Wednesday, February 12, 2020

A volta do Som Imaginário

Capa do primeiro disco, de 1970, relançado em vinil


A Polysom está lançando este mês o primeiro disco do Som Imaginário (1970) em vinil, conjunto que, de certa maneira, foi o braço roqueiro do Clube da Esquina, que é, ao mesmo tempo, uma espécie de movimento (cuja importância, impacto e influências não saberiam nesse mísero post) , banda-rio e nome de álbum clássico, como se sabe. O selo já havia mostrado a sua importância no sentido de resgate de álbuns clássicos dos anos 1970, como foi o caso do Peabiru (Lula Côrtes e Zé Ramalho,que comentei no último post do ano passado aqui), trabalhos estes que tiveram pouca divulgação na época, e não sobreviveram à sua respectiva geração, já que não tiveram reprensagens e foram sumariamente esquecidos ao longo dos anos 1980 e 90, até o advento da Internet.

A questão é que se o Clube da Esquina dispensa  maiores apresentações, o Som Imaginário, hoje redescoberto em fonogramas remasterizados e dispostos na Internet, além de imagens em vídeo que podem ser encontradas no Youtube, representou um grande momento na história do rock progressivo e da MPB na época. A bibliografia do gênero rock,por exemplo, passou a ser revisitada a partir de trabalhos como o de Arthur Dapieve,como o BRock, a partir do final dos anos 1990, repassando a década anterior. No entanto, havia muito a ser feito, no tocante ao que foi ser chamado de Brazilian Nuggets. Pegando emprestado o nome da famosa coletânea da Elektra (que recuperou o lado B do rock norte-americano embandas que lançaram, em sua maioria, singles mas que, mesmo assim, chegaram,em muitos casos a fazer sucesso embora a maioria delas fosse e seja obscura ao grande público), essa arqueologia musical redescobriu verdadeiras gemas em vinil do rock dos 70 e que estavam sumariamente esquecidas. Num primeiro momento, esse material foi compilado à moda do álbum duplo norte-americano. 

Num segundo momento, com o revival do vinil e de um interesse cada vez maior por parte de audiófilos e fãs da época, esses trabalhos passaram a ser relançados em álbuns originais. 

Cabe ressaltar que muitos dos artistas que lançaram  canções entre o final dos anos 1960 e seguinte não passaram de compactos, em geral meros “pau-de-sebo”. 
O primeiro disco do Som Imaginário, banda formada por Zé Rodrix, Wagner Tiso, Fredera, Tavito e outros (como Robertinho Silva e Luiz Alves que, junto com Tiso, bancaram a derradeira viagem do Som, o Matança do Porco, talvez o mais "Clube" dos três, dada a influência de Mílton Nascimento num dos vocais e Wagner nas composições), mostra que esses trabalhos provam o Brasil, mesmo na contramão do que se fazia lá fora, conseguia dar a luz a uma produção que, correndo por fora do que era divulgado na grande mídia, em geral músicas que passavam pelo esquema das coletâneas de novelas da Globo, estava ligada com a música de fora.

Com o tempo, essas redescobertas fizeram com que a história do rock brasileiro, tão incensada no período dos anos 1980, quando finalmente ganharam visibilidade e espaço na mídia, sendo coroados pelo Rock In Rio, primeiro momento em que o rock internacional mostrou de fato as caras nos nossos palcos e as gravadoras, já unidas com as rádios em FM, descobriram um vasto mercado jovem para conquistar - coisa que parecia impensável dez anos antes do festival de 1985.

O grande problema é que a historiografia e  a dificuldade de acesso à fontes fez com que se encapsulasse o rock oitentista como se fosse um Século de Péricles, formado por luminares que tiraram um rock de excelência da cartola, como um mágico. E o associasse à Jovem Guarda, como se os anos 1970 fosse um interregno marcado por pouca produção no gênero, com exceção de nomes como Raul Seixas e Rita Lee, além dos Mutantes e secos e Molhados. E, é claro, O Terço.

Lembro que, no final dos anos 1990, a Bizz passou a publicar matérias assinadas por Fernando Rosa, o Senhor F por trás das redescobertas dos Nuggets brasileiros. As matérias mostravam trabalhos de bandas nas quais muitos de nós mal tínhamos ouvido falar, como Impacto Cinco, A Bolha, Matuskela, Pão Com Manteiga, O Bando, Baobás, O Som Nosso de Cada Dia, Ave Sangria,  entre tantas.  O problema era: onde estão os discos? Mesmo com o surgimento e popularização do CD, nada daquilo seria remasterizado e lançado. Foi apenas depois da Internet que eu pude, finalmente, ouvir na íntegra o disco do Bixo da Seda (1976), trabalho do qual eu conhecia apenas uma faixa, “O Trem”, que saiu num CD especial sobre música de Porto Alegre (produzido pela secretaria de cultura da cidade), mas, mesmo assim, era pouco.  

 Enfim, toda aquela gente era muita gente.  Gente que não tinha a ver com som de bailes, não queria saber de covers e, antenado com o que se fazia lá fora, aquém de imposições de gravadoras como a sisuda CBS, que havia transformado a Jovem Guarda sessentista num intragável maneirismo brega. E que, como se sebe, era tão bitolada com relação a ver artistas com autonomia no estúdio (com exceção de Roberto Carlos), execrou o soul de Tim Maia ainda no começo e deu um carão na audácia de Raul Sexas em produzir e lançar sensacionalmente rejeitado Sessão da 10.  Isso mostrava o quanto as gravadoras daqui estavam longe do rock internacional, sabendo que aqui esse tipo de som serviria para poucos, e que, na sua visão, fatalmente encalharia - principalmente se não tocasse no rádio, na novela  ou no Globo de Ouro. 

Ou seja, se o rock foi underground nos anos 1970, isso se deu a vários fatores, de mercado, de falta de visão por parte dos selos, etc.

Mas isso não quer dizer que gravadoras brasileiras não tivessem, em alguns momento, como podemos ver, não tivessem apostado nesses conjuntos. O que aconteceu foi uma grande falta de um circuito cultural com grossas correias, emissoras de rádio (o FM só entraria com força em 1977) que catapultassem isso (basta lembrar que donos de emissoras viam com muita resistência e desinteresses trabalhos que saíssem do grande esquema) de forma a que chegasse ao grande público, e uma imprensa de segmento jovem ou mesmo a grande mídia, que servisse como agente de consagração desses músicos que, como representantes do rock brasileiro daquela época, formaram , embora dispersos, uma resistência cultural muito importante e que está sendo redescoberta cada vez mais hoje.  

E, que, na minha pobre opinião, mereceriam um livro à altura do BRock, mas com mais detalhes. Lançamentos como o 1973: o Ano que mudou a MPB (Célio Albuquerque)  e o Pavões Misteriosos (André Barcinski), além de inúmeros documentários, teses e dissertações, por si só, mostram que assuntos não faltam.

O Som Imaginário era uma banda curiosa: ligados com Nonato Buzar, Wagner Tiso, eles nascem de uma costela da turma da Pilantragem, e que, na época dos festivais, uniram-se aos projetos dos mineiros, fundindo música internacional e brasileira. Acho que, guardadas as proporções devidas, daria para fazer paralelos com o King Crimson, pelo ecletismo de suas visões musicais e com os MGs da Stax, pelo fato de que eles foram a banda de apoio de muita gente, além,é claro dos trabalhos de Milton Nascimento e do Clube da Esquina, contudo sem deixar de ser um grupo autônomo. 

Os discos do Som Imaginário chegaram no entanto a sair no estrangeiro, embora em edição limitada. E, como se pode imaginar, esses lançamentos de clássicos da Polysom se prestam mais à audiófilos modernos e antigos, mas que têm relação com o vinil, coisa que ainda encontra muitos adeptos, mas é hoje, na minha opinião, uma mídia do passado e que não tem a força massiva do streaming. Mas serve para mostrar tanto que trabalhos como o da série "clássicos" da Polysom mostram bandas com o Som Imaginário em seu formato original, de um tempo – que durou do começo dos anos 1950 até o final dos anos 1990, e que foi o formato  que permitiu que gerações de artistas produzissem uma tipo de música singular. O rock progressivo, o psicodélico, suas capas e sua estética, nasceram e foram tributários desse meio. Mais do que mero fetiche ou passadismo, é importante lembrar que álbuns como os três grandes trabalhos do Som jamais teriam sido feitos como foram se não fosse numa época, num lugar e sob a égide do vinil. Uma época que não vou dizer que foi melhor ou pior, mas que um tipo de música que, como num sonho, num dia, floresceu nela e que agora retorna ao grande público.

Para quem não ouviu, dá para achar o disco na rede, seja em mp3 ou até mesmo uma parte dele no Youtube (embora com duas faixas cortadas). Destaques para "Nepal", "Hey Man" e, naturalmente, a versão original de "Feira Moderna", com Zé Rodrix nos vocais, canção que participou do FIC da Globo e que, oito anos depois, seria revisitada por Beto Guedes, na versão que você já deve estar lembrando cantarolando agora enquanto lê essa última linha que eu escrevo.  


   

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