Wednesday, February 26, 2020

O Forte e a Marchinha

A marcha ao cadafalso: os 18 do Forte

Aproveitando esse clima de Carnaval, vou contar uma historinha.



Depois de tomar posse, em 1923, o presidente Arthur Bernardes, entre muitas outras atitudes discricionárias – entre elas baixar uma lei que previa censura aos jornais e enquadramento do movimento operário no Brasil,impondo, inclusive, pena de deportação aos anarquistas espanhóis e italianos e um governo sob estado de sítio (com a anuência do Águia de Haia, Ruy Barbosa), mandar mater e prender centenas de pessos, ele proibiu a execução pública da divertida marchinha “Ai seu Mé”, de autoria de Freire Júnior e que, por sinal, não aparece com seu nome no selo do disco. Todos cantavam a música. As crianças adoravam a sabiam de cor. 

A marchinha carnavalesca, grande sucesso do Carnaval de 1922, junto com “Eu quero é beliscá” tem uma história fantástica por trás. Pra começar, hoje não se ouvem mais marchinhas. Mas era muito comum que elas, que começaram a ganhar vulto a partir do famoso “Pelo Telefone”, de 1917 e teriam seu auge nos anos 30 e 40, com temas escritos por Lamartine Babo e Braguinha, entre outros, fizessem muita crítica de costumes e, principalmente, sátira política.

Esse é o caso de “Ai, seu Mé. Lançada no começo de 1922, virou sucesso porque, com uma letra tão ostensiva quanto sutil, fazia crítica direta a Arthur Bernardes, então candidato do governo ao Catete. Bernardes, meses antes, mais precisamente em outubro do ano anterior, havia se envolvido numa grande patuscada, quando cartas falsas atribuídas à ele, que foram publicadas pelo Correio da Manhã.

As cartas atacavam diretamente o marechal Hermes da Fonseca. Na época, ele era um dos candidatos preferidos pelos oficiais das Forças Armadas para candidato de oposição, pela chapa oposicionista ‘Reação Republicana’. Como presidente do Clube Militar, ele promovia banquetes no local a fim de angariar fundos para a campanha.

As cartas davam a entender que Arthur Bernardes estava irritado com a atitude de Hermes, e o teria chamado de “sargentão sem compostura” à Epitácio Pessoa,  numa das cartas, depois descobertas que eram totalmente apócrifas.  Ao mesmo tempo, pedia que o presidente fizesse alguma coisa “àquela canalha”.

O grande problema é que, se as relações entre Epitácio e as Forças Armadas já estavam estremecidas. Afinal, numa atitude que não se via desde o Segundo Reinado, Pessoa nomeou civis para as pastas militares – Afonso Pena na Marinha e Pandiá Calógeras, que nunca tinha participado nem de um tiro ao alvo em mafuá, no então chamado Ministério da Guerra. Para os militares, isso era um acinte, um absurdo, um ultraje.

Agora, de forma intempestiva, o seu candidato chamava Hermes, um luminar do Exército, amado por todos os jovens tenentes como um símbolo de resistência antes aquele estado das coisas, um governo que traiu os ideais da República em favor do clientelismo e da corrupção e violência o chamava, da maneira mais surrealista possível, de “sargentão sem compostura”.

Até que descobrissem a autoria das cartas falsas, o Correio fez ampla cobertura do corolário dos acontecimentos, e o resto da imprensa carioca, inclusive as revistas, como o Malho, publicavam charges a respeito do assunto. E, como se pode imaginar, a última coisa que a imprensa queria saber era se elas eram falsas ou não.  Afinal, porcausa do escândalo, muitos jornais vendiam exemplares aos milheiros. O fato ocorreu em outubro de 1921. Até o ano seguinte, muita água correu e não foi para apagar o rastilho de pólvora.

Então, no calor dos acontecimentos, Freire Júnior escreveu a cálida e brincalhona marchinha, que deu para Bahiano, então um dos mais famosos cantores do país, dos tempos da aurora da fonografia no Brasil. A letra é esta:

Zé-povo quer a goiabada campista
Rolinha, desista, abaixe essa crista
Embora se faça uma bernarda a cacete
Não vais ao Catete!
Não vais ao Catete!

Ai, seu Mé!
Ai Mé Mé!

Lá no Palácio das Águias, olé
Não hás de pôr o pé
O queijo de Minas está bichado, seu Zé
Não sei porque é, não sei porque é
Prefira bastante apimentado, Iaiá
O bom vatapá, o bom vatapá

O primeiro verso é referência a Nilo Peçanha, o candidato da ‘Reação...’, que era natural de Campos, Rio de Janeiro, a terra da “Goiabada Campista”. O embora se faça uma bernarda a cacete, não vais ao Catete”. A rima, genial, combina de forma genial com a expressão “bernarda” (motim) com o duplo sentido de falar do sobrenome do candidato governista. Depois, fala que o “queijo de Minas está bichado”, outra referência a Bernardes, que era mineiro.  

A relação com vatapá pode fazer referência a um tipo de comida muito popular no Rio, ou seja,prefira vatapá ao queijo mineiro. Ou seja, a marchinha é eivada de referências à Bernardes, fechando com o refrão, “Seu Mé”, seu apelido, porque ele era considerado “cara de cabrito”. Lá no Palácio das Águias, o outro nome para o Palácio do Catete.

A canção, junto com o episódio das cartas falsas serviram para causar um grande estrago na candidatura governista, vencedora de largada, num país de eleições "de cabresto", abertos, sem partidos populares e sem comícios. E o sucesso da marchinha mostrou que o “Zé  povo” (pelo menos quem não podia votar, já que as eleições eram patrioticamente viciadas, como se sabe). 

De qualquer forma, as duas coisas galvanizaram um ódio enorme (e popular) à Arthur Bernardes – tanto que, quando ele foi em campanha ao Rio, foi vaiado o tempo todo e em toda a parte. Até quem não gostava inticava com Seu Mé. E o pobre diabo naturalmente era obrigado “Ai seu Mé” até durante os sonhos. Mesmo que muitos não votassem, sua imagem ficou bastante prejudicada, e esse descontentamento, com a música, ganhou as ruas durante o tríduo momesco e caiu na boca do povo.

As cartas e “Ai seu Mé” e a cisão entre os militares e o Catete levaram ao famoso e dramático levante de 1922. Marcado para o dia 5 de julho, ele foi desenvolvido secretamente, por boa parte da oficialidade da Escola do Realengo, então considerada mais politizada do que a da Praia Vermelha. Ás vésperas do levante, Siqueira Campos, o gatilho mais rápido do Forte de Copacabana, disse a Hermes que, em seu nome, iria haver uma revolta, envolvendo o Forte, a Vila Militar e a escola do Realengo.

Entre nervoso e irritado, Hermes não deixou Campos falar. Respondeu que não queria o levante de forma alguma. Depois, percebeu que não podia fazer nada. Mas o ex-presidente tinha uma relação íntima com o Forte de Copacabana: ele foi seu idealizador e quem colocou uma bela e moderna artilharia lá. Além do mais, seu filho, Euclides, estava lotado lá.

O filme O país dos Tenentes romanceou as cenas dos levantes da Vila e do Forte. Quando os tenentes prenderam seus superiores e deflagram a revolta, começam a cantarem coro: “ai, seu Mé, ai, seu Mé, lá no Palácio das Águias, olé, não hás de pôr o pé”. Não sei se isso aconteceu de fato (Hélio Silva, que escreveu o famoso 1922: sangue na areia de Copacabana, e narra o episódio com riqueza de detalhes, não menciona o fato), mas pode ter ocorrido. Isso é a mais pura verossimilhança.

O resto todos sabem: os levantes da Vila e em Realengo foram desmanchados a tempo. Ficou o Forte de Copacabana lá, impávido e sozinho, reinando diante do mar,  totalmente armado e cheio de minas na parte superior,  prontas para levar tudo pelos ares. Na revolta solitária, os tenentes lá lotados, (entre eles Mário Carpenter, Eduardo Gomes e Siqueira Campos), bombardearam anunciando a revolta; chegaram a bombardear o navio São Paulo que, vigiando a situação distraidamente, ficou na alça de mira do canhão de Siqueira, que também chegou a atingir vários alvos no centro do Rio, matando muita gente.

Sitiados, com várias peças de artilharia danificadas, eles resolveram sair em marcha e enfrentar mais de 3 mil legalistas, que os esperavam ao longo da praia. De todo o grupo de oficiais, restaram uns trinta. O restante resolveu enfrentar a caterva de Epitácio e Calógeras, na avenida Atlântica.

De peito aberto, repartiram uma bandeira do Brasil em pedaços, e cada um carregou um com eles. A que estava reservado a Euclides, que foi preso ao sair para tentar uma quixotesca rendição, foi dada a um civil que era amigo de Campos e de outros oficiais. Simbolicamente, ele foi o civil que representou sem querer o “Zé povo” da marcinha.  Otávio Côrrea, o ilustre civil, era filho de estancieros da fronteira do Rio Grande do Sul.

Depois de várias pândegas na Europa, ele voltou à terra natal desencantado em retornar à Jaguarão e à lide campeira, e sem poder permanecer na França, devido a um dueloem que se meteu, perdendo o passaporte, a contragosto ele voltou ao Rio. E resolveu fazer uma gauchada com os oficiais do Forte. Ele é o homem de chapéu que aparece nas fotos históricas de Zenóbio da Costa depois publica das em O Malho.

Assim como Canudos, na famosa frase de Euclides da Cunha, o Forte não se rendeu. Desceu a Atlântica e enfrentou os legalistas. Foram alvejados um a um, como patinhos num triste e heroico tiro ao alvo de mafuá. Muitos foram morrendo pelo caminho, pela areia, onde se escondiam para atirar como livre-atiradores. No fim, os 18 foram vencidos, poucos sobreviveram. Siqueira Campos, mesmo levando um balaço no ventre, sobreviveu. O civil, Otávio, ferido gravemente, morreu horas depois, no hospital. Eduardo Gomes também teve ferimentos graves.  

No fim das contas, “Seu Mé” pôs os pés no Catete, impôs ferrenha censura á imprensa e,  por pura implicância e desfeita, acabou com a divertida cantoria da marchinha de Freire Júnior.




Referências

Afonso Licks. Octávio, o civil dos 18 de Copacabana. Quattro Projetos, 2016.
Hélio Silva. 1922: sangue na areia de Copacabana, Civilização Brasileira, 1964.
Marly Rodrigues. O Brasil na década de 20. Ática, 1997.
Ruy Castro. Metrópole à beira-mar. Companhia das Letras, 2019.


Tuesday, February 25, 2020

Com os anjos do céu


Judee Sill

Lembro de ter ouvido Judee Sill numa época em que nós (eu) caçávamos álbuns em mp3 na internet, quando houve um surto de vazamento de discos que, até então, estavam inacessíveis a todos nós. Porém, mais recentemente, depois de ler um artigo recente sobre ela no obituário do New York Times, assinado pelo jornalista Minju Pak. Achei que ela fosse uma cantora no estilo da Laura Nyro ou como suas contemporâneas, Joni Mitchell. Inclusive, foi através daquela turma de Laurel Canyon ligada ao Crosby, Stills, Nash que ela chegou ao disco. 

Ela morreu de overdose de heroína numa época, os anos 970, onde lembro de ler um artigo do Village Voice (desenterrado no Twitter do periódico recentemente), que fala da quantidade de gente que exagerou no uso de drogas numa época de hedonismo e de excessos, como Danny Whiten, Tim Buckley, e outros. Soma-se ao fato de que ela representa o estereótipo do artista que não foi reconhecido em seu tempo, como Van Gogh, talvez o representante magno disso.

E some-se mais ainda a isso o fato de que ela veio de um histórico de perda do pai, de violência familiar, de uso de drogas, de internações e de umaprisão. Quando ela saiu, Judee, mesmo admitindo que seria uma junkie,descobriu na música uma oportunidade do que ela disse que era poder fazer algo para si, e não contra.

Ela também aprendeu a tocar piano sozinha e, depois, tornou-se organista de uma igreja perto de onde vivia. Esse aprendizado certamente foi crucial para o desenvolvimento de sua música. Se formos escutar canções como “Heart Food” ou “The Kiss”, seu estilo está muito mais próximo de uma criação camerística. Nesta última,  é possível vislumbrar uma forte influência das árias de Bach, um compositor que ela estudou.

Quando eu resolvi escutar a sério, eu fiquei deslumbrado com a qualidade de sua produção, que parece está mais chegada à música de um Brian Wilson ou de Nick Drake.  O primeiro, por causa de suas harmonizações; o segundo,por conta de sua música difícil e que a frustrou, de certa forma, porque acho que Sill deveria ter tentado uma carreira em música erudita, onde certamente seria “entendida”, ao invés de se lançar como cantora folk, o que ela, com efeito, não era. Ou era, mas era muito mais do que isso. 

Porém, estava num mundo de cantores desse estilo, primeiro como compositora para os Turtles e, depois, excursionando com Nash e divulgando seu trabalho, cujo ponta pé foi uma demo que ele enviou à recém fundada Geffen Records, que estava à procura de folk singers. .

A história dela  lembra bastante a de Drake, com a diferença de que ele realmente era avesso ao show biz e não conseguia se adaptar à rotina de shows,e um dia, vendo que estava longe do que demandava a indústria musical, recolhei-se à sua casa e morreu (ou suicidou-se).

Suas canções, como “Crayon Angels”, "The Donor",com um tema circular que ela trabalha ao longo de oito minutos, parece uma oração,  ou mesmo “The Kiss” ou “Abracadabra pareciam ser endereçadas a algum tipo de profunda espiritualidade. “The Kiss”, a primeira que eu ouvi, parece escrita não para um cara, mas para Deus. Ela construiu um mundo minado por um sentimento transcendente provavelmente como uma evasão de vida triste e vazia. E suas letras falam a partir de um outro mundo, como a canção do mundo dos anos, muito além da terra e de um amor puro e espiritual- e muito além do folk com a qual ela estava cifrada, com cantoras como Carole King ou Joni Mitchell, que eram muito mais pop.

Judee sill nasceu em Oakland, California, em outubro de 1944 e faleceu em novembro de 1979, com apenas 35 anos. Sobre seu caminho para a música, ela disse à Rolling Stone: “Pude ver que teria que escrever canções que eram sobre essas coisas [sobre sua vida particular]. Cheguei a algumas realizações fantásticas tentando fazer  s leis da natureza trabalharem para mim ao invés de contra. Senti que era meu dever comigo mesmo entrar nisso, e foi o que eu fiz”. Quando ela foi achada morta, ela tinha um manuscrito que muitos acharam que fosse uma nota de suicídio. 

Mas mais provavelmente, fosse mais uma de suas criações, que hoje foram como redescobertas. Mas assim como muitos de sua geração, como Buckley, Drake, Tim Hardin, ela vivia uma vida arriscada e com um histórico familiar que, de certa forma, explica toda uma vida de abandono, amores frustrados e excessos. Quem sabe o que é isso pode imaginar o quanto sua vida foi sofrida e seu apelo à música e a arte foi uma experiência engrandecedora e libertadora.

Também lembro que, na listagem dos 1001 albuns de Robert Dimery, inexplicavelmente seu livro, que redescobriu tantos elepês que tiveram o mesmo destino do trabalho de Judee, ou seja, passaram batido em sua época, contudo que foram desenterradas qual uma arqueologia sonora. Com certeza que seu disco, Heart Food, de 1973, deve estar entre os discos para se ouvir com os anjos do céu.  

Tupi or not tupi


O big bang do sertanejo



Tava relendo o livro O que é música sertaneja? do Waldenyr Caldas e lembro desses livros do Ramos Tinhorão e do Luiz  Tatit que praticamente tem uma resistência tanto em documentar a história desse gênero quanto de colocá-lo ao lado de outras manifestações.

Tinhorão tem preconceito com a Bossa Nova. Tatit parece que depois de elaborar uma teoria da canção ele fica na dialética entre Bossa e Tropicalismo e a música popular radiofônica (a popular, de grandes vendagens) é relegada a segundo plano. O não tão lembrado dos pesquisadores grupo Tupiana, de 1958, por exemplo, é desconsiderada.
Isso aqui seria o autêntico (entre aspas) modelo de canção tupiana. Mas, como diz o Waldecyr, seria considerada nacionalóide demais. Isso foi completamente esquecido, basta ver o número de visualizações do vídeo...

É também interessante lembrar uma coisa: noves fora, a produção de música sertaneja é ininterrupta e vende muito bem desde 1929. Outra, com relação à raiz sertaneja, e isso é um assunto complexo e tem a ver com a Tupiana: como diz Bóris Fausto naquele livro sobre a história do Brasil, muitos não sabem, mas até o começo do século XX, existia um considerável contingente de índios que viviam na zona oeste do estado de São Paulo. 

E, concomitante à sua urbanização e o sincretismo entre eles e outras raças é que aquele tipo de sertanejo "jeca" (esse é um assunto para especialistas, e esse não é o meu caso) que está, de certa forma, na origem desse tipo humano.Isso explicaria a ideia de criar uma guarânia à brasileira. Esse é um assunto que pesquisadores como Tinhorão provavelmente não se debruçaria. 

Engraçado observar  que a primeira parte  essa canção parece decalcada da Ave Maria de Gunod na primeira parte, mas eu acho interessante, só que foi um flop na época.
Até porque existe um preconceito incontornável sobre o gênero, e gente como Mário Zan e Nonô Basílio são relegados a um esquecimento. Por que não fazem análise semiótica de suas canções? Só Ary Barroso, Caymmi. Aí você vai me dizer: mas você está comparando sertanejo com eles? Como ousa?

Muita gente contrapõe o sertanejo de hoje com o que seria um outro, de raiz. Mas a questão é que quando o Cornélio Pires gravou a 1ª canção sertaneja assim como o Pelo Telefone, eles á tinham perdido o caráter de raiz a música de raiz é imaginária ela já urbanizou há muito tempo.

A história dessas gravações é bem interessante. Porque a maioria dos selos na época, 1929, não se interessou em gravar esses duos bandeirantes. Cornélio foi um visionário porque ele acreditou na força do gênero sertanejo como música radiofônica.
E resolveu bancar as prensagens desses 78 rotações porque acreditava que eram vendáveis. Claro que observe que, mesmo como uma espécie de protofolclorista, ele acreditava que podia vendê-los. E, de fato, Cornélio Pires descobriu um filão que ainda não era explorado no Brasil.

Sertanejo de raiz a gente tá falando de um troço de mais de um século, resgatar isso seria mais um trabalho de antropologia musical, como aquele pessoal tipo o Jack Lomax fazia nos EUA e a professora Luciana Prass, da UFRGS, fez aqui com os maçambiques de Osório, aliás, um trabalho muito bonito e importante nesse campo de pesquisa. Interessante observar que muito dessa música folclórica – que seria de raiz, na verdade tinha um jaez muito vinculado à práticas religiosas, como era o caso do sertanejo “original”.

Por exemplo, o Jorginho do Sertão com o Mariano e Caçula, seria o máximo que eu poderia chegar de moda de viola. Problema é que o disco, como eu disse, já uma versão adaptada do folclore. Então, a música de raiz mesmo teria que ser registrada em campo, e não em disco. Esse problema, com efeito, divide os pesquisadores, e o mesmo acontece com relação às raízes do samba. Seria mais fácil entender o fenômeno da difusão desses gêneros a através da possibilidade de gravá-los em disco. É a partir daí que essa imaginária música de raiz se urbaniza.

A Columbia não queria gravar os sertanejos, disse que não vendia. Ele tentou prensar uma tiragem de 2 mil cópias, conseguiu dinheiro no comércio. Feitas as cópias, ele passou a vender cópias pelo interior do estado. Teve que pedir mais uma tiragem, porque ele voltou à sede da gravadora de mãos vazias: tinha vendido tudo. 

Mas Cornélio, de certa forma, foi um agitador cultural, porque ele fez essa mediação, isto é, ele, de certa forma, colocou esteticamente o sertanejo na cidade, desde 1910, quando publicou seus poemas em revistas como O Malho, do Rio de Janeiro, além de ter uma longa carreira como escritor.  

Sunday, February 16, 2020

Californa Dreamin'


Cartaz do documentário

Assisti finalmente esses dias ao documentário Echo In The Canyon, que conta a história de uma cena musical que aconteceu na Costa Leste dos estados Unidos, mais precisamente em Los Angeles, durante os anos 60. Dirigido por Andrew Slater, e produzido e apresentado por Jackob Dylan, o filme, que está no site Netflix, me lembrou outro documentário, mais ou menos no mesmo estilo, o Wrecking Crew, produzido pelo Denny Tedesco, filho do Tommy Tedesco, que integrou o grupo de músicos baseado na capital da California, e que conta a trajetória desses homens e mulheres que,  trabalhando nos bastidores da indústria musical norte-americana, foram responsáveis por tocar e arranjar talvez a melhor parte se não do pop rock ianque da época, pelo menos o melhor da música de cinema e dos grandes clássicos do que se chamou o ‘California Sound’.

Se o documentário de Tedesco fala dos músicos que, mesmo que de maneira informal, estavam na medula dos grandes sucessos do pop dos anos 1960, o de Slater, de forma dialógica, conta a outra parte da história, inclusive contando com depoimentos de fontes em comum, como Lou Adler, Brian Wilson e Roger McGinn.

O que eles têm em comum é que, sob o impacto da Invasão britânica, o mercado da música estadunidense mudou de forma a moldar-se a um outro tipo de padrão de entretenimento e de produção e consumo de músicas. Ao mesmo tempo, a indústria musical se desloca da Costa Oeste (concentrados na Broadway e o chamado Brill Bulding, uma continuação do Tim Pan Alley) para a Califórnia. A cena musical, a partir de 1965, se concentrará em Los Angeles e arredores.

Um exemplo de como essa cena mudou está no depoimento de Michelle Phillips: tanto ela quando Mama Cass e John Sabastian (e outros) até 64 estavam disputando um espaço em Nova Iorque, à moda dos músicos folk que tentavam carreira nos bares do Village. O fato é que o fenômeno da Beatlemania alteraria totalmente os padrões: Cass  e Phillips, que tocavam em grupos folk como os Mugwumps, mudaram para o rock. Parte da turma (com Zal Yanovsky) iria formar o Lovin’ Spoonful – uma versão pop rock de uma jugband enquanto Michelle e Mama (com Donny Doherty) iria formar o The Mamas and the Papas (como eles contam de forma bem-humorada na canção “Creek Alley”).

Da mesma forma, garotos como McGinn e David Crosby, que tentavam a sorte como um duo folk no Village, sob o impacto dos Beatles, resolvem virar uma banda de rock.  Curioso notar como a ideia de um conjunto de rock compondo suas próprias canções e tocando seus próprios instrumentos era uma concepção que jamais passaria pela cabeça dos tubarões da indústria fonográfica, embora o pessoal do folk, à moda de Bob Dylan, estavam criando suas próprias músicas. Talvez seja por isso que o mercado da Costa Leste fosse refratário a essas mudanças (eles ainda pensavam em termos de neil sedakas e Frank avalons, e o verdadeiro lugar ao sol dessa nova cena musical seria, com efeito, a ensolarada Costa Oeste. Até Barry McGuire se deu conta, depois de tanto tempo, que seu lugar não Village.

Aliás, sintomático pensar que ele foi o primeiro a gravar ‘California Dreamin’. Composta por John Phillips, e gravada com uma banda formada pelo pessoal do Wrecking Crew, a música é interessante por ser uma espécie de prospecto do que era o ‘California Sound’. Um pop ensolarado, com vocais bastante trabalhados em estúdio, como nos discos dos Beach Boys que, por sua vez, com Jan e Dean (e os Beau Brummels, em San Francisco) como os pioneiros desse subgênero. 

‘California Dreamin’’se tornaria a canção de apresentação dos Mamas, um retrato de um grupo de jovens que descobriu que a terra prometida era a sua própria terra (o retorno e as novas boas vindas depois de meses em Nova Iorque) e ao mesmo tempo, nas entrelinhas, uma música de protesto contra a convocação obrigatória para a Guerra do Vietnã (“You know the preacher likes the cold/He knows I’m gonna stay”). O movimento para o Oeste era tão lógico que até mesmo o famoso DJ televisivo Dick Clark, a partir de 1965, passou a transmitir  seu programa a partir de Los Angeles. 

Clark, que era um genial expedicionário do pop, e sabia do seu papel como agente divulgador das novas tendências do rock, fez a escolha certa ao perceber de onde o vento soprava:  logo, ele deixava os do wops dos tempos do Brill Buliding para apresentar as novidades da cena musical do oeste: Doors, Buffalo Springfield, Byrds, Jefferson Airplane, Association, Turtles, etc.

A própria história Buffalo Springfield, que aparece no documentário Echo In The Canyon, tem muito da formação dessa cena musical e do êxodo de jovens músicos para a California. Depois de tentarem a sorte no Meio Oeste e em Nova Iorque, Neil Young foi encontrar Stephen Stills nas ruas de L.A depois que este perdeu a chance de tornar-se um dos Monkees em favor de Peter Tork. 

Curiosamente, Tork, morto em 2019, seria um dos grandes anfitriões de artistas alienígenas em sua casa em Laurel Canyon. O bairro, outrora uma reserva indígena, nos anos 60 se transformaria na Meca dos artistas de Hollywood e, mais precisamente, a base de operações desses garotos que, em pouco tempo (e por um breve período) seriam a tropa de frente do que melhor se faria em termos de pop nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, eles formariam um grupo coeso que, a despeito de pequenas questiúnculas competitivas (Byrds X Bufallo Springfield), andariam juntos durante o final daquela década. Mais do que isso: eles formariam a base (junto com Adler e outros) que, a partir de experiências anteriores em festivais de música, iriam conceber o Festival de Monterey. ocorrido em meados de 1967, no auge do movimento flower-power, o certame (não competitivo) seria uma das grandes efemérides da década, e que estaria para sempre vinculado ao imaginário da contracultura dos anos 60.   

Imaginário talvez seja a palavra certa para explicar o que foi esse “movimento” baseado na música produzida na Califorinia naqueles tempos e que entronizou o ‘California Sound’. Talvez o mérito de ‘Echo In the Canyon’ resida justamente em fazer um rescaldo do legado daquela música. Para tanto, Jakob Dylan serve como elemento aglutinador que, ao mesmo tempo, faz a ponte com artistas sessentistas, com a primeira geração posterior (Tom Petty, com aparece com Jakob logo no começo do documentário tocando a Rickenbaker 12 cordas de Roger McGinn) e a geração atual (Fiona Apple, Beck, Norah Jones).  Durante o documentário, a ‘ala jovem’ se reúne e discute as canções e os discos que a turma da ‘California Sound’ legou, do If You Believe In Your Eyes and Ears, primeiro disco do Mamas and the Papas, o Pet Sounds (praticamente uma parceria entre os Beach Boys e o Wrecking Crew). 

Olhando em retrospectiva, é curioso recordar de depoimentos como os de Carol Kaye e Hal Blaine (do Crew) no sentido de que, como músicos comissionados, eles não se preocupavam em destacar seus nomes nos créditos dos álbuns ou sequer cogitavam que aquilo que eles fizessem tivesse excelência o suficiente para se perpetuarem como produto estético. É importante lembrar que estamos falando de discos que foram lançados, em sua maioria, há mais de meio século. Mesmo assim, ainda no formato vinil (como aparecem no documentário, um clima de saborosa nostalgia), aquela música, como boa parte do melhor que se fez naqueles anos, parece não ter envelhecido, ou melhor, envelheceu da melhor forma possível.

E, mais do que isso, mostra que, depois de décadas e décadas e após tantas mudanças de gêneros e de tendências na história do pop, aquelas canções cabem de forma perfeita nas vozes de artistas de hoje. Acho que esse é o grande mérito de ‘Echo In the Canyon’; mais do que nostalgia,  é a demonstração de uma produção artística que passa incólume ao teste do tempo. Se não, basta escutar a trilha do documentário. 

Ao mesmo tempo em que os covers nos aparecem nas vozes de Norah, Dylan e outros, elas aparecem frescas, como se tivessem sido compostas agora. E, da mesma forma, é incrível perceber o olhar da escolha das canções. Todas elas têm uma história dentro do ‘California Sound’. Desde a versão de “Goin’ Back”, que os Byrds gravaram no Notorious Byrd Brothers (para muitos o melhor trabalho do quinteto) até o duo entre Norah e Jakob em “Never My Love”, do Association, um dos momentos mais bonitos de ‘Echo In the Canyon’. Isso sem falar de outros covers, uns inusitados, como “You Showed Me”, uma canção pouco conhecida do começo da carreira dos Byrds, até “Questions”, do último álbum do Bufallo Springfield.

‘Echo In the Canyon’ não é um documentário meticuloso à moda Ken Burns; ao contrário, é ligeiramente superficial e conta muita coisa que a maioria das pessoas (aqui não, mas lá com certeza) conhecem já de longa data. No entanto, o seu grande valor reside em dar voz justamente aos protagonistas do que foi esse movimento que não foi um movimento propriamente dito, mas que representou um importante momento na história do pop contemporâneo.  


Wednesday, February 12, 2020

A volta do Som Imaginário

Capa do primeiro disco, de 1970, relançado em vinil


A Polysom está lançando este mês o primeiro disco do Som Imaginário (1970) em vinil, conjunto que, de certa maneira, foi o braço roqueiro do Clube da Esquina, que é, ao mesmo tempo, uma espécie de movimento (cuja importância, impacto e influências não saberiam nesse mísero post) , banda-rio e nome de álbum clássico, como se sabe. O selo já havia mostrado a sua importância no sentido de resgate de álbuns clássicos dos anos 1970, como foi o caso do Peabiru (Lula Côrtes e Zé Ramalho,que comentei no último post do ano passado aqui), trabalhos estes que tiveram pouca divulgação na época, e não sobreviveram à sua respectiva geração, já que não tiveram reprensagens e foram sumariamente esquecidos ao longo dos anos 1980 e 90, até o advento da Internet.

A questão é que se o Clube da Esquina dispensa  maiores apresentações, o Som Imaginário, hoje redescoberto em fonogramas remasterizados e dispostos na Internet, além de imagens em vídeo que podem ser encontradas no Youtube, representou um grande momento na história do rock progressivo e da MPB na época. A bibliografia do gênero rock,por exemplo, passou a ser revisitada a partir de trabalhos como o de Arthur Dapieve,como o BRock, a partir do final dos anos 1990, repassando a década anterior. No entanto, havia muito a ser feito, no tocante ao que foi ser chamado de Brazilian Nuggets. Pegando emprestado o nome da famosa coletânea da Elektra (que recuperou o lado B do rock norte-americano embandas que lançaram, em sua maioria, singles mas que, mesmo assim, chegaram,em muitos casos a fazer sucesso embora a maioria delas fosse e seja obscura ao grande público), essa arqueologia musical redescobriu verdadeiras gemas em vinil do rock dos 70 e que estavam sumariamente esquecidas. Num primeiro momento, esse material foi compilado à moda do álbum duplo norte-americano. 

Num segundo momento, com o revival do vinil e de um interesse cada vez maior por parte de audiófilos e fãs da época, esses trabalhos passaram a ser relançados em álbuns originais. 

Cabe ressaltar que muitos dos artistas que lançaram  canções entre o final dos anos 1960 e seguinte não passaram de compactos, em geral meros “pau-de-sebo”. 
O primeiro disco do Som Imaginário, banda formada por Zé Rodrix, Wagner Tiso, Fredera, Tavito e outros (como Robertinho Silva e Luiz Alves que, junto com Tiso, bancaram a derradeira viagem do Som, o Matança do Porco, talvez o mais "Clube" dos três, dada a influência de Mílton Nascimento num dos vocais e Wagner nas composições), mostra que esses trabalhos provam o Brasil, mesmo na contramão do que se fazia lá fora, conseguia dar a luz a uma produção que, correndo por fora do que era divulgado na grande mídia, em geral músicas que passavam pelo esquema das coletâneas de novelas da Globo, estava ligada com a música de fora.

Com o tempo, essas redescobertas fizeram com que a história do rock brasileiro, tão incensada no período dos anos 1980, quando finalmente ganharam visibilidade e espaço na mídia, sendo coroados pelo Rock In Rio, primeiro momento em que o rock internacional mostrou de fato as caras nos nossos palcos e as gravadoras, já unidas com as rádios em FM, descobriram um vasto mercado jovem para conquistar - coisa que parecia impensável dez anos antes do festival de 1985.

O grande problema é que a historiografia e  a dificuldade de acesso à fontes fez com que se encapsulasse o rock oitentista como se fosse um Século de Péricles, formado por luminares que tiraram um rock de excelência da cartola, como um mágico. E o associasse à Jovem Guarda, como se os anos 1970 fosse um interregno marcado por pouca produção no gênero, com exceção de nomes como Raul Seixas e Rita Lee, além dos Mutantes e secos e Molhados. E, é claro, O Terço.

Lembro que, no final dos anos 1990, a Bizz passou a publicar matérias assinadas por Fernando Rosa, o Senhor F por trás das redescobertas dos Nuggets brasileiros. As matérias mostravam trabalhos de bandas nas quais muitos de nós mal tínhamos ouvido falar, como Impacto Cinco, A Bolha, Matuskela, Pão Com Manteiga, O Bando, Baobás, O Som Nosso de Cada Dia, Ave Sangria,  entre tantas.  O problema era: onde estão os discos? Mesmo com o surgimento e popularização do CD, nada daquilo seria remasterizado e lançado. Foi apenas depois da Internet que eu pude, finalmente, ouvir na íntegra o disco do Bixo da Seda (1976), trabalho do qual eu conhecia apenas uma faixa, “O Trem”, que saiu num CD especial sobre música de Porto Alegre (produzido pela secretaria de cultura da cidade), mas, mesmo assim, era pouco.  

 Enfim, toda aquela gente era muita gente.  Gente que não tinha a ver com som de bailes, não queria saber de covers e, antenado com o que se fazia lá fora, aquém de imposições de gravadoras como a sisuda CBS, que havia transformado a Jovem Guarda sessentista num intragável maneirismo brega. E que, como se sebe, era tão bitolada com relação a ver artistas com autonomia no estúdio (com exceção de Roberto Carlos), execrou o soul de Tim Maia ainda no começo e deu um carão na audácia de Raul Sexas em produzir e lançar sensacionalmente rejeitado Sessão da 10.  Isso mostrava o quanto as gravadoras daqui estavam longe do rock internacional, sabendo que aqui esse tipo de som serviria para poucos, e que, na sua visão, fatalmente encalharia - principalmente se não tocasse no rádio, na novela  ou no Globo de Ouro. 

Ou seja, se o rock foi underground nos anos 1970, isso se deu a vários fatores, de mercado, de falta de visão por parte dos selos, etc.

Mas isso não quer dizer que gravadoras brasileiras não tivessem, em alguns momento, como podemos ver, não tivessem apostado nesses conjuntos. O que aconteceu foi uma grande falta de um circuito cultural com grossas correias, emissoras de rádio (o FM só entraria com força em 1977) que catapultassem isso (basta lembrar que donos de emissoras viam com muita resistência e desinteresses trabalhos que saíssem do grande esquema) de forma a que chegasse ao grande público, e uma imprensa de segmento jovem ou mesmo a grande mídia, que servisse como agente de consagração desses músicos que, como representantes do rock brasileiro daquela época, formaram , embora dispersos, uma resistência cultural muito importante e que está sendo redescoberta cada vez mais hoje.  

E, que, na minha pobre opinião, mereceriam um livro à altura do BRock, mas com mais detalhes. Lançamentos como o 1973: o Ano que mudou a MPB (Célio Albuquerque)  e o Pavões Misteriosos (André Barcinski), além de inúmeros documentários, teses e dissertações, por si só, mostram que assuntos não faltam.

O Som Imaginário era uma banda curiosa: ligados com Nonato Buzar, Wagner Tiso, eles nascem de uma costela da turma da Pilantragem, e que, na época dos festivais, uniram-se aos projetos dos mineiros, fundindo música internacional e brasileira. Acho que, guardadas as proporções devidas, daria para fazer paralelos com o King Crimson, pelo ecletismo de suas visões musicais e com os MGs da Stax, pelo fato de que eles foram a banda de apoio de muita gente, além,é claro dos trabalhos de Milton Nascimento e do Clube da Esquina, contudo sem deixar de ser um grupo autônomo. 

Os discos do Som Imaginário chegaram no entanto a sair no estrangeiro, embora em edição limitada. E, como se pode imaginar, esses lançamentos de clássicos da Polysom se prestam mais à audiófilos modernos e antigos, mas que têm relação com o vinil, coisa que ainda encontra muitos adeptos, mas é hoje, na minha opinião, uma mídia do passado e que não tem a força massiva do streaming. Mas serve para mostrar tanto que trabalhos como o da série "clássicos" da Polysom mostram bandas com o Som Imaginário em seu formato original, de um tempo – que durou do começo dos anos 1950 até o final dos anos 1990, e que foi o formato  que permitiu que gerações de artistas produzissem uma tipo de música singular. O rock progressivo, o psicodélico, suas capas e sua estética, nasceram e foram tributários desse meio. Mais do que mero fetiche ou passadismo, é importante lembrar que álbuns como os três grandes trabalhos do Som jamais teriam sido feitos como foram se não fosse numa época, num lugar e sob a égide do vinil. Uma época que não vou dizer que foi melhor ou pior, mas que um tipo de música que, como num sonho, num dia, floresceu nela e que agora retorna ao grande público.

Para quem não ouviu, dá para achar o disco na rede, seja em mp3 ou até mesmo uma parte dele no Youtube (embora com duas faixas cortadas). Destaques para "Nepal", "Hey Man" e, naturalmente, a versão original de "Feira Moderna", com Zé Rodrix nos vocais, canção que participou do FIC da Globo e que, oito anos depois, seria revisitada por Beto Guedes, na versão que você já deve estar lembrando cantarolando agora enquanto lê essa última linha que eu escrevo.  


   

Friday, January 24, 2020

Deu prá Ti

Capa do segundo disco

O (maravilhoso) Festival Internacional Sesc de Música desde ano comemora, entre outras coisas (os 250 anos de nascimento de Beethoven) os quarenta anos de carreira da dupla Kleiton e Kledir, com o lançamento do primeiro disco deles, aquele que tem “Fonte da Saudade”. Eles se apresentam no próximo sábado na Praia do Laranjal, junto com a orquestra do Theatro São Pedro.
Impossível não lembrar deles sem evocar uma época da minha vida, e de tanta gente também. Eu assisti a uma apresentação deles no Teatro Guaíra, em Curitiba, em 1983. Aquele foi, com certeza, o primeiro show que eu assisti na vida. Lembro que foi uma experiência incrível, porque eu, no limiar dos meus quase dez anos, estava acordando para esse tipo de coisa. Até hoje, ao lembrar daquela noite, fico pensando no que eu pensava, eu era muito jovem. Até para me antenar nas letras deles, como “Paixão”, que falava de coisas que eu não entendia, mas achava graça da ironia das tiradas, como “diz que fui pra Nova Iorque ou pra Bagdá e que isso não é hora de telefonar”.
Quem me levou no Teatro foi um amigo de meus pais. Ele era de Lagoa e, como nós, que morávamos em Santa Felicidade, éramos exilados do Rio Grande do Sul. Ele era um cara curioso: era fã de música nativista e tinha uma discoteca paquidérmica de vinis, que ia de discos raros do Cenair Maicá até praticamente tudo de festivais. Quando o Leonardo ganhou a Calhandra com “Tertúlia”, e ele vivia escutando a música no toca-discos dele. Tanto que me é impossível não ouvi-la sem lembrar daqueles tempos de Curitiba.
Foi ele quem me gravou, não sei por que, os dois primeiros discos do Kleiton e Kledir. Naquele tempo, não era muito fácil achar os álbuns à venda. Ele tinha ambos em fita, e juntou ambos numa fita só, de 90 minutos, da Philips. A gente deixava ela no porta-luvas do carro. Naquele tempo, meus pais ainda não tinham uma vitrola (iriam comprar uma, pouco tempo tempo depois). Era a época em que a gente vivia escutando música no toca-fitas do carro. Até mesmo, no veraneio, era quase uma instituição entre toda a gurizada que não aguentava a programação das estações de rádio da praia, sempre ter umas fitas à mão para curtir alguma coisa alternativa nos auto-falantes do carro.

E a gente, que regularmente viajava, muitas vezes para o Rio Grande, ouvia muita música no carro. Acho que meu começo como ouvinte foi no toca-fitas dos carros dos meus pais. Depois é que eu ganhei um radinho de pilhas, e que virou uma mania que eu carrego até hoje.
Claro que eu ouvia os discos com os ouvidos e a cabeça de um guri. Agora eu estava reouvindo os três primeiros discos deles e os quatro dos Almôndegas. Eu ouvia “Deu pra Ti”, que era quase um hino dos exilados. Sempre que eu ouvia, repassava todas aquelas coisas que eles falam na letra: a redenção, o Falcão, o Beira-Rio. Tudo nessa saudade absurda de um dia voltar e da felicidade do reencontro. Porém, isso foi naquela época quando o Inter vendeu o Falcão, os Almôndegas acabaram.
E a gente pensava: e agora? Parece engraçado falar isso hoje mas, naquele tempo, era como se tudo tivesse mudado. Foi a perda da inocência (se bem que a minha verdadeira perda da inocência foi Brasil X Itália em 1982, enfim, deixam pra lá). Nada mais seria como antes. Mas “Dei pra Ti” representava e representou tudo aquilo, uma nostalgia e uma utopia possível, tudo ao mesmo tempo.
Os jogadores de futebol iam embora, os conjuntos acabavam. Posso dizer que nunca me recuperei nem do fim dos Almôndegas e nem da venda do Falcão. Certas coisas são tão plenas de eternidade que não deveriam acabar nunca. Gostava um monte de “Maria Fumaça”, que é uma música engraçada pelo fato de tematizar uma viagem de trem – algo tão comum no cancioneiro norte-americano (Rock Island Line, Orange Blossom Special) mas que aqui não era tão comum. Porém, de fato, existia um ramal da RFFSA que ia de Pedro Osório a Bagé e que transportou passageiros até meados da década de 1990. “Maria Fumaça”, diz Kleiton no livro Gauleses Irredutíveis, foi a música que, no fim dos Almôndegas, acabou fazendo com que eles deslanchassem a dupla. Mesmo hoje, agora, nesse momento, eu volto a escutar a canção de novo: é incrível como uma música pode nos fazer voltar no tempo e esquecer do mundo por dois minutos e meio. 
É uma experiência que vai além da experiência da audição, é o retorno a um paraíso perdido deflagrado proustianamente por uma canção. Digo isso porque, lembro que eu comprei o disco de 1983 deles (lembro de entrar na loja, em Santa Felicidade com minha mãe, acho que foi o primeiro disco que eu comprei na vida). Eu gostei de alguma faixa, mas não era mais a mesma coisa. Sei que, com o tempo, eu me desinteressei por eles. Logo depois apareceu o rock brasileiro, e o fenômeno do Michael Jackson: todo mundo comprou o Thriller. De repente, foi como se o gosto de todo mundo mudasse. E muita coisa que a gente ouvia ficou para trás. E eu esqueci completamente do Kleiton e Kledir. Mesmo quando eu via as reuniões deles em tempos posteriores, parecia para mim algo do passado. Nem aquela nostalgia que estava imbricada com aquelas antigas audições me evocava nada.
Assim como muita coisa que eu ouvi no passado e foi ficando cada vez mais no passado. O curioso nisso tudo é que parece que a gente vive tanto nessa vida para que as coisas passem pelo teste do tempo. Coisas que ficam no passado, coisas que retornam, coisas que são evocadas de forma involuntária e nos jogam naquela primeira experiência anterior, coisas que voltam a nos falar novamente, coisas que foram há tanto tempo e que parecem que foram semana passada, coisas que nos fazem viver uma vida avoenga novamente como num passa de mágica, como um rapto ou um voo de tapete voador ao meu exílio curitibano, minha meninice, as viagens de carro, a saudade da saudade.
Hoje eu percebo, por exemplo, toda a relação da música deles com elementos nativistas, sem ter uma conotação nativista. Algo que, depois descobri, estava dentro do espírito de época da música jovem urbana do fim dos anos 1970: além dos Almôndegas, tínhamos os primeiros trabalhos do Bebeto Alves e do próprio Carlinhos Hartlieb, que era um cara de uma geração ligeiramente anterior. Ouço “Lagoa dos Patos”. Acho que canções como essa sempre me evocaram essa curiosidade por música nativista, mesmo não sendo eu um entusiasta do nativismo. Mas certamente o que me colocou diante dessa experiência foi pela audição dessas canções. Ainda hpje, novamente, reouvindo “Lagoa dos Patos”, a vontade de pegar carona num navio e ir até Rio Grande como nossos avós faziam, descendo a lagoa, é indescritível. Se a canção fala: “Lá no fundo da lagoa/ Dorme uma saudade boa/ Longe desse céu sereno/ O coração pequeno/ E vazio ficou/ Sei que a vida içou as velas/ Mas em noites belas/ Sou navegador”.
E eu ouvia esses discos do Kleiton e Kledir direto. Os discos me marcaram bastante porque, não sei por que cargas d’água, de tantas idas e vindas de Porto Alegre, eu comecei a desenvolver uma estranha nostalgia do sul. Eu guardava exemplares da Folha da Tarde, que meu pai assinava (isso mais ou menos na época da campanha de 1983 do Grêmio na Libertadores, não torcia mas lembro) ou vivia escutando a Guaíba e a Gaúcha nas ondas médias e curtas do rádio. E a casa desse nosso amigo nativista era uma espécie de enclave gaúcho informal no bairro, quase um pseudo CTG. Não que todos fossem adeptos. No meu caso, era uma saudade inexplicável de Porto Alegre. Não sei como, mas acabei incutindo em meus pais essa ideia de retornar aos pagos. Não sei como eles processaram isso. O fato é que nós acabamos voltando mesmo, em 1984. Lembro da primeira coisa que eu fiz quando cheguei no apartamento da minha avó, na Av. Farrapos com Roosevelt: liguei o Telefunken dela, sintonizei na Guaíba. Hoje essa nostalgia me parece absurda, quase como uma paixão antiga que nos insuflou e que não fala mais nada, nem quando tentamos instigá-la. Acho que se eu fosse embora novamente, não sentiria essa saudade dos pagos novamente. Mas, como toda paixão, fica apenas a saudade dela e o desejo de um dia voltar a sentir isso de novo.

Thursday, January 16, 2020

Pandeiro de Prata





Chegou às telas esse mês o esperado documentário Túlio Piva – Pandeiro de Prata (Brasil, 2018, 55 min). O documentário, assinado por Marco Martins e loli Menezes vem à luz quase quatro anos depois do tempo estipulado, que era em ocasião do centenário do sambista porto-alegrense (porém nascido em Santiago).  
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Autor de clássicos como “Tem que ter mulata” e “Gente da noite”, Túlio vinha à capital apresentar-se como músico. Farmacêutico de origem, acabou aditando o burgo açoriano e sua boemia noturna depois de chamar a atenção de Paulo Diniz, radialista que lhe colocou como violonista no conjunto de Norberto Baudeuf. Muitos anos antes de chegar à Porto Alegre, em 1955, ele começou a compor. No começo, como seria natural, escrevia canções em tempo do tango.

Importante lembrar que o ritmo portenho era uma coqueluche em todo o estado,  devido tanto pela facilidade com que as rádios argentinas eram ouvidas por aqui quanto pelo fato de que, antes da aviação comercial, as trocas culturais e comerciais entre Porto Alegre e Buenos Aires eram maiores do que com outras metrópoles do Brasil.  Porém, quando Piva descobriu Noel Rosa, descobriu que podia fazer música com pandeiro e tamborim.  

Muita gente que vinha tocar aqui, acabou levando seus sambas para Rio de janeiro ou São Paulo, este um dos notórios redutor da música de Túlio. E sua música ganhou uma dimensão inesperada. Porém, diferente do seu contemporâneo Lupicínio Rodrigues, Piva era um militante de sua produção: guardava originais, anotações, buscava espaço para suas canções, e chegou ao disco várias vezes, e como intérprete de sua própria criação, (embora alguns discos tenham sempre releturas de clássicos).

Aliás, a produção fonográfica, apesar de pequena, é excelente e irretocável, ou quase: faltaram apenas aqueles sambas que ele não gravou, numa produção que chegou a quinhentos sambas ou mais, com clássicos como “Janela dos olhos”,  “Se eu errei”, “Quando chega a solidão”. Seus sambas, sempre lembrando seu colega Lupi, são bem característicos se compararmos como sambas-canção do autor de “Vingança”. Túlio foi lá e venceu. Levou o primeiro lugar no II Festival Sul-Brasileiro da Canção Popular com “Pandeiro de Prata”. Porém, na etapa nacional, pela TV Excelsior, foi desclassificado.Quem levou o troféu foi Taiguara com “Modinha”, de Sérgio Bittencourt. Muitos dizem que derrota teve cheiro de maracutaia. E a vitória de Bittencourt também).  

Nos anos 1970 ele retorna ao disco, primeiro com um delicioso álbum, Túlio Piva, gravado pela Continental, em 1975. O momento era propício: o produto vinil estava vendendo como nunca no Brasil, depois da Crise de 1973, e muitos outros sambistas também chegaram ao disco, como Nelson Cavaquinho, Cartola e Clementina de Jesus.
Sobre sua lírica, comparações bem à parte, embora esta seja incontornável em termos de samba daqui: acho que enquanto Lupi é um cara lunar, existe algo de solar em Piva – no sentido que, se há tristeza na alma do poeta, Túlio diz sempre haverá um outro dia. São sempre “prá cima”. São sempre alegres, bem diferentes do universo soturno do autor de “Foi assim”.  Madalena pecou? É samba. “Coração/ não veste luto/ quanto mais bate/ mais sabe que morre/minuto a minuto”.  

E Túlio tem uma coisa que lhe é bem característica: seus sambas têm uma levada mais de partido alto que a forma do samba-canção. E não quer ser uma profunda digressão sobre a vida, como um Cartola. É sobre o momento de agora, é breve, quer que o ouvinte o decore em duas ou três audições, como uma marchinha ou aqueles sambas antigos, do tempo de Sinhô e Heitor dos Prazeres. Tem algo de direto, não quer ser rebuscado. Quer que você saia cantando. Mas não deixa de ser sempre poético, como em “Velhos Amores” “e o passado é perfume/ perfumando o presente/ que cheiro de saudade dentro do peito da gente”.

Piva teve um bar que marcou época na região da Santana/Azenha, o Gente a Noite.  O estabelecimento faz sucesso nos anos 1970, sempre com muita gente tentando entrar no bar lotado. Por sinal, quem não lembra do programa, de mesmo nome, apresentado pelo Tatata Pimentel, nos anos 2000? Tatata, que era uma espécie de amálgama de Odete de Crècy e Truman Capote (que morreu sem escrever o seu A Sangue Frio) do bairro Santana, era um dos diversos freqüentadores: afinal, ele morava a duas quadras dali, na Olavo Bilac...

Eu lembro do Túlio como gente do dia, já com as chuteiras da sua boemia bem-comportada plenamente dependuradas, morando na esquina da Duque de Caxias com a Bento Martins (do lado da antiga ferragem do seu Ivo, que depois mudou mais para cima da Duque), onde sua esposa tinha um salão de beleza onde minha mãe sempre ia.  Mas, naquele tempo, começo dos anos 1990, o marasmo cultural parecia que estava cada vez mais transformando o samba da capital num difícil exercício de resistência. Tanto que soube muita coisa que é notória a seu respeito só descobri com o documentário.

Sobre na produção de Pandeiro de Prata, os diretores Marco Martins e Loli Menezes explicaram que dificuldades financeiras provocaram o delay na realização do filme, que pode sair apenas no ano passado. Dificuldades iam desde impossibilidade de pesquisa de campo fora de Porto Alegre como falta de dinheiro para material iconográfico para o documentário. Tanto que ele só pôde ser concluído graças a um crowdfunding feito através da Catarse.  
Pandeiro de Prata ficou em cartaz entre 9 e 15 de janeiro desse mês, na Casa de Cultura Mário de Cultura. A confirmar uma nova temporada pelos cinemas da capital. 

Monday, January 13, 2020

O Filho Maldito



Promo do filme Let It Be


O filme Let it Be tem umas nuances quando eu o revejo anos depois da primeira vez, a primeira vez foi em VHS pirata como quase tudo em vídeo dos Beatles nos anos 80. O John Lennon falou numa entrevista que o Phil Spector fez um grande serviço (isso ele falou numa época em que ele estava de boas com o Phil) em salvar o projeto do Let It Be/Get Back. Salvar porque eles estavam sob um contrato para um último filme para a United Artists. Imagino que em condições normais de temperatura e pressão, esse disco seria eternamente um bootleg, como virou lenda como bootleg, principalmente porque fãs descobriram um outro disco diferente do que foi embalsamado por Spector no álbum Let It Be. A despeito da opinião dos fãs, e do Paul, o disco saiu daquela maneira porque ele deveria sair daquela maneira. Paul reclamou de que a música dele foi alterada, mas é uma coisa curiosa: os artistas do rock sempre lutaram por autonomia no estúdio e aquilo era uma coisa que estava sendo imposta de fora. Mas a verdade é que você precisava apresentar um produto apresentável e rentável para quem bota o disco e o filme na praça.

O filme naturalmente é um documentário que, por sinal, se transformou num dos primeiros  discos piratas dos Beatles, o In a Play Anyway. Ou seja, os fãs preferiam aquele espírito de improviso, que era de fato o espírito do filme quando foi concebido, de mostrar os Beatles em estúdio como se nós fôssemos um voyeur de todo o processo. O problema é que, se você naturalmente pode imaginar como é o cotidiano de uma banda criando, deve imaginar que isso não é uma experiência interessante. Muito tempo perdido, brigas e tudo o mais. Porém no caso dos Beatles, isso estava sendo filmado, como um Big Brother avant le lettre. Aquela briga do George (que nenhum membro da banda aparentemente se interpôs para tirá-lo) virou algo marcante, com essa imagem de “os Beatles se dissolvem ao vivo e a cores”. Mas eu imagino que todo mundo, todas as bandas em geral, nesse processo de  pré-produção briga. Contudo, isso não fica documentado em latas como foi o caso dos Beatles. 

Let It Be é interessante como documentário: mostra os quatro apresentando as novas canções e começando a moldá-las. Bandas como os Beatles devem ter brigado muito em estúdio, então não entraria muito nessa seara. Os Stones acabaram em 1986 e só não acabaram de fato porque a roda da fortuna não pode parar de girar e porque o Ian Stewart morreu. Acho que o Ian salvou os Stones morrendo. Ou seja, o papel deles na banda é muito maior do que se imagina. Havia guerra de beleza, conflito de egos, grana envolvida, o fato deles (os Beatles e os Stones) estarem metidos nos negócios, uma coisa que não existia quando do começo eles. É aquela coisa: ou você é um músico, ou é um produtor, quando a produção ultrapassa esse limite, a coisa pode acabar mal, que o diga o Brian Wilson. Quem tinha que controlar os egos no estúdio, George Martin, tinha entrado de férias dos Beatles há meses. É claro que sem essa figura do empresário e do produtor, os músicos vão brigar como irmãos.  

Let it Be é um filho maldito. Quem trabalhou nesse projeto criticou o processo todo, como o Glyn Johns que depois foi criticado pelos fãs dos Beatles. Só que, ao contrário deles, ele viveu aquilo, e os Beatles viveram aquilo, eles investiram capital e músicas naquilo, então aquelFrankenstein tinha que ser apresentado ao público. Ao mesmo tempo em que  eles repudiavam o filho, sabiam que tinham que dar vida à eles. Isso explica a quantidade de tentativas de lançá-lo em 1969. 

O disco saiu, como eu disse lá em cima, porque eles precisavam da grana. Foi um filho, porém que nasceu como um sonho: o George havia conhecido a The Band e todos no meio da música achavam que o grande barato era largar o overdubbings voltar a fazer música como na época do Elvis, ensaiando na garagem, criando juntos, regravando clássicos do rock dos tempos da juventude.  Só que, no caso dos Beatles, havia uma série de problemas, o principal deles era que eles não eram mais aquela banda de antes, eram empresários fazendo musica, misturando música com negócios, música com a vida pessoal, música com o desejo pessoal deles como músicos. Então o sonho virou um pesadelo, e o filho sonhado virou um filho maldito.

O Paul é criticado pelo John Lennon porque para ele o fime é o Let it Paul, e que o Paul era o Engelbert Humperdink tocando música de elevador (é uma discussão divertida se formos pensar hoje, depois eles fizeram as pazes. Enfim, tudo foi feito por amor, como tudo deveria serfeito), com The Long and Winding Road. Mas, enfim, quando ele falou essas coisas, ele era uma metralhadora cheia de mágoas. O John foi um grande crítico da obra dos Beatles; mas isso não tem nada a ver com a crítica e o público, que vai ter uma idéia diversa de suas canções. Mas a impressão que eu sempre tive, e continuo tendo, é a que o Paul, mesmo naquela situação extrema (ter que produzir e viver um drama recíproco), era um agente aglutinador. Ele era o chato porém dono da bola. Você tinha que achá-lo um chato, mas ele manteve a banda, de certa forma, interligada num objetivo, naquele momento. E o que fez está feito. O filme saiu, o disco, o filho maldito (que eu acho que injustamente) também e nós temos a história de uma banda sensacional, cujo filme e o disco Let It Be completam,  esse ano, 50 anos. É incrível, ao rever ao filme, perceber como eles puderam, mesmo no meio do maior turbilhão da vida deles, mostrar toda a sua excelência como compositores e intérpretes


Tuesday, December 31, 2019

Paebiru: um mito luso-brasileiro

Capa do álbum duplo, de 1975


Paebiru, de Lula Côrtes e Zé Ramalho, é considerado o álbum mais raro da discografia brasileira, superando o Louco por Você, do Roberto Carlos. A isso se soma o fato de que, segundo consta, da prensagem original, de uma tiragem mínima de 1,3 mil cópias, restaram apenas trezentas. Estas, por sua vez, são disputadas por colecionadores, que pagam mais de 4 mil reais para obter uma cópia.

O álbum é considerado um clássico do movimento udigrudi, que congregou músicos como Robertinho do Recuife, Alceu Valença, Flaviola, além dos citados Zé Ramalho e Lula Côrtes. Além, e muito além disso, Paebiru é uma viagem lisérgica de 55 minutos em torno do imaginário criado em cima da Pedra do Ingá. Ela fica num sítio arqueológico a 109 km de João Pessoa. O monumento ancestral, chamado de "itacoatiara", é formado por um terreno rochoso que possui desenhos rupestres entalhados na rocha pura. Não se sabe ao certo a datação daquelas inscrições. Uns dizem que a Pedra pode ter sido talhada há 6 mil anos atrás. Para se ter uma ideia, estaríamos na passagem do Neolítico inferior para a Idade dos Metais, ou seja, no ocaso da chamada Pré-História, muito antes, por exemplo, do surgimento da primeira dinastia do Antigo Império no Egito (3.200 a.C).

Constituída de gnaisse, a Pedra perfaz uma área de 250 m². Na parte principal, vemos uma parede de 50 metros por 3 de altura. Além dessa parede, há outras formações, com riscos na pedra cujo significado é ainda desconhecido. Há quem entenda tratar-se de um calendário solar. Em outras partes, é possível perceber representações mais familiares, com desenhos de animais e seres humanos. O terreno do sítio, originalmente particular, foi doada ao governo e Pedra do Ingá foi finalmente tombada em 1944.

Como muitos, Zé Ramalho e Lula Côrtes costumavam visitar o local. Somada a experiências pessoais de ambos, a dupla decidiu transformar essas digressões espirituais num disco. Lançado em 1975, Paêbirú: Caminho da Montanha do Sol, é uma suíte musical que evoca o imaginário que cerca a Pedra do Ingá. O nome faz referência a um caminho mágico que ligaria o sítio arqueológico até os Andes. Esse caminho, segundo a tradição local, teria sido feito por um deus, chamado Sumé. Como é recorrente nas mitologias, Sumé seria uma espécie de agente civilizador, que teria oferecido seus ensinamentos aos homens comuns, como Prometeu para os gregos. Ele teria ensinado o plantio da mandioca aos gentios e sido responsável pela entrada do Ingá, um dos muitos caminhos utilizados pelos ameríndios, muito antes da chegada dos europeus à América.

Em Visão do Paraíso, Sérgio Buarque de Holanda fala a respeito do imaginário em torno novo mundo. Ele diz que, ao contrário dos portugueses, os espanhóis tinham por larga conta toda a sorte de lendas e histórias envolvendo mundos mágicos, como o El Dorado. Ao contrário deles, os lusitanos eram de espírito mais prático, e não se davam à tais divagações. No entanto, observa Sérgio Buarque, uma lenda teria se disseminado entre os portugueses, que faz referência à chegada de São Tomé às índias e à América do Sul, pregando o evangelho, como o teria feito São Tiago em terras da Galícia.

O que no entanto era um culto local, como no caso de Santiago de Compostela era, no caso lusitano com relação a Tomé algo que havia se alastrado por todo o extremo oriente por onde os portugueses andaram, de Bombaim até o Mar da China. Relatos davam conta de pegadas atribuídas ao santo, que podiam ser encontradas tanto além das índias como, se descobriria depois, no chamado Novo Mundo, na América.

O Livro de Duarte Barbosa, por exemplo, fala da peregrinação do apóstolo em Meliapor, no sudeste da Índia. Um caçador teria alvejado um pavão que, ao desfalacer no chão, havia se transformado em homem. Ao chamar autoridades locais para testemunhar o fato, decidiram que o homem morto era, na verdade, um santo. Em seguida, foi inumado num local onde seria construída uma igreja. Em 1516, a Nova Gazeta Alemã, ao publicar uma crônica da viagem de D. Nuno Manuel à Ilha da Madeira, já dava conta de nativos que falavam da passagem de um certo Tomé numa terra “sem lei nem rei”. A própria cartografia confusa da época ligava a América com a Ásia, dando a entender que tal entidade tivesse atravessado essas distâncias, logo tratava-se do mesmo santo. Nativos mostravam aos europeus pegadas gigantes desde Cabo Frio até Itapoã, na Bahia.

Eles também diziam milagres do homem, sempre que tentavam prendê-lo, ele escapava, ora fugindo das flechas quanto abrindo caminho sobre as águas. Nos locais onde foram encontradas tais pegadas, como ocorrera em Meliapor, havia sempre uma fonte e/ou uma cruz. Uns falavam que a água jorrava da pedra, como é narrado nas passagens do Êxodo com relação à Moisés.

Essa água, diziam tais relatos colhidos, davam conta que podiam operar milagres. Contudo, tanto o uso contínuo desses sítios quanto a depredação provocada por crentes que raspavam as pedras deforma a preservá-las como relíquias teria feito com que tais pegadas se perdessem com o tempo, embora tenham permanecido na memória dos antigos. Outros relatos colhidos dão conta de que Tomé se dirigia aos nativos, que falava com os peixes.

Sérgio Buarque de Holanda observa que, mesmo que os espanhóis fossem mais dados a castelos no ar com relação à narrativas imaginárias e eldorados,  a hagiografia a respeito de São Tomé permanece como um caso sui generis, que foi difundido primeiramente por missionários portugueses católicos. “que a presença das pegadas nas pedras se tivesse associado, entre estes, e já antes do advento do homem branco, à passagem de algum herói civilizador, é plenamente admissível quando se tenha em conta a circunstância de semelhante associação se achar disseminada entre inúmeras populações primitivas, em todos os lugares do mundo”, diz o sociólogo. O que deve ser levado em conta, diz o autor, éque enre esses catequizadores, a tendência naturalmente era a de associar o tal “agente civilizador” que travou contato com os gentios (seria um deus astronauta?) com o apóstolo de Cristo.

Anotações em mapas como a de Caverio também davam a entender, devido a algumas topografias assinaladas, como “alápago (ou arquipélago) de são Paulo (na verdade, seria a foz do Macaé)”, davam a entender que gentes do velho continente tivessem aportado muito antes de Cabral – ou outro apóstolo, enfim, outro “agente” que tenha ensinado aos índios a prática do plantio e da utilização da mandioca e da erva-mate.

A verdade é que o nome de Sumé na América apareceia, desde cedo, associado a pegadas humanas e à informações sobre a aparição de um “mensageiro de verdades sobrenaturais”. Logo, os descobridores destas terras fariam a associação com Tomé ou Chimé (como era chamado em Angkor, hoje Cambodja). Relatos, como os de Simão de Vasconcelos, dão conta de penedos encontrados em Cabo Frio com marcas de bordões que, de acordo com determinadas interpretações, seriam marcas que eram na verdade milagres que teriam sido realizados por Sumé de forma a convencer os gentios que eram refratários à sua pregação. No sítio, também haveria vestígios de uma fonte medicinal. Vasconcelos também atribui a Tomé o caminho de Mairapé (estrada milagrosa), no Recôncavo Baiano.

No entanto, anota Sérgio Buarque, o maior legado do mítico São Tome ou Sumé reside numa longa estrada que, saindo do litoral do Brasil, vai até o Paraguai, no mesmo ramal que serviria de caminho para bandeiras espanholas como a de Aleixo Garcia e Cabeza de Vaca, os peabirus. Relatos como o de Ruiz de Montoya afirmam que o tal caminhocomeçava desde a Ilha de são Vicente (outros, mais recentes, associam o começo da estrada ao Pátio do Colégio). Pedro ozano, missionário da Companhia de Jesus em Guairá, fala da trilha encantada: “corre El camiño nombrado por los guaranies Peabiru y por los españoles de Santo Tomé, que es el que trajo el gloriosissimo apostol por mas de 200 leguas desde La capitania de San Vicente, em El Brasil, y tiene ocho palmos de ancho”.  Ele também diz que a erva da triha por onde Zumé passara nunca cresce, permanecendo rala por todo o tempo e toda a sua extensão. Nicolas Del Techo, no século XVII, segundo Sérgio Buarque, faz descrição similar do peabiru. Segundo estes cronistas, as histórias e padecimentos do apóstolo de Cristo em terras brasileiras também chegaram à América espanhola. Relatos de gentios também dão conta dos ensinamentos de Sumé sobre o cultivo de erva-mate e mandioca e falam de sua peregrinação, de Assunção até Potosí. Padre Alonso Ramos ajuntou a história de que um grande homem branco foi perseguido por locais quando em passagem por Cacha, rumo á Cuzco. Vários depoimentos são correlatos tanto a respeito à respeito da descrição do peregrino (barbas, olhos claros) quanto ao seu ministério aos gentios, marcas de bordoadas em rochedos, e a perseguição a que fora vítima (segundo a hagiografia, ele sobrevivera à fogueira.

O curioso é observar que, seguindo a tese de Sergio Buarque em Visão do Paraíso, que essa tal hagiografia de Tomé/Zumé nasce entre os descobridores e missionários portugueses, ela passa a ganhar maiores detalhes e fumos de narrativa fantástica ou maravilhosa densa a partir dos relatos espanhóis, como era de se esperar.  Nicolau Del Techo, por exemplo, fala de uma cruz de jacarandá que fora descoberta perto do Titicaca (onde o santo era chamado de Pay Tumé). A madeira, como se soube depois, não era da região; ora, de tal arte, a explicação mais plausível era a de que Tomé a tivesse construído e conduzido desde o Brasil até o lago peruano, num percurso de “mais de mil e duzentas léguas”, de acordo com Padre Antônio Ruiz, em sua Conquista Espiritual.  Na Igreja de São Tomé (de acordo com Padre Osório) de Meliapor, nas Índias Orientais, havia um madeiro de dimensões idênticas, e que, da mesma forma, não poderia ter sido transportada até lá a não ser de forma milagrosa: a cruz é tão grande que seria impossível conceber que tipo de parelha de animais por quantas léguas seriam necessários para dar conta do transporte.   

A despeito de correlações entre elementos do Sumé mítico brasileiro, do Tumé peruano ou do apóstolo,  anota Sérgio Buarque, o elemento que os une é, justamente, o papel civilizador do mito em todos os casos. Já os missionários entendem Sumé como um avatar que havia anunciado a futura conversão dos gentios, isto é, uma profecia (bem a la “deuses astronautas”) que teria feito o apóstolo aos índios, da futura pregação dos padres da Companhia: “é de supor que essa feição adquirida pelo mito tivesse contribuído poderosamente para dar impulso à obra missionária desenvolvida pelos padres durante toda a sua assistência em terras do Paraguai, e, em particular, do Guairá castelhano”, diz Buarque.

A profecia daria conta de que Tomé teria dito aos antepassados dos gentios que, no futuro, chegariam à suas terras os sucessores de seu ministério. Eles, ao contrário dele, iriam juntar os locais esparsos em povoações grandes e em regime comunitário. Eles trariam cruzes nas mãos e ensinariam a concórdia entre as tribos dispersas. O fato, diz o sociólogo, é que por vários motivos, o mitológico Pae Tumé assume, no Paraguai, por conta dessa profecia, proporção que ele não gozou na narrativa portuguesa: o de profeta da catequese jesuítica. Já os relatos do Tomé peruano, por sua vez, possuem elementos similares à hagiografia do Tomé das Índias Orientais. Porém, diz Sérgio Buarque, é na narrativa “brasileira” que ocorre o “sincretismo” Tumé-Sumé/Tomé. Na conclusão do capítulo, Buarque de Hollanda entende que enquanto a Igreja reconfigurava suas posições com os descobrimentos, a identificação do apóstolo das Índias deveria agora fornecer uma solução “histórica” para a questão. Por outro lado, diz ele, o resgate e escravidão de gentios e africanos, que os lusitanos foram menos “solícitos em combater com razões teológicas” (como Las Casas, diz ele) poderiam ser praticados sem grandes escrúpulos: “uma vez admitida a pregação, teriam que alargar-se possibilidades de “guerra justa” (expressão do bispo de Chiapas) contra alguns povos, menos por serem gentios primitivos mas, sim, apóstatas, ou seja, refratários à fé cristã.

Enfim, o  tempo cuidou de que, de certa forma, as lendas se misturassem. O sincretismo transformou Sumé em São Tomé, assim como, no Oriente, ele era chamado de Chimé. Tanto lá como aqui ou em Assunção, como se viu, foram encontradas pegadas de sandálias impressas na pedra, feitas por um agente mágico. O mesmo fenômeno poderia ser encontrado aqui (em Itajuru, em Cabo Frio, segundo Buarque) quanto em Angcor. “Não seria difícil”, diz ele, “pelo menos a espiritualidade medieval e quinhentista, sua assimilação à lembrança de um São Tomé Apóstolo, que os autores mais reputados pretendiam ter ido levar até as partes da Índia, a luz do evangelho cristão”.

O mito de Sumé se espalharia pelo Nordeste. Com o tempo, o imaginário em torno do conjunto rochoso do Ingá se misturaria livremente a toda a sorte de lendas e histórias, que vão desde contatos remotos com navegadores fenícios até os passos de Sumé Poe uma imemorial américa profunda. Mais além, ufólogos corroboram teorias como a de um Erich Von Dankien, de que extraterrestres fossem responsáveis pelos desenhos rupestres. Nesse sentido, seria de se pensar se Sumé fosse, de fato, um Prometeu intergalático? Pesquisadores da área, como Cláudio Quintans não fala das pegadas e das marcas do bordão de Sumé, mas rastros dos vímanas desses astronautas do passado. Teorias a parte, através da pesquisas arqueológicas, supõe-se que as inscrições do Ingá foram feitas por ameríndios que habitaram o local há pelo menos 8 mil anos, ou seja, isso remontaria à passagem do Neolítico para a Idade dos Metais, ou um estágio imediatamente posterior – ou seja, há muito tempo antes do período da viagem de Colombo.

Lula Côrtes, por exemplo, um dos artífices do disco Paebiru, foi um dos artistas dos anos 1970 que leu Von Dankien. Mesmo que as teses do escritor suíço sejam hoje consideradas pseudo-científicas, elas fizeram a cabeça de muita gente na época, e Côrtes foi um deles. Junto com Zé Ramalho, em 1972, eles foram até o Ingá a convite de Raul Córdula. Maravilhados com a descoberta, eles decidiram criar um disco conceitual que falasse do Ingá Para tanto, empreenderam toda a sorte de pesquisas sobre o assunto, e retornaram várias vezes para o local, a fim de captar o ambiente. Assim, descobriram que o Ingá era um dos ramais dos inúmeros caminhos ancestrais dos ameríndios, e que ligavam o litoral nordestino até o Peru.

Para Lula Côrtes, não era impossível que aquilo fosse, de fato, obra de um Prometeu das galáxias. Tanto que morreu defendendo que as inscrições rupestres teriam sido escritas á raio laser.  Tanto que, na primeira parte do álbum, eles narram a saga de Sumé (a partir de suas próprias concepções a respeito da entidade), o viajante intergalático que “com a barba vermelha, desenhou a pedra do Ingá”, na letra de "Trilha de Sumé".

Disco duplo, Paebiru impressiona tanto pela temática, Sumé e a pedra encantada do Ingá, caminhos ancestrais, deuses astronautas, tudo emoldurado pelo espírito de época, drop out, contracultura, psicodelia temporã, Dankien e Castañeda, mescalito, xamanismo, cogumelos e outros baratos, como o folk rock norte-americano e o udigrudi, enfim, todo um zeitgeist da contracultura dos anos 1970 no Brasil. O álbum, que teve apenas uma edição – cuja prensagem, que já era limitada, devido à destruição do parque industrial da gravadora Rozemblit, em 1976, transformou Paebiru quase numa lenda urbana. Poucos tiveram a oportunidade de ouvi-lo, e o disco ficou praticamente desconhecido do grande público por décadas, até o surgimento da internet. Com o mp3, começaram a aparecer as primeiras cópias piratas de trabalhos alternativos do rock e da MPB dos anos 60 e 70.

O álbum impressiona pelo conceito ambicioso e anti-comercial. Na verdade, poderia-se considerá-lo como uma suíte, cindida nos quatro elementos, fogo, água, ar e terra, onde cada seção possui uma paleta de instrumentos, uma concepção rítmica e tímbres específicos, muito embora, a despeito de respectivamente tematizados, são expostos de forma livre, misturando o autóctone (o canto dos cariris, a viola caipira) e instrumentos 'modernos', como a guitarra e o piano forte, criando esse contraste entre o antigo e o moderno, atualizando a ancestralidade do mito numa visão original, onde Sumé é homem e força da natureza. E tudo gravado em apenas dois canais, e sem overdubs ou truques de mixagem ou pós-produção.

Embora raro, Paebiru foi um  dos grandes clássicos perdidos da história da MPB que foi descoberto por colecionadores de todo mundo sendo reeditado também em vinil pirata. O selo Mr Bongo chegou a fabricar o álbum, até que a Polysom também relançou Peabiru este ano. A crescente demanda por reedições do disco e o progressivo interesse por parte de pesquisadores e audiófilos já falam por si a respeito da excelência de Paebiru e sua importância na história da música brasileira. 


(1) Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959.