Wednesday, October 19, 2016

A Comédia Humana de Dylan


O compositor

Bob Dylan ganhou o Nobel de Literatura e, desde quinta, eu tenho ouvido e lido muita coisa a respeito contra e a favor. Porém, acho que nem quem critica quanto quem corrobora a opinião da Academia Sueca deve ter entendido o motivo pelo qual o cantor-compositor americano foi escolhido como o premiado deste ano.

A explicação da Academia: Dylan deu “novas expressões poéticas dentro da grande tradição da canção americana”. Mesmo a despeito dessa afirmativa, muitos têm dito que isso "abriu precedentes", etc. Outros vão mais além: acham que, daqui a pouco, qualquer youtuber ou blogueiro pode acabar concorrendo para o Nobel.

É claro que há muito exagero nessa polêmica. Até porque a maioria desses críticos não conhece Dylan. Além do mais, primeiro: a Academia estava para conceder o prêmio há quase duas décadas; segundo: a premiação se dá não por um disco, mas pelo conjunto da obra.

Creio que a única forma de entender os porquês da escolha residem aí. O agraciado não desejou escrever uma discografia que abarcasse toda a tradição da música folclórica americana. isso foi uma coisa que aconteceu. Ele não foi como um Balzac, que decidiu, a altos brados, dizer que iria escrever a crônica da burguesia francesa na sua Comédia Humana.

Dylan era uma jovem cria do renascimento do folk porém num ambiente boêmio e urbano, em Nova Iorque. Ao mesmo tempo, acabou se relacionando com uma geração que lutava pelos Direitos Civis e que tinha em Newport, uma meca esquerdista, a sua pátria. Como todos aqueles jovens, Bob ouviu de cabo a rabo o The Anthology of American Folk Music, caixa concebida pelo musicólogo Harry Smith. A partir de tudo o que ele ouviu quando jovem, Dylan começou a criar a sua obra.

Porém, ao invés de simplesmente interpretar aquelas músicas, como muitos fizeram (como Joan Baez), ele resolveu usar aquele material como uma espécie de ponto de partida para uma obra singular.

É como na história da arte: existem centenas de pinturas da madona, e cada artista, ao longo do tempo, recriou, através de engenho arte e de sua ideologia, a sua nova versão do mesmo tema. Nesse sentido, Dylan tornou-se um esteta daquele espólio cultural; além de um cantor-compositor, ele repassou todas aquelas músicas numa perspectiva autoral e, ainda assim, e mais, dialogando com a música do seu tempo — além do folk, o blues, o rock, originando daí a sua respectiva natural fusão.

Sendo mais específico: boa parte da discografia de Bob Dylan é uma paráfrase de uma tradição e de músicas que já existiam. Contudo, ele foi o primeiro a incorporar essa música e dar-lhe cara e nome.

Dylan é original em parte. Se o é, o é sendo um compilador esperto e inteligente. Porém, quando transforma esses motivos em material autoral, ele mistura visões artísticas, citações literárias, paráfrases, incidentes linguísticos, mistura Chuck Berry com Allen Ginsberg (Subterranean Homesick Blues), reinventa músicas tradicionais (Maggie's farm, Blowin' in the Wind, Ballad of Hollis Brown). Elmore James (Pledging my Time). Como Bach nas suas cantatas, ele recriou uma música preexistente mas, de forma obstinada, ao invés de copiar, resolveu colocar em tudo o seu toque pessoal.

Esse processo criativo Dylan usou em praticamente todos os seus discos, em 50 anos de carreira, e essa intertextualidade em sua paleta é algo que ainda está em processo de ser decifrado. O próprio Garth Hudson, quando ensaiava com Bob em Woodstock, não sabia bem ao certo o que era cover e o que era música dele.

Poderia fazer uma comparação com Sinatra. Este, porém, não poderia ganhar um Nobel, é claro, já que era, antes de tudo, um intérprete. Mas Frank foi o artista que pegou todas as grandes canções do Great American Songbook e tornou-se o seu cantor seminal. Sinatra colocou as canções do Tim Pan Alley no topo do mundo*. Da mesma forma, porém sendo menos popular e mais autoral, Dylan pegou a música americana folclórica e atualizou-a, dando-lhe a devida importância e, mesmo não sendo um grande cantor, deu-lhes uma voz. A grande música americana tem essa dívida respectivamente com Sinatra e com Dylan: Sinatra por ser o intérprete do grande sonho americano; Dylan por ser a voz telúrica, maternal e mercurial da música norte-americana do século XX.

Isso não é pouca coisa. e talvez seja muito para apenas um Nobel de Literatura.




* E curioso e ligeiramente sintomático que, nos últimos discos, Dylan tenha optado justamente por virar intérprete de canções do Tim Pan Alley, uma geração que, de certa forma, ele ajudou a liquidar...



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