Capa do segundo disco |
O
(maravilhoso) Festival
Internacional Sesc de Música desde
ano comemora, entre outras coisas (os 250 anos de nascimento de
Beethoven) os quarenta anos de carreira da dupla Kleiton e Kledir,
com o lançamento do primeiro disco deles, aquele que tem “Fonte da
Saudade”. Eles se apresentam no próximo sábado na Praia do
Laranjal, junto com a orquestra do Theatro São Pedro.
Impossível
não lembrar deles sem evocar uma época da minha vida, e de tanta
gente também. Eu assisti a uma apresentação deles no Teatro
Guaíra, em Curitiba, em 1983. Aquele foi, com certeza, o primeiro
show que eu assisti na vida. Lembro que foi uma experiência
incrível, porque eu, no limiar dos meus quase dez anos, estava
acordando para esse tipo de coisa. Até hoje, ao lembrar daquela
noite, fico pensando no que eu pensava, eu era muito jovem. Até para
me antenar nas letras deles, como “Paixão”, que falava de coisas
que eu não entendia, mas achava graça da ironia das tiradas, como
“diz que fui pra Nova Iorque ou pra Bagdá e que isso não é hora
de telefonar”.
Quem
me levou no Teatro foi um amigo de meus pais. Ele era de Lagoa e,
como nós, que morávamos em Santa Felicidade, éramos exilados do
Rio Grande do Sul. Ele era um cara curioso: era fã de música
nativista e tinha uma discoteca paquidérmica de vinis, que ia de
discos raros do Cenair Maicá até praticamente tudo de festivais.
Quando o Leonardo ganhou a Calhandra com “Tertúlia”, e ele vivia
escutando a música no toca-discos dele. Tanto que me é impossível
não ouvi-la sem lembrar daqueles tempos de Curitiba.
Foi
ele quem me gravou, não sei por que, os dois primeiros discos do
Kleiton e Kledir. Naquele tempo, não era muito fácil achar os
álbuns à venda. Ele tinha ambos em fita, e juntou ambos numa fita
só, de 90 minutos, da Philips. A gente deixava ela no porta-luvas do
carro. Naquele tempo, meus pais ainda não tinham uma vitrola (iriam
comprar uma, pouco tempo tempo depois). Era a época em que a gente
vivia escutando música no toca-fitas do carro. Até mesmo, no
veraneio, era quase uma instituição entre toda a gurizada que não
aguentava a programação das estações de rádio da praia, sempre
ter umas fitas à mão para curtir alguma coisa alternativa nos
auto-falantes do carro.
E a gente, que regularmente viajava, muitas vezes para o Rio Grande, ouvia muita música no carro. Acho que meu começo como ouvinte foi no toca-fitas dos carros dos meus pais. Depois é que eu ganhei um radinho de pilhas, e que virou uma mania que eu carrego até hoje.
Claro
que eu ouvia os discos com os ouvidos e a cabeça de um guri. Agora
eu estava reouvindo os três primeiros discos deles e os quatro dos
Almôndegas. Eu ouvia “Deu pra Ti”, que era quase um hino dos
exilados. Sempre que eu ouvia, repassava todas aquelas coisas que
eles falam na letra: a redenção, o Falcão, o Beira-Rio. Tudo nessa
saudade absurda de um dia voltar e da felicidade do reencontro.
Porém, isso foi naquela época quando o Inter vendeu o Falcão, os
Almôndegas acabaram.
E
a gente pensava: e agora? Parece engraçado falar isso hoje mas,
naquele tempo, era como se tudo tivesse mudado. Foi a perda da
inocência (se bem que a minha verdadeira perda da inocência foi
Brasil X Itália em 1982, enfim, deixam pra lá). Nada mais seria
como antes. Mas “Dei pra Ti” representava e representou tudo
aquilo, uma nostalgia e uma utopia possível, tudo ao mesmo tempo.
Os
jogadores de futebol iam embora, os conjuntos acabavam. Posso dizer
que nunca me recuperei nem do fim dos Almôndegas e nem da venda do
Falcão. Certas coisas são tão plenas de eternidade que não
deveriam acabar nunca. Gostava um monte de “Maria Fumaça”, que é
uma música engraçada pelo fato de tematizar uma viagem de trem –
algo tão comum no cancioneiro norte-americano (Rock Island Line,
Orange Blossom Special) mas que aqui não era tão comum. Porém, de
fato, existia um ramal da RFFSA que ia de Pedro Osório a Bagé e que
transportou passageiros até meados da década de 1990. “Maria
Fumaça”, diz Kleiton no livro Gauleses Irredutíveis, foi a música
que, no fim dos Almôndegas, acabou fazendo com que eles
deslanchassem a dupla. Mesmo hoje, agora, nesse momento, eu volto
a escutar a canção de novo: é incrível como uma música pode nos
fazer voltar no tempo e esquecer do mundo por dois minutos e meio.
É
uma experiência que vai além da experiência da audição, é o
retorno a um paraíso perdido deflagrado proustianamente por uma
canção. Digo isso porque, lembro que eu comprei o disco de 1983
deles (lembro de entrar na loja, em Santa Felicidade com minha mãe,
acho que foi o primeiro disco que eu comprei na vida). Eu gostei de
alguma faixa, mas não era mais a mesma coisa. Sei que, com o tempo,
eu me desinteressei por eles. Logo depois apareceu o rock brasileiro,
e o fenômeno do Michael Jackson: todo mundo comprou o Thriller. De
repente, foi como se o gosto de todo mundo mudasse. E muita coisa que
a gente ouvia ficou para trás. E eu esqueci completamente do Kleiton
e Kledir. Mesmo quando eu via as reuniões deles em tempos
posteriores, parecia para mim algo do passado. Nem aquela nostalgia
que estava imbricada com aquelas antigas audições me evocava nada.
Assim
como muita coisa que eu ouvi no passado e foi ficando cada vez mais
no passado. O curioso nisso tudo é que parece que a gente vive
tanto nessa vida para que as coisas passem pelo teste do tempo.
Coisas que ficam no passado, coisas que retornam, coisas que são
evocadas de forma involuntária e nos jogam naquela primeira
experiência anterior, coisas que voltam a nos falar novamente,
coisas que foram há tanto tempo e que parecem que foram semana
passada, coisas que nos fazem viver uma vida avoenga novamente como
num passa de mágica, como um rapto ou um voo de tapete voador ao meu
exílio curitibano, minha meninice, as viagens de carro, a saudade da
saudade.
Hoje
eu percebo, por exemplo, toda a relação da música deles com
elementos nativistas, sem ter uma conotação nativista. Algo que,
depois descobri, estava dentro do espírito de época da música
jovem urbana do fim dos anos 1970: além dos Almôndegas, tínhamos
os primeiros trabalhos do Bebeto Alves e do próprio Carlinhos
Hartlieb, que era um cara de uma geração ligeiramente anterior.
Ouço “Lagoa dos Patos”. Acho que canções como essa sempre me
evocaram essa curiosidade por música nativista, mesmo não sendo eu
um entusiasta do nativismo. Mas certamente o que me colocou diante
dessa experiência foi pela audição dessas canções. Ainda hpje,
novamente, reouvindo “Lagoa dos Patos”, a vontade de pegar carona
num navio e ir até Rio Grande como nossos avós faziam, descendo a
lagoa, é indescritível. Se a canção fala: “Lá
no fundo da lagoa/ Dorme uma saudade boa/ Longe desse céu sereno/ O
coração pequeno/ E vazio ficou/ Sei que a vida içou as velas/ Mas
em noites belas/ Sou navegador”.
E
eu ouvia esses discos do Kleiton e Kledir direto. Os discos me
marcaram bastante porque, não sei por que cargas d’água, de
tantas idas e vindas de Porto Alegre, eu comecei a desenvolver uma
estranha nostalgia do sul. Eu guardava exemplares da Folha da Tarde,
que meu pai assinava (isso mais ou menos na época da campanha de
1983 do Grêmio na Libertadores, não torcia mas lembro) ou vivia
escutando a Guaíba e a Gaúcha nas ondas médias e curtas do rádio.
E a casa desse nosso amigo nativista era uma espécie de enclave
gaúcho informal no bairro, quase um pseudo CTG. Não que todos
fossem adeptos. No meu caso, era uma saudade inexplicável de Porto
Alegre. Não sei como, mas acabei incutindo em meus pais essa ideia
de retornar aos pagos. Não sei como eles processaram isso. O fato é
que nós acabamos voltando mesmo, em 1984. Lembro da primeira coisa
que eu fiz quando cheguei no apartamento da minha avó, na Av. Farrapos
com Roosevelt: liguei o Telefunken dela, sintonizei na Guaíba. Hoje
essa nostalgia me parece absurda, quase como uma paixão antiga que
nos insuflou e que não fala mais nada, nem quando tentamos
instigá-la. Acho que se eu fosse embora novamente, não sentiria
essa saudade dos pagos novamente. Mas, como toda paixão, fica apenas
a saudade dela e o desejo de um dia voltar a sentir isso de novo.
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