Monday, December 26, 2016

Quarto Distrito, Dias e Noites


A Roosevelt nos tempos de Av. Eduardo

Andando de passe livre por uma Porto Alegre quase deserta e de lojas fechadas em busca de algum bar, desci no fim do T2 e fiz uma coisa que não fazia há tempos: percorrer toda a Avenida Presidente Franklin Roosevelt, no 4º Distrito.

Desci da João Inácio até onde ela desemboca numa pororoca de carros e ônibus no cruzamento da Farrapos, Almirante Tamandaré e Visconde do Rio Branco. Na esquina da Tamandaré, avistei o Bar Garota aberto.

Depois da segunda cerveja, perguntei ao dono do estabelecimento se ele se lembrava do bairro nos anos 70 ou 80. Ele respondeu que toca o boteco desde o começo dos anos 90.

Então eu contei que eu havia descido a Roosevelt de cabo a rabo e concluí que o Garota era o único comércio antigo que ainda resistia no São Geraldo, que é uma região da capital que, justamente a partir dali, passou a sofrer uma decadência terrível.


Na verdade, eu nasci lá. Não vivi muito tempo no bairro. Morei depois em outros lugares, mas o São Geraldo sempre será um lugar meio mitológico. Afinal, eu passei meu primeiro ano de vida ali. Depois, mais tarde, sempre retornava no Natal. No Gobbo — aquele edifício gigantesco na frente do posto Shell, além de nós, meus avós maternos habitavam o segundo andar (nós no quinto).

Claro que não tenho recordações daquele começo profundo: mais daqueles serões natalinos, quando ainda era possível juntar toda a família da parte de minha mãe. Hoje parece engraçado imaginar como aquele apartamento, apesar de gigantesco, conseguia comportar tanta gente.

Lembro do Presépio originalíssimo da minha avó. Ficava num balcão. Meu avô, que sempre fora habilidoso com as artes de marcenaria, havia montado ele. A reunião de Natal fazia parte do calendário da família. Nós éramos os "de fora". Vínhamos ou do rio ou de Curitiba especialmente para o ágape — e sempre emendávamos o Ano Novo junto.

Nessa pequena nesga de tempo, me era possível voltar á Porto Alegre. Porém, como não tinha idade para andar livre pela cidade, meus passeios eram nas redondezas.

Só que, naquele tempo, a Roosevelt — ou antiga Av. Eduardo, era um imenso bulevar. Tanto que a rua possuía um comércio gigantesco, era um shopping a céu aberto. A própria construção de prédios como o Gobbo, o Satélite (da Varig, na esquina da São Pedro com Farrapos) ou o King Eduardo estava no contexto de um bairro em ascensão, com lojas, cinema, clubes e associações. O Gondeleiros tinha um dos melhores carnavais de Porto Alegre.

O comércio de rua do São Geraldo naturalmente chamava gente de todas as partes da Zona Norte. Difícil comparar com algo hoje. Algo como é a Azenha, porém sem aquela populacha e trânsito frêmito de ônibus e pedestres. A Roosvelt era mais calma, até porque era uma via paralela à Farrapos, que puxava todo o tráfego norte-centro.

Lembro que a gente fazia todas as compras de natal ali. Descia do Gobbo pela penumbra porta de serviço — minha avó me levando feericamente pela rua, não sem antes parar para conversar com tudo o que era dona de boutique pelo caminho. Logo, do lado do prédio, tinha a Boutique das Noivas. Mais adiante, antes da Igreja Batista, a oficina Coruja, no fim da quadra, a gráfica Belgraf. Na Quintino Bandeira havia um restaurante que servia rã (esqueci o nome) e que também fechou faz tempo.

O comércio começava ali, na altura da lancheria Sagres; a lotérica e tabacaria, depois vinha a Livraria do Globo, Multisport, Dália (outra parada da minha avó para papear), Casas Pernambucanas, o consultório do dr. Raskin e mais uma loja que esqueci. Quase no Gondeleiros, tinha a Joilie Modas (outra parada da vó) e, ao lado, uma lanchonete (o Milka) que, até este ano, havia virado num pé sujo (onde eu primeiramente pretendia gelar a garganta mas descobri, pálido de espanto, que era um estabelecimento a menos na avenida).

Verão em Porto Alegre era um inferno. Mas, naquele tempo, a gente podia aproveitar a Roosevelt, que tinha uma belíssima iluminação noturna e uma vida idem lá para os lados do Concórdia. Sempre tinha um bar ou lanchonete onde dava para curtir até a meia-noite. época de Natal era bonito de ver tanta gente na rua: muita gente, mas com todo o tempo do mundo.

Passando a Moura Azevedo, tinha a PanVel e a Lobrás à direita de quem vai para a Sertório. A Lobrás era a minha loja preferida (euqe tinha umas sacolinhas bonitinhas quando a gente comprava balas), e principalmente porque era a que tinha a melhor seção de brinquedos do São Geraldo. Adiante, havia à esquerda a Renner (três andares, onde hoje é a Coelho Comércio de Móveis), a Soberana dos Móveis e a Imcosul. Hoje tem o Rissul na São Pedro. Naqueles tempos, o único supermercado da região era o Real, que ficava na esquina da Pernambuco. Uma pernada.

O restante do comércio se espraiava pela São Pedro, entre a Roosevelt e a Farrapos. O Marinha Magazine, do outro lado da rua, do lado de onde fica hoje a Caixa. Defronte, no 2502 da Farrapos (onde meu avô morava antes do Gobbo, depois de sair do Centro, há priscas eras), a J.H Santos, onde todo mundo ia lá aproveitar as "barbadinhas". Foi dali que eu ganhei meu Atari, no Natal de 85, sempre fingindo acreditar que eram presentes do Papai Noel.

Falando em presentes, antes da distribuição, minha avó (que, como matriarca, era a responsável pelo pregão dos presentes depois da reza inicial e agradecimentos pelo ano que passou etc etc.) pedia para que a gente não estragasse os papéis-presente. ela tinha um compartimento no armário do quarto com toneladas de papel de presente. Muitas vezes, ela comprava alguma lembrancinha para alguém em algum bazar, mas depois embrulhava o regalo com papel da Renner — aquele de Natal, que era dourado com vermelho, só para fingir que era um presente chique. eu me divertia vendo ela fazer a trampa (e depois pegava os papéis tudo de novo).

Aqueles serões de Natal eram divertidos. Até o ponto em que as famílias das famílias viravam famílias. E sempre o patriarca morria, a matriarca era o fator de coesão do grupo. Até que enfim ela partia, e todo o núcleo se desfez. Isso acontece com todas, não iria deixar de acontecer conosco.

O curioso foi que, junto com o progressivo desmanche da família Esperança, ocorreu o declínio da Roosevelt. No começo dos anos 80, surgiu o Iguatemi, seguindo uma tendência de fim de comercio de bairro pela cidade em favor de shoppings, a partir do primeiro deles, o Centro Comercial João Pessoa. Algumas lojas fecharam suas filiais no São Geraldo, como as Pernambucanas. Outras simplesmente fecharam suas portas — Imcosul, Soberana dos Móveis, Marinha Magazine e a J.H.

O comércio que ficou é pequeno, literalmente de rés do chão. E a Roosevelt congelou no tempo: o bairro está lá mas, como aconteceu comigo ao descer a avenida dos seus estertores até a Farrapos, naquela quente tarde de 25 de dezembro, estava eu na verdade em busca de outra Roosevelt, uma Roosevelt que não existe mais.






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