Friday, November 25, 2016

Gabriela



Desde pequeno que queriam que Rubião fosse doutor e montasse uma banca. "Olha o dr. Basílio, com setenta anos, não precisa se preocupar com mais nada. Só dá uma passadinha por semana no escritório".

Mas não, ele queria seguir sua vocação, que era Letras. "Meu filho, o que você vai fazer com esse diploma, meu Deus? Vai ficar entregando currículo e ninguém vai te chamar, daqui a uns tempos, vai ficar sem vintém e vai ser a suprema humilhação, pedir dinheiro emprestado a amigos e ter que viver em casa de parentes. Já pensou? Viver de sofá em sofá, tendo que mendigar uma refeição por dia? É isso o que você quer?".

Sua tia lembrava do Odorico. "Aquele cocainômano imprestável e falastrão, um usurário e gastador, morreu vivendo com a mãe, com quarenta e dois anos, sozinho numa casa de praia, de caseiro para pagar a cerveja. Teve que virar caseiro em Cidreira prá sair da Cruzeiro, senão ia acabar morto ou por overdose ou baleado por algum traficante. e esse era outro idiota com diploma!".

De nada adiantava argumentar. mamãe sempre vinha com um estoque de primos e filhos de amigos bem sucedidos. E era implacável: "Imagina tu chegando no Natal da família, todo mundo com mulher e filhos e você ali, sem presente, de calça de abrigo, o idiota da vila, vai só para beber, vomitar na camisa e fazer vexame mesmo!".

Na verdade, vendo que a cantilena não redundava em nada, seus familiares começaram a meter-lhe em ridículo. "E esse concurso? Não vai fazer? É o último dia! E esse outro aqui? Também não? Puxa, você não quer nada!".

Não tardou, Rubião acabou passando em Letras. A ofensiva diminuiu, mas era uma paz armada. Logo seria impossível o convívio com sua família. No fim, formou-se e aquilo que seus pais vaticinaram realmente aconteceu. Muitos currículos e nada. "Taí, o Vítor passou naquele concurso e vai ser escriturário em Pelotas. Vai até comprar uma casa nova para a vovó e construir uma de praia lá em Itapeva, para passar as férias". A frase ficava em suspenso, como se ele esperasse o: "e quanto a você?".

Argumentavam de diferentes maneiras, forçavam um silêncio constrangedor dele quando vociferavam sobre tais assuntos. Os anos passavam, e e nada de emprego, nada de concurso, enquanto o filho de fulano ganhava promoção ou o primo tal era agora sub-chefe de alguma coisa, carro do ano e casa própria.

Nessa época, ele começou a rarear em casa. vivia de bico, para poder manter uma vida noturna. Chegar em casa a uma de madrugada, para sair às seis, ou pelo menos antes que todos acordassem. se pudesse, entrava e saía pela janela. Certo dia, numa praça, viu uma jovem, silenciosa e triste, que parecia compartilhar do mesmo desamparo.

A identidade e a angústia acabou os aproximando. Conversaram e, depois de um mês, estavam juntos. Porém, depois de um ano, a cobrança começou a partir dela. Amargurado, não podia sequer fazer qualquer reparo às acusações. Ao mesmo tempo, sentia-se culpado: afinal de contas, ela tinha razão. Aliás, todos tinham razão. Ele é que estava errado. Só que, ao contrário de sua família, não queria decepcionar a moça. sentiu-se duplamente culpado.

Vendo que sua situação era incontornável, começou a fingir-se de maluco. Depois de semanas bebendo pesado e compulsoriamente, quebrando louças e móveis ou passando dias a fio num quarto fechado, ela decidiu chamar um médico para comprovar sua insanidade. Bebeu meses a fio, até chegar quase em quadro de delirium tremens. Sempre achava graça quando dizia que pessoas nesse estado viam bichos andando pelo próprio corpo. ele não só já passava a ter essa experiência isso como também enxergava elefantes cor-de-rosa no quarto. Conclusão: estava realmente ficando maluco. "Quer ficar assim, o problema é seu", repetia, do outro lado da porta.

Foi internado na rua Santana. Enquanto o tempo passava, Rubião analisava seus companheiros: o Nelson, o Pedro o Grande e o Franklin Delano, todos aliás egressos dos bancos das Belas Letras. Era quase uma Arcádia na Pinel. Durante horas a fio, discutiam desde o Arquíloco e o Pentâmetro iâmbico até o Formalismo Russo e Estruturalismo. Parecia que estavam nas cadeiras de plástico vermelhas do Vale, como nos velhos tempos.

Numa quinta, pelo fim da manhã, Napoleão chegou esbaforido. lamentou sua derrota em Waterloo, disse que o Duque de Wellington era um gigolô e que ele havia sido derrotado apenas porque o Paissandu havia recebido a mala preta. Nosso herói explicou que, ora diabos, eram 40 mil prussianos contra 20 mil franceses. E, parafraseando Cláudio Cabral, explicou que não faz sentido receber soldo para perder e mala preta para ganhar. E quem venceu Paissandu foi o Marcílio Dias.

— Foi o Tamandaré. - respondeu Napoleão.

— Foi o Marcílio - insistiu Rubião mesmo sem estar lá muito convicto.

— Tamandaré.

— Marcílio!

— Tamandaré.

— Marcílio!

— Tamandaré.

— Marcílio!

— Tamandaré.

— Marcílio!

— Foi o Tamandaré, cacete, ele é quem comandava o Paissandu, digo, comandava o Marcílio! — disparou Napoleão, triunfante. em seguida, em tom grave, emendou:

- O negócio é o seguinte e eu vou contar prá vocês. A situação tá cínica. O Duque de Wellington e aquele general prussiano estão atrás de mim. Digo, de nós! Ele vai entrar com os seus 40 mil cavalarianos aqui e mais ainda a cavalaria russa e a prussiana. Mas nós não vamos nos entregar! Não podemos se entregar para os homens! Pegando da espada, ele empossou Rubião, Franklin, Nelson e Pedro majores.

Lutariam até o fim.

— Soldados! — bradou Bonaparte em seu cavalo branco, à guisa de General Osório: — É fácil a missão de comandar homens livres; basta mostrar-lhes o caminho do dever!

Napoleão nomeou nosso herói como seu comandante-em-chefe. Numa primeira ofensiva aliada, porém, houve um tiroteio bárbaro, que durou longos segundos. Logo, Franklin, Maurício e Pedro que, junto com os 18 do Forte, marcharam em direção do exército inglês, aos gritos de: "abaixo á plutocracia", desciam a avenida Atlântica, em direção ao Leme. Foram alvejados no caminho, à medida em que avançavam, como patos de tiro ao alvo.

Aquartelados, Major Rubião e Napoleão Bonaparte resistiam. Logo, veio a carga inimiga. Napoleão foi até a janela para jogar uma granada, mas levou um tiro de bacamarte no ventre. Desabou de costas, com estrépito. Tentou recompor-se, mas suas tripas saíram da barriga, como lombrigas pretas e disformes. Suas últimas palavras foram: "Assim morre um marechal da França!". De borco, o sangue fazia um triste desenho negro ao redor do cadáver.

Sozinho, agora era ele contra 40 mil.


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Do céu baixo e pesado de plúmbeas nuvens escuras de chumbo como um Zepelim, continuava a cair uma garoa fina e gelada.

Um vulto apareceu. O Duque de Wellington reconheceu o marechal de campo prussiano.

— Vai uma cachacinha, sr. Blücher?

— Claro, tchê. Estou congelando aqui.

Cada um deu um talagaço. Depois, o Duque pôs o binóculos, bombeou, suspirou um hausto de bafo triunfal de cachaça de Santo Antônio e disse:

— Vou atacar.

Quando foi escancarar a entrada do quartel, deparou-se com um um soldado encapotado mas com uma metralhadora na mão:

— Sr, o sargento Von Bingen está gravemente ferido sr.

— Quem foi? - quis saber Blücher.

— O tal do Rubião.

— Ele se entrega - murmurou o duque, entredentes. - Temos que pegá-lo vivo.

— Mas ele atirou na maldade, sr. Todos se entregaram, por que esse idiota fez isso?

Entraram no quartel. O pátio parecia o de um claustro, amplo. Estava vazio, chegaram com o séquito até a sala da guarda.

— O major maluco está lá dentro — revelou um soldado. — O desgraçado estava na ronda na hora da confusão.

O duque disse aos demais que iria assumir o controle da situação. Foi até a porta:

— Major Rubião.

— Quem é? - disse a voz lá do fundo.

— Sou eu, o Duque de Wellington. A oficialidade está toda presa. Te entrega que a tua vida estará garantida.

— Nem duque e nem dique vai me prender - devolveu Rubião, com a voz transfigurada pela cólera.

— Não quero derramar mais sangue.

— O sangue é meu e eu faço o que eu quiser — riu forçadamente o major.

Exasperado, o Duque mordia o cigarro apagado no canto da boca:

— Saia daí, porra, saia, seu vagabundo! Por que você não ouviu os seus pais e não passou naquele concurso do INSS?

— Não me provoque, doutor, não me provoque.

— Saia!

A porta abre. a luz de uma lamparina caiu em cheio em sua cabeça sem o quepe. Murilo tinha uma Mauser C-96 na mão direita.

— Largue essa arma, major! - gritou Wellington.

Em resposta, o major abriu fogo. Como não sabia atirar, o tiro pegou de raspão no ombro do Duque.

— Podem vir, seus chimangos de merda! Não tenho medo de vocês! — E, rindo: — Venham! Eu não tenho nada a perder!

Os outros oficiais, que estavam no pátio, vieram em direção ao duque com pistolas em punho. Wellington, que conseguira recompor-se a tempo, fitava o insolente major. Apontou o revólver e fez fogo. Largando a Mauser, Rubião levou as mãos ao peito, no lugar onde a fazenda do dólmã começava a ficar ensopada de sangue.

— Chimangada de merda...

Apoiou-se na parede às suas costas, com o olhar distante, porém numa expressão quase orgásmica de uma Santa Teresa de Bernini. Os sargentos, que irromperam na cena, continuaram a atirar no major que, por algum tempo, ficou grudado na parede dada a violência dos tiros. Uma bala o pegou na barriga, outra no braço esquerdo, mais um tiro no braço esquerdo, dois no direito, um na perna direita, outro no ombro esquerdo, as demais no peito. Foi escorregando, escorregando, à medida em que o sangue chegava ao chão, até Rubião estuporar-se finalmente como que sentado. No percurso da sua queda, a parede estava pintada com um caminho de vermelho.

Houve um momento em que Rubião pareceu recobrar as forças. Abriu bem os olhos e disse audivelmente:

— Gabriela.

Quando os médicos chegaram ele já estava morto.








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