Thursday, December 08, 2016

Estação Elétrica, 40 anos



Arte do disco


O tempo passou eu me lembrei: o Estação Elétrica, único disco de estúdio do Bixo da Seda, está fazendo esse ano 40 anos. É incrível imaginar o que era para uma banda de rock do extremo sul do Brasil lançar um álbum naquela época em que rock era puro desbunde e contracultura.

Fazer rock há 40 anos atrás era como navegar pelas águas turvas e intranquilas. O mainstream era em parte aquela MPB que estava ficando cada vez mais bicho grilo, enquanto o rádio tocava somente os sucesso pré-fabricados de ocasião — basicamente os fonogramas de paus de sebo e trilhas de novelas da Rede Globo. Não que isso fosse de todo ruim; inclusive, se a gente pegar hoje aquelas trilhas, fica impressionado em ver quem como diria o André Midani, até o jabá era de qualidade.

Mas em matéria de rock, navegar pelo gênero era quase como pregar no deserto. basta lembrar que grandes clássicos que saíram na década — e que são cultuados hoje — foram retumbantes fracassos. Muitos foram lançados em selos que ou fecharam ou foram comprados por alguma grande gravadora. Por muitos anos, aquele material restou fora de catálogo.

Foi o caso do Estação Elétrica. Lembro que, quando ia a algum sebo, sempre via a capa do elepê em exposição (assim como o Por Favor Sucesso, do Liverpool). E não tinha a mínima ideia do que era aquilo. Lembro que, lá pelo começo dos anos 2000, eu comentava com um amigo a respeito de uma matéria da Bizz sobre grandes álbuns de rock esquecidos — texto, se não me engano, do Fernando Rosa, que foi um dos primeiros a inventariar todo o legado do gênero que ficou esquecido por quase três décadas e que reapareceu com a Internet.

Esse meu amigo disse que tinha os dois vinis, o Estação e o Por Favor... E me gravou ambos em CDA. Isso que, naquela época, ali por 2000, 2001, nos áureos tempos dos três-oito-meia, não havia tecnologia para baixar discos completos como hoje ou muito menos streaming (Youtube viria depois). Logo, ter acesso a esse material era ainda um privilégio.

Isso que o áudio do meu CD era, na verdade, ripado do algum vinil, totalmente artesanal. Mas estava tudo ali, exceto o Marcelo Zona Sul. Era notável observar a diferença da primeira fase Liverpool Sound — mais tropicalista, lisérgico, Mutantes, puro rock sessentista Lado B, muito melhor do que o udigrudi pasteurizado e colonizado da Jovem Guarda e a segunda, rock clássico, misturando viagens tipo Yes no lado A e um som mais básico, hard rock com uma malemolência a la Stones.

Meu choque inicial foi perceber que a Internet nos prometia essa perspectiva revolucionária: de descobrir toda uma música que ficou arquivada e que agora eu poderia usufruir. Você sempre ouvia falar do Bixo, do Fughetti e das histórias do IAPI, mas faltava ouvir o disco. Agora, não faltava nada. Virei fã na primeira audição, e é sempre uma delícia ouvir o estação, assim como tantos álbuns clássicos e que passaram batidos por tanto tempo, todo o prog nacional que havia ficado prá trás.

Rock era algo interdito por aqui. Imagine o que era fazer música em Porto Alegre nos anos 70. O estabilishment do nosso burgo açoriano não queria saber de aglomerações de jovens em lugar nenhum. Se em outras cidades, como no Rio de Janeiro, havia uma certa permissividade, por parte dos órgãos do governo, para a realização de shows, aqui era quase uma aventura para se conseguir liberação de algum evento. A coisa mudaria a partir do Musipuc e com as Rodas de Som, produzidas pelo Carlinhos Hartlieb, em 75. No Clube de Cultura, direto da Zona Norte, o Bixo da Seda começava a sair do casulo. As tardes de sábados e domingos eram povoadas pelas guitarras de Mimi, Edinho e Cláudio Levitan.

Aquelas tardes no Clube seriam o prenúncio do que iria acontecer também a partir do Musipuc, que era a revolução do Vivendo a Vida de Lee. Nessa fase, Bixo e o Prosexo tocavam muito pelo interior do estado. O turma de Fughetti chegou a lotar o auditório da rádio Cultura, de Pelotas. A ideia era tocar onde fosse possível. No entanto, muitos diretório acadêmicos estava fechada para o rock. Isso naquela época em que o movimento estudantil ainda via o gênero como algo alienante ou coisa parecida.

Ou seja, parte da juventude não via com bons olhos aquelas bandas; por outro, as gravadoras simplesmente ignoravam a produção musical do estilo naquele tempo. Casos clássicos: os Mutantes foram demitidos da Phillips porque o progressivo deles era considerado hermético demais para as rádios. Outra foi o Vímana, cujo disco de estreia — totalmente produzido pela banda, foi esnobado por todas as gravadoras brasileiras. Independente de qualidade, num outro contexto musical, os dois álbuns teriam acontecido — o que não ocorreu, naquelas tempos adversos dos anos 70.



O Bixo da Seda seria o piece de resistance das Rodas de Som no Teatro de Arena, em 1975. Eles já fazia um circuito tocando em locais nomo no Sindicato dos Metalúrgicos (na Francisco Trein), perto do IAPI e venciam a resistência de parte do público local em desdenharem artistas locais. Carlinhos Hartlieb, que já mantinha contato com eles desde o Por Favor Sucesso, conseguiu amalgamar novos talentos com seus amigos veteranos.

As Rodas foram um sucesso desde a sua estreia, em 7 de março de 1975. O apoio dado pela Continental (onde Júlio Furst já dava a largada divulgando os músicos da cidade no programa do Mr Lee) fez com que os 240 lugares do Arena fosse pouco para as quase mil pessoas que estavam no lado de fora do viaduto Otávio Rocha. Isso contrariando todas as expectativas: muitos achavam que era coisa de maluco um espetáculo na madrugada de domingo em pleno Centro.

As Rodas e a nova onda de artistas impulsionou a carreira do Bixo que, um anos depois, estava de malas prontas para o Rio. eles haviam fechado contrato para a gravação de um elepê para a Continental. Ao mesmo tempo, outros grupos, como os Almôndegas, já surfando em outras praias, também se insurgiam no mercado fonográfico. foi uma época que durou exatamente o período do auge do Mr. Lee na Continental. A banda foi reformulada para as sessões. Renato Ladeira, que havia deixado a Bolha no segundo disco (apenas compôs algumas faixas, mas estava ausente de É Proibido Fumar), toca teclados e guitarra no Estação.

Uma pena que o Brasil daqueles tempos ainda não estivesse preparado para o rock. Aquela primavera musical que floresceu em Porto Alegre perdeu-se num longo inverno. E o Bixo acabou.

Quando o rock gaúcho estourou, nos anos 80, no entanto, muitos daquela nova geração paradoxalmente ia contra o legado dos anos 70. Não que isso fosse regra. Quando o disco-manifesto saiu, em 1984, a Bandaliera, agora não mais uma banda instrumental, gravava "Rockinho" do Fughetti Luz. O Bixo havia acabado, mas ele sempre estava em espírito naquela nova dentição do rock regional.

Na verdade, o Bixo da Seda nunca acabou: só fez, como é mode se dizer hoje, uma pausa. e é provável que essa redescoberta e essa permanência nasceu porque, em algum momento, outras pessoas além de mim, conseguiram uma cópia em fita cassete ou em CDA e descobriu que o rock gaúcho não começou em 1984. Começou bem antes, e a maior banda de todos os tempos por esses pagos é o Bixo da Seda.

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