Thursday, November 24, 2016

A Caixa



Esses dias, durante uma mudança, fui arrastar um armário e uma enorme caixa de fotos caiu na minha cabeça.

Enquanto eu juntava as fotos e recolocava todas no lugar, repassava uma por uma. Uma irmã da minha avó materna que eu não sei o nome, com um óculos Aghata Christie, meu pai com meu irmão no colo na véspera de Natal, uma tia num cômoro na orla de Cidreira (no tempo que havia cômoros em Cidreira) com as amigas, meu avô materno com um terno xadrez estranhíssimo, um aniversário meu no playground do Selva de Pedra, no Leblon, com garrafas de Coca-Cola antigas. Outra tia na Escola de Arte (e que abandonou a pintura para virar dona de casa), um primo montado num pônei na beira da praia, em Pinhal.

Que fim levou toda essa gente? E por que eu ainda tenho essas fotos? A gente vai herdando álbuns de fotos de parentes — e de parentes e de parentes. Até fotos antigas que não nos dizem nada. Coisas até do primeiro casamento de meu avô. de repente, olho a noiva: nunca a conheci. Sempre achei que minha avó fosse a primeira.

No fim, a sensação final é a de que era melhor não ter visto as fotos. Essa experiência de olhar fotos antigas é meio angustiante. Nós vamos guardando fotos, postais, para quê? chega a um ponto em que elas não nos dizem nada, apenas trazem tristeza. Parece que existe um certo prazer mórbido em repassar essas imagens.

Por outro lado, é incrível de se pensar em como nossa memória é um repositório pantanoso, como o manatial do Simões Lopes Neto que, como velhos álbuns de fotos, tem coisas que a gente tem certeza que esqueceu, ou que a vida acabou relegando a um arquivo morto — tão morto que, se não fossem meus retratos de infância, eu sequer lembraria de ter estado no lugar tal, ou de determinada festa de aniversário.

Parece que nós temos mais facilidade de elaborar o tempo recente, ou o passado recente. Mas o passado profundo é a história de uma outra pessoa. Minha infância é um garoto que eu conheci ou que me contaram histórias sobre ele. O que ele experimentou, viveu, presenciou ou sentiu? É impossível reconstruir esse passado. As fotos são pistas. Aquele menino com cara de perdido entre guarda-sois na praia sou eu? O que eu pensava naquela época? A fotografia parece uma filmagem curta, sem áudio. É um milagre que exista uma lembrança de um dia e um lugar. Mas meu retorno é impossível.

Quando quero lembrar-me, aí estou fabulando a história de uma outra pessoa, de um outro meu que, ao contrário do conto do Borges, é mudo. Quando me olho, já não sou eu; parece um filho que eu tive há muito tempo, e que perdi e por quem não tenho saudades. E o tempo que se passou da foto até o momento em que estou compondo esse texto é tão breve comparado as horas do dia que se arrastam desde que me acordei, hoje — um dia na vida que não irei inventariá-lo num diário e que vai se perder no sumidouro da memória. Tempo tempo perdido e que redunda em nada, nenhuma emoção, nenhuma experiência, nenhuma vida vivida (de repente, uma quinta que até eu fiz questão de deixá-lo passar, pensando na sexta, e que também desaparecerá) e que, voluntária ou involuntariamente, cai no arquivo morto.


Mudando de assunto e ficando no mesmo: terça eu estava pesquisando na Internet e lembrei da Editora Saravan, que lançava álbuns de figurinha temáticos, de futebol a novela. Na época da ditadura, era pura lavagem cerebral: a primeira parte eram figurinhas do presidente, das bandeiras dos estados, de culturas de produtos típicos de exportação brasileiros, de signos de ufanismo, algo bem de época. Na nossa inocência, nós colecionávamos isso. Quando procurei pelo álbum da novela Pai Herói, deparei-me com o fac-símile da capa.

Foi como voltar a um lugar que eu não ia faz anos. E essa sensação de voltar é sempre estranha: parece bom voltar, mas talvez fosse melhor ter ficado no presente. Sem falar da sensação mórbida de querer evocar mais e mais. a verdade é que o fac-símile me raptara. E lá estava eu evocando coisas que não me lembrava. Às vezes é bom, mas se eu me viciar nisso, talvez não volte nunca mais.


O álbum

Hoje, revendo a reprodução na Internet, é incrível a propaganda ideologicamente ufanista que era feita por esses produtos (quem conhece a música 1965 (Duas Tribos) e viveu a infância nos 70 vai entender aquela letra). Paradoxalmente, era puro entretenimento. e o fato de eu jogar bafo com a figurinha do presidente Figueiredo não me impediu de várias vezes avacalhar o Hino nacional quando a gente hasteava a bandeira no colégio e sempre acabava na Direção — aliás, quase fui expulso do Positivo por conta disso. e só parei de apupar o Hino porque ia ser expulso mesmo. Enfim, a lavagem cerebral da editora Saravan não deu muito certo.

Na época do Orkut havia uma comunidade, a Acervo Brega, que era uma espécie de base de dados maluca e colaborativa de arquivos de mp3 não de música popular brasileira, mas de música brasileira popular. Numa dessas, uma usuária postou um rip de disco vinil da canção de abertura da Família Barbapapa, que era uma animação francesa que passava na antiga TV Globinho nos anos 70. Não sei se passava em outros estados, mas passava no Rio. A apresentação, na época, era da Paula Saldanha.

Quando fui ouvir aquela música, foi catártico: devo ter chorado litros ao mesmo tempo em que toda a minha infância proustianamente apareceu diante de mim. O mais estranho foi voltar a tanta coisa que havia acontecido há tento tempo e que, por conta dessa distância temporal, havia praticamente se perdido na poeira da memória.

Não eram bagatelas que eu me recordava: a música trouxe de volta toda uma época finada, muito recente para ser chamada de nostalgia, mas também muito recente para ser esquecida — enfim, tudo aquilo de volta, como o chá com madeleines do Proust. É aquele momento quando somos raptados por uma memória involuntária. Mas que ganha uma considerável importância porque, dessas pistas e ruínas do passado, eu começo um novo álbum imaginário, onde eu tento montar os pedaços de algo relativamente ordinário que, na verdade, não deveria ser esquecido.

A gente muda, os tempos mudam, mas essas coisas permanecem enterradas na gente — como diria o Nelson Rodrigues nas suas Confissões, como sapo em macumba. Mesmo que tentemos esquecer, parece que a vida faz com que a gente acabe confrontando com essas coisas de novo, como um ajuste de contas. Existe um tempo para tudo na vida. E parece que se deixamos algo para trás, elas nos cobram a conta do esquecimento.



Deixei a música no repeat por horas e horas, e acho que passei uma madrugada inteira ouvindo aquela maldita musiquinha do Barbapapa. Lembro que a Kibon vendia latas de sorvete com a imagem da família Barbapapa. depois fui morar em outros locais. Muita gente da minha idade não conhecia o desenho. No fim, de tanto insistir e, tanto tempo passado, achei que eu estivesse é delirando. décadas depois, o mp3 no raptou de volta aos anos 70, à TV Globinho, a Paula Saldanha, o Pequeno Polegar lá na Tijuca e as apresentações de teatro (eu vestido de mandarim, contrariado porque tive que "puxar" os olhos com lápis para parecer com um chinês), a casa Sendas e os passeios de bondinho do Pão de Açúcar (eu ainda de cabelo loiro de camisa de regada listrada e botinha ortopédica, meu Deus olha isso), o Selva de Pedra, descer a Rua Almirante Guilhem de pé descalço (onde a gente escapava do sol por causa das copas das árvores mas queimava a sola dos pés na ida e na volta) num domingo de manhã com baldinho de areia e passar o dia na praia.

De repente, tocou a campainha. Pus rápido todo o resto das fotos na caixa, que joguei num canto, como se fosse uma barata seca.



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