Thursday, December 01, 2016

Desapegos



No começo deste ano, por motivo de força maior, tive que me desfazer da minha coleção de discos. Não sei quantos eram, mas era uma estante inteira. Isso que eu recentemente havia ganho mais vinis de amigos, embora não tenha tido sequer a oportunidade de escutá-los. O problema é que, com o passar do tempo em que fui me mudando para lugares cada vez menores, cheguei a um ponto em que sequer tinha condições de fretá-los.

No entanto, foi uma decisão que vinha sendo pensada há algum tempo. Pelo menos, desde que meu DDS 99 da Gradiente estragou de vez. O rádio estava com a luz digital apagada, os tapedecks estragados e o prato tocava sem retorno. Até que, numa última mudança, a correia estragou de vez.

Menos mal. Acho que teria sido muito mais difícil para mim se o toca-discos ainda funcionasse. Então, em março, eu dividi minha coleção entre aquilo que podia ser bricado, e aquilo que talvez rendesse algum dinheiro, e mais alguma coisa que pudesse ser vendida a curto prazo. Meu plano não deu muito certo. Eu dispunha de duas semanas para livrar-me de tudo. Um lote eu vendi, e me garantiu alguma sobrevivência. Aliás, eu sequer imaginava que os elepês rendessem dinheiro. Na verdade, nem tudo. A maior parte — e paradoxalmente a que eu mais me aferrava — não tinha valor nenhum.

Nenhum comprador demonstrou interesse nos meus discos de música clássica, que compreendia acho que 90% do meu acervo. ia desde aqueles títulos da Deutsche Grammophon até fascículos da Abril, como o Grande Compositores da Música Universal.

Lembro do meu primeiro disco de música clássica. Eu comprei num brechó, que ficava na Cristóvão Colombo, na frente da antiga Brahma. era um fascículo do Chopin. de tanto ouvir aquele velho disco riscado do Roberto Zidon na Rádio da Universidade tocando Ernesto Nazareth, eu fiquei com vontade de comprar um disco de clássico. Acabei me viciando.

O curioso é que, nesse brechó, a dona havia adquirido um lote gigantesco que certamente pertenceu a uma pessoa que colecionava discos de clássico. Imagino que fosse um senhor que morreu, a família se desfez daqueles 'trambolhos' e a dona comprou o lote. Eu passava todo dia ali. Ela nem era entendida do assunto, o negócio do brechó era roupas.

Eu notei que os discos eram escolhidos a dedo, e isso numa época em que o gênero erudito realmente fez época na história da indústria fonográfica, vamos dizer assim, brasileira. Até porque, hoje, na era digital, num nível internacional (e virtual) souberam lidar com os novos formatos e o mercado de nicho, ao passo que as novas gerações vão descobrindo esse tipo de música, e tem tudo nos fones ao passo de um clique.

Mas lembro de quando eu descia no subsolo da Casa Coelho: tudo lá embaixo era só jazz e erudito, e tinha um balconista que entendia das duas coisas. Imagino que o antigo dono dos discos costumava ir na Victor, na Krahe ou na Coelho, e saía de lá com toneladas de Karajan, Bohm, Richter, Previn, Rubenstein e Brailovski, tudo em lançamentos RCA, Columbia, DG.



Era esse tipo de material que eu encontrava ali. Acho que o básico para uma discoteca de clássico eu comprei ali, com meus morlacos de estagiário. Tanto foi que os meus discos de rock começaram a ocupar menos espaço na minha estante. E era algo curioso de se ver. Esses eruditos, em brechós e sebos da cidade, sempre eram vendidos a preço de banana. Ainda são.

A gente vivia um tempo distante da revolução do mp3 e da Wikipedia. Então, a importância que aqueles fascículos e contracapas (as contracapas, meu Deus, as contracapas!) tinham para a formação de cada um de nós era incomensurável. Os fascículos da Abril foram o meu começo. As 9 Sinfonias (caixa da Abril, com a Sinfônica de Leipzig) do Beethoven. Ao mesmo tempo em que me guiava pela rádio da UFRGS, aquilo tudo criou em mim uma obsessão por música clássica que perdura até hoje.

De vez em quando, passo em algum sebo ou no Brique da Redenção, e vejo algum disco do tipo e lembro da minha coleção. Lembro do dia em que, não podendo mais ficar com meus elepês e, tendo que entregar o apartamento, apelei para o Mensageiro da Caridade. liguei para lá e agendei que passassem para levar os discos.

Enquanto os carregadores encaixotavam tudo aquilo, eu lembrava do meu primeiro disco, de tantas madrugadas de audições, das leituras das contracapas. aquilo tudo representava uma curva de vida, de uma vida que se fez por tantos anos, álbum a álbum, adquirido e guardado com tanto carinho. Recordava do dia que aquele Hammerklavier com o Emil Gilels foi comprado, aquela caixa com a Zauberflôte também, aquele Puccini da Victrola com árias com a Lícia Albanese, as valsas do Chopin com o Arrau, a Sinfonia em Ré Menor do Beethoven com o Toscanini, o meu sonho de ter toda a Bach Edition da Telefunken (aqueles de capa azul com fotos em relevo) com todas as cantatas sacras do mestre de Eisenach, os discos do I Musici, todas aquelas capas lindas da Deutsche Grammophon, que sempre foi aquela gravadora que a gente comprava o disco pelo selo, e se não fosse por isso, era pela capa. Aquela Eroica com o Karajan que eu garimpei na Augusta, quando fui para São Paulo que, aliás, era importado e o dono da loja me cobrou uma nota por ele. Aquele fascículo do padre José Maurício que, na época, tinha a única gravação do Réquiem dele.

Em poucos minutos, o pessoal do Mensageiro colocou quase duas décadas de discos do meu acervo em sacos e caixas e desceu com tudo para o caminhão. Não podia mais mantê-los. Me senti vazio. Ainda me senti, sempre que passo na frente de um brechó com discos antigos. Fiquei órfão de meus elepês. Os de rock eu passei adiante sem remorsos. Nem eram tantos. Menos mal que, desde que eu descobri o mp3, eu fui me desapegando dos bolachões.

Não tenho fetiche por vinil, algo muito comum hoje. Mas é impossível livrar-me de toda a cultura de formação que gira em torno da minha geração de ouvinte, quando o long-play era relevante. Eu me apegava mais porque aquele acervo, com aqueles solistas, e aquelas gravações (Georgy Cziffra interpretando os estudos do Chopin), era material de uma época em que o cast dos grandes selos mantinham nomes como um Karajan, cuja imagem se misturava com suas interpretações de Beethoven, como Richter com Bach. Enfim, toda uma época de ouro do vinil de clássicos que acho que renderia um belo livro sobre o assunto.

Como eu disse, as lojas davam um destaque enorme para uma seção como a de erudito, ao mesmo tempo que as gravadoras lançavam muita coisa do gênero. Foi um boom que começou nos 60 (muitos dos meus eram daquela época, a maioria 60/70, o auge do vinil). A RCA tinha até a série Victrola, que eram edições populares de clássico, a preços módicos. Para quem se detiver, vai perceber o valor de uma contracapa de disco era como hoje eu ouvir o Piano Concerto do Schumann (tinha o disco com o Van Cliburn e o Fritz Rainer) no Youtube lendo a Wikipedia.

Por essas e outras que meus discos farão falta, mas não tanto. Eu até que ainda tenho acesso àquele manaicial de informação. O que fica é a mesma curiosidade enciclopédica que querer aprender sempre. Ou seja, não me apegava pela forma (vinil) mas pelo conteúdo.

Ele hoje está no mundo virtual. Não sei se é um apanágio zodiacal, mas eu pressinto as coisas lentamente. Então, desde muito tempo, eu já me preparava para o fatal desenlace. Lá se foi meu acervo para a caridade. E a única pessoa que daria valor aos pobres discos era este que vos escreve.

Às vezes eu aleatoriamente ouço, aqui ou ali, algum trecho da Sinfonia do Novo Mundo, do Dvorak, ou a suíte da Coppélia, ou o final do primeiro ato da La Traviata, e me perco em divagações. Fico imaginando que, em algum lugar fora do tempo, meus discos estão incorruptos, naquela mesma estante, esperando por mim.

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