Tuesday, November 22, 2016

O Fim de Big Boy


Newton Duarte, o Big Boy


Morto em 77, Big Boy foi um radialista que representou a transição da linguagem 'séria' da locução comercial para o estilo mais informal e voltado para o público jovem. Se na história do rádio, ele foi um personagem de transição, para o FM ele foi o nosso Dante, o último radialista antigo e o primeiro moderno da Frequência Modulada.

Hoje é sintomaticamente tempo de relembrar esse Dante do rádio. Ele era um locutor de uma fase de transição porque não existia no Brasil, pelo menos no rádio comercial, alguém que fosse a personificação dessa cultura jovem que surgiu durante os anos 70. Época em que, paradoxalmente, o rock ainda não era o prato principal do banquete das grandes gravadoras como seria, na década seguinte. Como radialista, ele foi o primeiro homem moderno porque personificou aquele que soube valorizar-se como emissor.

Naqueles tempos pré-internet, quando toda a virtude estava no "controle da emissor", a informação era o que diferenciava um profissonal de outro. Era a época em que um profissional de mídia, no caso, de rádio, se fazia pelas suas fontes, fossem gravadoras, artistas, assinatura de publicações internacionais, até ter contato com algum comissário de bordo da Varig que pudesse importar qualquer material quente que estivesse saindo da Europa ou Estados Unidos. Qualquer tipo de contato era importante, e deter essse controle — além de muito engenho e arte — perante uma certa audiência é o que notabilizava o profissional.

Ao mesmo tempo, também havia essa cultura inerente ao profissional de rádio, no caso, o disk-jockey — modalidade de locutor que surgiu nos Estados Unidos a partir de gente da antiga, como Allan Freed, de quem o Big Boy era naturalmente influenciado por ele. Pois esse papel do DJ e essa cultura jovem mediada por ele, além de todo o capital cultural que se transubstancia ao longo do tempo, numa época em que a informação era ainda limitada aos meios de comunicação tradicionais, cresceu consideravelmente através do tempo. eles eram aqueles que sugeriam discos, artistas, liam de cartas até a lista de sucessos da Billboard, enfim, como se usava na gíria do turfe, davam as 'barbadas' para o ouvinte. Não ouvi-lo significava ficar por fora dos acontecimentos.

Porém, com o tempo e com o advento da Internet, olhando em retrospectiva, vemos que essa cultura do DJ teve diacronicamente o seu início com o começo do rock nos Estados Unidos ainda no AM e chegou ao fim nos estertores do FM musical, no final da década passada. O surgimento do FM ainda era um período de transição — ainda mais no Brasil onde esse formato foi experimental até o fim dos anos 70.

Por ironia do destino, Big Boy, nascido Newton Duarte, que foi o locutor que padronizou o formato do DJ moderno no FM, na verdade, foi um elemento de transição: como Moisés, não chegou à Terra Prometida. No momento em que o mercado iria mudar, ele subitamente morreu. Contudo, uma era não morreu com ele: pelo contrário, Newton não viveu para ser testemunha da mudança do FM experimental para o comercial (a Eldorado mudaria exatamente um ano depois de sua morte, em 78). A grande virada seria já nos 80, época do já longínquo e vetusto BRock, gênero que mudou o perfil comercial das gravadoras — que, até o primeiro compacto da Blitz, não enxergavam qualquer viabilidade para qualquer manifestação de rock nacional. De certa forma, o Big-Bang do FM foi o BRock.

Big Boy infelizmente não pôde viver aquilo que, de certa forma, ele criou. Tudo o que ele aplicou ainda na Mundial nos tempos do AM seria a base do rádio em Freqüência Modulada e a sua progressiva segmentação a partir dos anos 80: parte das emissoras iria adotar uma postura agressivamente comercial enquanto outras optaram por uma programação mais alternativa. E foi um mercado que, diferentemente de hoje, podia, por conta disso, absorver um grande número de profissionais.

Pelo menos uma coisa elas tinham em comum: como ainda vivia-se num período em que a grana rolava no meio rádio ou, pelo menos, enquanto essa verba entrava (seja lá de qual forma) lá, esse modelo se sustentou, e por um longo tempo. Aliás, foi justamente o tempo em que os DJ ainda detinham esse perfil de "oráculo". Havia o capital informacional do 'emissor' e a cultura típica da rádio, na relação entre a emissora e seus respectivos ouvintes.

Claro que podemos dizer que isso ainda existe — e certamente sempre irá existir. Mas esse perfil oracular do DJ, e essa importância do locutor na cultura do rádio, antes da Internet, era considerável se compararmos com hoje: a música não "passa" mais pelo rádio ao mesmo tempo em que aquele "dinheiro" também não passa mais como passava. Foi como uma Serra Pelada, foi algo muito grande enquanto durou, mas o formato foi exaurido pela Internet.

Sem tristezas nem saudades, as gravadoras hoje podem prescindir doS DJS, os artistas, de certa forma, não precisam gravitar em torno de programas de rádio — se compararmos que estar fora do esquema nos anos 70/80 era quase como pregar no deserto ou estar proscrito. Se a indústria fatura hoje com o streaming e todo a informação rola na Internet, o rádio, mesmo tempo um alcance gigantesco, ainda amais no interior do Brasil, acaba tornando-se redundante.

A consequência disso é a próprio abastardamento da figura do disk-jockey no FM. Nos últimos anos, mesmo com o natural protesto de muitos ouvintes, o espaço e a importância dessas rádios jovens (ou rádio rock, muito embora o rótulo rock atualmente seja tão passé quanto o próprio rock) vem diminuindo. As que não acabam tornam-se enlatadas via satélite, estão virando repetidoras de hard-news. Mesmo grandes figurões do FM de outros tempos hoje são progressivamente alijados do microfone, E têm como alternativa apenas o formato web — obrigando-se a viverem por conta e compartilhando o espaço virtual com todo mundo.

Ao mesmo tempo, pelo fato de que a Informação emana da própria Internet, ele se vê diminuído; a sua expertise não mais lhe dá qualquer garantia de importância. Mesmo que exista vida na rádio web, o antigo DJ não possui nem 10% da grandeza dos tempos do vinil.

Enfim, nunca imaginou-se que pudéssemos chegar a uma época em que o espécimen do DJ clássico chegasse a um franco e definitivo processo de extinção. Que fique claro: o 'apresentador de programas', como salientamos acima, não deixará de existir.

Mas ele não é o DJ. em alguns casos, o 'apresentador' está diante do microfone por outros motivos — até porque, em alguns casos, ele é aquele que 'puxa' anunciantes para a emissora ou o seu respectivo programa. logo, não é bem a expertise aquilo que o dignifica. A questão é que ter ou não a devida expertise, e num contexto adverso, onde esse capital informacional — a carta na manga que o notabilizava e que o valorizava — está disponível para todos, não significa um elemento diferencial para franquear seu devido espaço no éter. Analisando friamente, uma rádio hoje não faria a mínima questão de manter um espécime desse tipo em seu cast. A não ser que ele seja o dono da dita cuja. do contrário, é defenestrado sob a alegação de 'falta de verbas'. Enfim, o seu destino é o ostracismo amplo e irrestrito.

Philip Roth, atavismo jurássico do tempo que se fazia literatura no mundo, disse que a cultura literária vai morrer daqui a duas décadas — da mesma forma, vaticina que será o tempo em que o livro chegará ao fim (há quem diga que o livro já acabou há 20 anos). Da mesma forma, se pensarmos em rádio, em rupturas provocadas pela cibercultura, tanto o escritor quanto o disc-jockeys são resquícios de um tempo em que esse movimento de acesso à informação era a forma principal de acesso a uma "cultura" e a uma visão de mundo "diferenciada". Nós podemos, mesmo sob protesto — como o fáustico Andrew Keen (*), tecer uma catilinária (e claro que esse artigo tem desavergonhada influência do Culto do Amador) contra esse engodo provocado pela Internet e contra esse "ultraje contra a cultura e inteligência humanas", etc. Mas a verdade é que chegamos ao fim de um ciclo e que, hoje sim, Big Boy está definitivamente morto e enterrado.


(*) O Culto do Amador, Andrew Keen, Zahar, 2009.


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