Um poema breve mas que, com um topete marcial, achincalhava o presidente do Estado!

Homem discreto, mais misterioso que baú de solteirona, não existem anedotas envolvendo de Borges de Medeiros. A única história que entrou para os anais foi, justamente, "Antônio Chimango". No poema, Dr. Borges é um capataz de um certo Coronal Prates (Júlio Prates de Castilhos). Com a morte deste, restou ao ordenança o comando da "estância de São Pedro". A partir dali, a tal fértil fazenda acaba virando uma charneca. Claro que, imagine o leitor, o que seria atacar um cidadão de caráter ilibado, sisudo, discreto e timorato, temido e admirado por (quase) todos?

Algo de uma insolência sem limites. Coisa que, se pensarmos bem, da forma como foi, não poderia ter vindo de um maragato. Pois foi justamente um dissidente do PRR, talvez o maior de todos, o autor do "poemeto campestre".

Como diz Augusto Meyer, na introdução à primeira edição do livro pela Globo: "é uma caricatura da vida política naquele período que traçou Ramiro Barcelos, nem poderia ser outra coisa, considerada a intenção; mas, revelados seus lados cômicos, revirando-a pelo avesso, corrigia um excesso com outro, e emendava a versão oficial ao introduzir ao coro o falsete malicioso".

À bem da verdade, começava a desgastar-se o sistema político-eleitoral que sustentava o governo viciado que campereava no Rio Grande desde o "Coronel Prates". Se Barcelos resolveu criticar os desmandos de Borges de Medeiros no Estado, a verdade é que, com o passar do tempo, o "Antônio Chimango" acabou caindo no gosto da peonada. a partir dali e até a Revolução de 23, o livro foi ganhando sucessivas reedições (à revelia de seu autor, que morreu logo depois em 1916) e tornando-se o combustível essencial para que a oposição pegasse em armas para acabar com o casuísmo que perpetuava o ordenança do Coronel Prates no governo.

Esse período foi, talvez, o de maior popularidade do "Chimango". Como explica Maria Helena Martins num ensaio definitivo sobre a obra magna de Barcelos (1) ela diz que o "reconhecimento da qualidade literária do texto coincidiu com seu esquecimento no âmbito popular, eis que o poema vai perdendo, ao longo do tempo, sua motivação política".

Isso explica (em parte) o seu paradoxo: mesmo sendo hoje considerado um clássico, o poemeto de Amaro Juvenal parece figurar à parte, quando muito citado, como tento demonstrar acima - e essa é, quem sabe, a minha tentativa frustrada de tentar entender como e o que comemorar no centenário de "Antônio Chimango", um livro tão citado e tão pouco lido?


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Na época em que era o editor (imediato, logo abaixo de Castilhos que, por sua vez, depois de presidente, preferia ficar bebendo as lágrimas de Santo Antônio em sua chácara na Glória a ter que debruçar-se sobre a papelada da burocracia que ele próprio criou para si, era quase sempre ausente na redação) d' A Federação, ele era um dos responsáveis por organizar, nas colunas do jornal, uma escala de adjetivos que dava a cotação dos políticos na bolsa partidária.

A coisa acontecia sempre de acordo com o status do político em questão. Quando estava em ascensão, o jovem era sempre chamado de "futuroso". Daí era questão de tempo para que o rapaz fosse incluído em alguma chapa de deputação estadual. Se o sujeito estivesse em vias de chegar à Câmara Federal, então era sempre chamado de "prestigioso". Agora, quando o correligionário em questão atingisse o posto de senador, aí ele (depois dele, só o Presidente!) era era agraciado com o epíteto de "preclaro". Era "preclaro" prá cá, "preclaro" prá cá. Esse era o galardão magno de um Pinheiro Machado, por exemplo, o "condestável da república".

Pinheiro Machado que foi, esse, o co-autor do "Antônio Chimango". Depois de abrir mão da candidatura à Presidência da República, ele foi o artífice da escolha do nome do Marechal Hermes da Fonseca à candidatura ao Senado - em detrimento de Ramiro Barcelos (que já havia exercido o cargo em duas ocasiões). Borges o barrou e o preclaro condestável lançou o nome do ex-presidente, este, por sinal, enfrentando uma rejeição que chegava às portas do Palácio do Conde dos Arcos, no Rio de Janeiro.

Quando se deu o rompimento entre Barcelos e Borges, nas derradeiras vezes em que foi citado, o célebre cachoeirense foi chamado de "insaciável" e "incorrigível" no texto de um telegrama, de Borges a Pinheiro. Barcelos, já sob a persona (non grata) de Amaro Juvenal, soube do conteúdo do texto, e deu a devida resposta ao preclaro amigo no seu "poemeto campestre":


Velho gaúcho - insaciável
de fazer aos mandões guerra
Nestas páginas encerra
Por um pendor invencível
Seu amor - incorrigível
Às tradições dessa terra (2).




(1) Maria Helena Martins, A Agonia do heroísmo. LPM, Porto Alegre, 1980
(2) Amaro Juvenal. Antônio Chimango, Martins Livreiro, Porto Alegre, 1978.









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