Friday, January 24, 2020

Deu prá Ti

Capa do segundo disco

O (maravilhoso) Festival Internacional Sesc de Música desde ano comemora, entre outras coisas (os 250 anos de nascimento de Beethoven) os quarenta anos de carreira da dupla Kleiton e Kledir, com o lançamento do primeiro disco deles, aquele que tem “Fonte da Saudade”. Eles se apresentam no próximo sábado na Praia do Laranjal, junto com a orquestra do Theatro São Pedro.
Impossível não lembrar deles sem evocar uma época da minha vida, e de tanta gente também. Eu assisti a uma apresentação deles no Teatro Guaíra, em Curitiba, em 1983. Aquele foi, com certeza, o primeiro show que eu assisti na vida. Lembro que foi uma experiência incrível, porque eu, no limiar dos meus quase dez anos, estava acordando para esse tipo de coisa. Até hoje, ao lembrar daquela noite, fico pensando no que eu pensava, eu era muito jovem. Até para me antenar nas letras deles, como “Paixão”, que falava de coisas que eu não entendia, mas achava graça da ironia das tiradas, como “diz que fui pra Nova Iorque ou pra Bagdá e que isso não é hora de telefonar”.
Quem me levou no Teatro foi um amigo de meus pais. Ele era de Lagoa e, como nós, que morávamos em Santa Felicidade, éramos exilados do Rio Grande do Sul. Ele era um cara curioso: era fã de música nativista e tinha uma discoteca paquidérmica de vinis, que ia de discos raros do Cenair Maicá até praticamente tudo de festivais. Quando o Leonardo ganhou a Calhandra com “Tertúlia”, e ele vivia escutando a música no toca-discos dele. Tanto que me é impossível não ouvi-la sem lembrar daqueles tempos de Curitiba.
Foi ele quem me gravou, não sei por que, os dois primeiros discos do Kleiton e Kledir. Naquele tempo, não era muito fácil achar os álbuns à venda. Ele tinha ambos em fita, e juntou ambos numa fita só, de 90 minutos, da Philips. A gente deixava ela no porta-luvas do carro. Naquele tempo, meus pais ainda não tinham uma vitrola (iriam comprar uma, pouco tempo tempo depois). Era a época em que a gente vivia escutando música no toca-fitas do carro. Até mesmo, no veraneio, era quase uma instituição entre toda a gurizada que não aguentava a programação das estações de rádio da praia, sempre ter umas fitas à mão para curtir alguma coisa alternativa nos auto-falantes do carro.

E a gente, que regularmente viajava, muitas vezes para o Rio Grande, ouvia muita música no carro. Acho que meu começo como ouvinte foi no toca-fitas dos carros dos meus pais. Depois é que eu ganhei um radinho de pilhas, e que virou uma mania que eu carrego até hoje.
Claro que eu ouvia os discos com os ouvidos e a cabeça de um guri. Agora eu estava reouvindo os três primeiros discos deles e os quatro dos Almôndegas. Eu ouvia “Deu pra Ti”, que era quase um hino dos exilados. Sempre que eu ouvia, repassava todas aquelas coisas que eles falam na letra: a redenção, o Falcão, o Beira-Rio. Tudo nessa saudade absurda de um dia voltar e da felicidade do reencontro. Porém, isso foi naquela época quando o Inter vendeu o Falcão, os Almôndegas acabaram.
E a gente pensava: e agora? Parece engraçado falar isso hoje mas, naquele tempo, era como se tudo tivesse mudado. Foi a perda da inocência (se bem que a minha verdadeira perda da inocência foi Brasil X Itália em 1982, enfim, deixam pra lá). Nada mais seria como antes. Mas “Dei pra Ti” representava e representou tudo aquilo, uma nostalgia e uma utopia possível, tudo ao mesmo tempo.
Os jogadores de futebol iam embora, os conjuntos acabavam. Posso dizer que nunca me recuperei nem do fim dos Almôndegas e nem da venda do Falcão. Certas coisas são tão plenas de eternidade que não deveriam acabar nunca. Gostava um monte de “Maria Fumaça”, que é uma música engraçada pelo fato de tematizar uma viagem de trem – algo tão comum no cancioneiro norte-americano (Rock Island Line, Orange Blossom Special) mas que aqui não era tão comum. Porém, de fato, existia um ramal da RFFSA que ia de Pedro Osório a Bagé e que transportou passageiros até meados da década de 1990. “Maria Fumaça”, diz Kleiton no livro Gauleses Irredutíveis, foi a música que, no fim dos Almôndegas, acabou fazendo com que eles deslanchassem a dupla. Mesmo hoje, agora, nesse momento, eu volto a escutar a canção de novo: é incrível como uma música pode nos fazer voltar no tempo e esquecer do mundo por dois minutos e meio. 
É uma experiência que vai além da experiência da audição, é o retorno a um paraíso perdido deflagrado proustianamente por uma canção. Digo isso porque, lembro que eu comprei o disco de 1983 deles (lembro de entrar na loja, em Santa Felicidade com minha mãe, acho que foi o primeiro disco que eu comprei na vida). Eu gostei de alguma faixa, mas não era mais a mesma coisa. Sei que, com o tempo, eu me desinteressei por eles. Logo depois apareceu o rock brasileiro, e o fenômeno do Michael Jackson: todo mundo comprou o Thriller. De repente, foi como se o gosto de todo mundo mudasse. E muita coisa que a gente ouvia ficou para trás. E eu esqueci completamente do Kleiton e Kledir. Mesmo quando eu via as reuniões deles em tempos posteriores, parecia para mim algo do passado. Nem aquela nostalgia que estava imbricada com aquelas antigas audições me evocava nada.
Assim como muita coisa que eu ouvi no passado e foi ficando cada vez mais no passado. O curioso nisso tudo é que parece que a gente vive tanto nessa vida para que as coisas passem pelo teste do tempo. Coisas que ficam no passado, coisas que retornam, coisas que são evocadas de forma involuntária e nos jogam naquela primeira experiência anterior, coisas que voltam a nos falar novamente, coisas que foram há tanto tempo e que parecem que foram semana passada, coisas que nos fazem viver uma vida avoenga novamente como num passa de mágica, como um rapto ou um voo de tapete voador ao meu exílio curitibano, minha meninice, as viagens de carro, a saudade da saudade.
Hoje eu percebo, por exemplo, toda a relação da música deles com elementos nativistas, sem ter uma conotação nativista. Algo que, depois descobri, estava dentro do espírito de época da música jovem urbana do fim dos anos 1970: além dos Almôndegas, tínhamos os primeiros trabalhos do Bebeto Alves e do próprio Carlinhos Hartlieb, que era um cara de uma geração ligeiramente anterior. Ouço “Lagoa dos Patos”. Acho que canções como essa sempre me evocaram essa curiosidade por música nativista, mesmo não sendo eu um entusiasta do nativismo. Mas certamente o que me colocou diante dessa experiência foi pela audição dessas canções. Ainda hpje, novamente, reouvindo “Lagoa dos Patos”, a vontade de pegar carona num navio e ir até Rio Grande como nossos avós faziam, descendo a lagoa, é indescritível. Se a canção fala: “Lá no fundo da lagoa/ Dorme uma saudade boa/ Longe desse céu sereno/ O coração pequeno/ E vazio ficou/ Sei que a vida içou as velas/ Mas em noites belas/ Sou navegador”.
E eu ouvia esses discos do Kleiton e Kledir direto. Os discos me marcaram bastante porque, não sei por que cargas d’água, de tantas idas e vindas de Porto Alegre, eu comecei a desenvolver uma estranha nostalgia do sul. Eu guardava exemplares da Folha da Tarde, que meu pai assinava (isso mais ou menos na época da campanha de 1983 do Grêmio na Libertadores, não torcia mas lembro) ou vivia escutando a Guaíba e a Gaúcha nas ondas médias e curtas do rádio. E a casa desse nosso amigo nativista era uma espécie de enclave gaúcho informal no bairro, quase um pseudo CTG. Não que todos fossem adeptos. No meu caso, era uma saudade inexplicável de Porto Alegre. Não sei como, mas acabei incutindo em meus pais essa ideia de retornar aos pagos. Não sei como eles processaram isso. O fato é que nós acabamos voltando mesmo, em 1984. Lembro da primeira coisa que eu fiz quando cheguei no apartamento da minha avó, na Av. Farrapos com Roosevelt: liguei o Telefunken dela, sintonizei na Guaíba. Hoje essa nostalgia me parece absurda, quase como uma paixão antiga que nos insuflou e que não fala mais nada, nem quando tentamos instigá-la. Acho que se eu fosse embora novamente, não sentiria essa saudade dos pagos novamente. Mas, como toda paixão, fica apenas a saudade dela e o desejo de um dia voltar a sentir isso de novo.

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