Saturday, October 01, 2016

A Cidade do Chope


O Chalé

Tem uma propaganda da Guaíba sobre o Chalé da Praça XV que anuncia buffet de feijoada ao som da banda da Lapa, com o “melhor do chorinho e do samba de raiz”.
Parece ser uma boa pedida para um sábado. Porém, vivemos um tempo não só de gentrificação de espaços públicos históricos quanto de anacronismos culturais.

Não que eu queira aqui estar bancando o conservador ou o defensor do patrimônio público. Não. Mas é interessante observar como os usos e costumes — se não descaracterizam o local, criam um outro tipo de ritual.
Em alguns casos, esses lugares resistem: é o caso do Mercado Público, que fica ao lado do Chalé, e é o seu irmão mais velho: data ainda do Segundo Reinado, quando a Praça quinze chamava-se Conde D’Eu.

Hoje nós vivemos a era dos supermercados. Agora imagine o leitor como era adquirir mantimentos há um século. No tempo de nossas avós, as casas não tinham geladeiras e os mercadinhos rareavam. Logo, o Mercado era a Meca dos secos e molhados.

Até meados do século passado, o Mercadão era literalmente o mercado público. O advento das grandes redes e os mercados de bairro quase mataram ele. Nos anos 80, naquela onda de demolições, ele quase virou estacionamento.

Hoje nós ainda podemos contar com o Marcado. Contudo, com o tempo, a gentrificação foi o preço da sua sobrevivência. Para não morrer, o local teve que dançar conforme a música: de Meca dos secos e molhados, o prédio virou um ponto turístico e um ambiente de culto à memória e às tradições da vida urbana da cidade. Quem não gosta de levar um visitante a provar um sorvete na Banca 40?

Antes que procurem no dicionário: “gentrificação” é, via de regra, a gourmetização do espeço público. No caso do Mercado, até os anos 80, ou seja, até a reforma e a sua reinauguração, em 1997, era um ponto de comida barata, produtos de preço de ocasião, e antro de pés sujos. Com a reforma, o espaço se modernizou.

Um exemplo são os tradicionais restaurantes dali. Há meio século, era o ponto onde o sem-culotes que habitava nosso pequeno burgo açoriano bebia a sua primeira e santa cerveja da tarde.

Hoje, ao correr a vista no cardápio, é difícil encarar. Virou arapuca para turista. Ao mesmo tempo, com a mudança do caráter dos estabelecimentos e o aumento da oferta de serviços de mesma monta, o Mercado tem um outro público. A rigor, hoje, aqueles que teimosamente ainda frequentam o centro de Porto Alegre.

Restaurantes extintos dali, como o Treviso, eram locais que não fechavam nunca — e possuíam uma frequência considerável durante as madrugadas, principalmente porque o comércio e as redações de jornais ficavam todas no Centro. Ou seja, o Mercado era never sleeps.
Hoje, ele dorme com as corujas.

Falei tudo isso para chegar no Chalé. Por exemplo, para o tipo de cardápio que ele hoje vocifera aos sábados (feijoada e samba) é algo totalmente diferente do que era ou foi o estabelecimento, quando surgiu, no começo do Século XX.

Reitero: não quero ser o chato da história. Mas, para ver como os usos e costumes mudam com o tempo, o Chalé surgiu num tempo em que a colônia alemã (ou teutônica, como diria o Nilo Ruschel) na capital era gigantesca, e tomava conta de agremiações esportivas, lojas, cervejarias (até a época da Guerra, a Ritter, a Sassen e a Bopp, depois comprada pela Continental e depois a Brahma, mas essa é também outra história), o diabo.

Aliás, como o Chalé, a maior parte dos chopes de Porto Alegre nasceram de raiz germânica: o Gambrinus, o Zeppelin, o Zither Franz, o Lilliput, o Bretstubel, o Rhinengold (nome wagneriano), o Berger e inclusive o antológico dona Maria, que ficava na José Montaury, ao lado da Globo (outro antigo ponto-de-encontro da boemia jornalística de Porto Alegre, mas isto é uma outra história), pertencia a Maria Hopf, que começara trabalhando no citado Gambrinus.

Havia outros bares de raiz teutônica: o Hubertus, na Otávio Rocha, a Confeitaria Jahn, a Coroa, da Frayu Krantz, ao lado da Galeria Chaves e a antiga Woltmann que, como a Colombo, funcionava inclusive como um café-cantante.

O Chalé, segundo o Ruschel, foi construído em estilo bávaro, e o ferro foi todo importado da Alemanha. Naquelas priscas eras, não se trabalhava com esse material por aqui, tudo vinha de lá. O engenheiro ou arquiteto mandava o projeto e eles mandavam os insumos.
Naturalmente que esses chopes, e inclusive o Chalé, fosse um local onde toda a comunidade alemã da cidade se encontrassem. E, para acentuar a cor local (como diz Ruschel), o quiosque tinha (e prá quem for lá ainda hoje, está lá) um pequeno palco, quase no teto, onde ficava um pequeno conjunto regional, que se empoleirava e tocava dobrados ou até a carga da Cavalaria Ligeira, do Von Suppé.

Ou então, tocava ali um trio clássico, com violino, piano e violoncelo, e tocavam desde Chopin até Beethoven. Ou então, como diz Ruschel, o regional puxava algumas marchinhas marciais, e a estudantada cantava junto, mesmo brasileiros — entre eles, Paulo de Gouvêa, Teodomiro Tostes, Athos Damasceno e muitos outros, que se tornariam intelectuais do começo da Revista do Globo e da imprensa do começo do século passado.

Ruschel conta do espanto do ensaísta R. Magalhães Júnior ao presenciar, aqui em Porto Alegre, no Hubertus ou no Chalé, o desfile de cantores e cantoras entoando lieder de Schubert ou valsas do Strauss filho nos germânicos saraus noturnos de então: “meu Deus, isso aqui não é o Brasil, eu estou em Viena ou no Prater”.

Resumindo: o Chalé pertence a uma época de ascendência da comunidade germânica na cidade, época que morreu depois da I Guerra e foi varrida depois da Segunda. Aliás, a biografia do arquiteto Theo Wiederspahn fala muito da injustiça que ele (e muitos outros) sofreu por ser de origem teutônica a partir de então (mas isso também é assunto para um próximo post). época essa cujo mais simbólico atavismo é, justamente, o famoso quiosque que existe ali até hoje — e que parece estar tão longe de suas origens culturais. Pelo menos o chope ainda resiste!

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