Thursday, January 16, 2020

Pandeiro de Prata





Chegou às telas esse mês o esperado documentário Túlio Piva – Pandeiro de Prata (Brasil, 2018, 55 min). O documentário, assinado por Marco Martins e loli Menezes vem à luz quase quatro anos depois do tempo estipulado, que era em ocasião do centenário do sambista porto-alegrense (porém nascido em Santiago).  
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Autor de clássicos como “Tem que ter mulata” e “Gente da noite”, Túlio vinha à capital apresentar-se como músico. Farmacêutico de origem, acabou aditando o burgo açoriano e sua boemia noturna depois de chamar a atenção de Paulo Diniz, radialista que lhe colocou como violonista no conjunto de Norberto Baudeuf. Muitos anos antes de chegar à Porto Alegre, em 1955, ele começou a compor. No começo, como seria natural, escrevia canções em tempo do tango.

Importante lembrar que o ritmo portenho era uma coqueluche em todo o estado,  devido tanto pela facilidade com que as rádios argentinas eram ouvidas por aqui quanto pelo fato de que, antes da aviação comercial, as trocas culturais e comerciais entre Porto Alegre e Buenos Aires eram maiores do que com outras metrópoles do Brasil.  Porém, quando Piva descobriu Noel Rosa, descobriu que podia fazer música com pandeiro e tamborim.  

Muita gente que vinha tocar aqui, acabou levando seus sambas para Rio de janeiro ou São Paulo, este um dos notórios redutor da música de Túlio. E sua música ganhou uma dimensão inesperada. Porém, diferente do seu contemporâneo Lupicínio Rodrigues, Piva era um militante de sua produção: guardava originais, anotações, buscava espaço para suas canções, e chegou ao disco várias vezes, e como intérprete de sua própria criação, (embora alguns discos tenham sempre releturas de clássicos).

Aliás, a produção fonográfica, apesar de pequena, é excelente e irretocável, ou quase: faltaram apenas aqueles sambas que ele não gravou, numa produção que chegou a quinhentos sambas ou mais, com clássicos como “Janela dos olhos”,  “Se eu errei”, “Quando chega a solidão”. Seus sambas, sempre lembrando seu colega Lupi, são bem característicos se compararmos como sambas-canção do autor de “Vingança”. Túlio foi lá e venceu. Levou o primeiro lugar no II Festival Sul-Brasileiro da Canção Popular com “Pandeiro de Prata”. Porém, na etapa nacional, pela TV Excelsior, foi desclassificado.Quem levou o troféu foi Taiguara com “Modinha”, de Sérgio Bittencourt. Muitos dizem que derrota teve cheiro de maracutaia. E a vitória de Bittencourt também).  

Nos anos 1970 ele retorna ao disco, primeiro com um delicioso álbum, Túlio Piva, gravado pela Continental, em 1975. O momento era propício: o produto vinil estava vendendo como nunca no Brasil, depois da Crise de 1973, e muitos outros sambistas também chegaram ao disco, como Nelson Cavaquinho, Cartola e Clementina de Jesus.
Sobre sua lírica, comparações bem à parte, embora esta seja incontornável em termos de samba daqui: acho que enquanto Lupi é um cara lunar, existe algo de solar em Piva – no sentido que, se há tristeza na alma do poeta, Túlio diz sempre haverá um outro dia. São sempre “prá cima”. São sempre alegres, bem diferentes do universo soturno do autor de “Foi assim”.  Madalena pecou? É samba. “Coração/ não veste luto/ quanto mais bate/ mais sabe que morre/minuto a minuto”.  

E Túlio tem uma coisa que lhe é bem característica: seus sambas têm uma levada mais de partido alto que a forma do samba-canção. E não quer ser uma profunda digressão sobre a vida, como um Cartola. É sobre o momento de agora, é breve, quer que o ouvinte o decore em duas ou três audições, como uma marchinha ou aqueles sambas antigos, do tempo de Sinhô e Heitor dos Prazeres. Tem algo de direto, não quer ser rebuscado. Quer que você saia cantando. Mas não deixa de ser sempre poético, como em “Velhos Amores” “e o passado é perfume/ perfumando o presente/ que cheiro de saudade dentro do peito da gente”.

Piva teve um bar que marcou época na região da Santana/Azenha, o Gente a Noite.  O estabelecimento faz sucesso nos anos 1970, sempre com muita gente tentando entrar no bar lotado. Por sinal, quem não lembra do programa, de mesmo nome, apresentado pelo Tatata Pimentel, nos anos 2000? Tatata, que era uma espécie de amálgama de Odete de Crècy e Truman Capote (que morreu sem escrever o seu A Sangue Frio) do bairro Santana, era um dos diversos freqüentadores: afinal, ele morava a duas quadras dali, na Olavo Bilac...

Eu lembro do Túlio como gente do dia, já com as chuteiras da sua boemia bem-comportada plenamente dependuradas, morando na esquina da Duque de Caxias com a Bento Martins (do lado da antiga ferragem do seu Ivo, que depois mudou mais para cima da Duque), onde sua esposa tinha um salão de beleza onde minha mãe sempre ia.  Mas, naquele tempo, começo dos anos 1990, o marasmo cultural parecia que estava cada vez mais transformando o samba da capital num difícil exercício de resistência. Tanto que soube muita coisa que é notória a seu respeito só descobri com o documentário.

Sobre na produção de Pandeiro de Prata, os diretores Marco Martins e Loli Menezes explicaram que dificuldades financeiras provocaram o delay na realização do filme, que pode sair apenas no ano passado. Dificuldades iam desde impossibilidade de pesquisa de campo fora de Porto Alegre como falta de dinheiro para material iconográfico para o documentário. Tanto que ele só pôde ser concluído graças a um crowdfunding feito através da Catarse.  
Pandeiro de Prata ficou em cartaz entre 9 e 15 de janeiro desse mês, na Casa de Cultura Mário de Cultura. A confirmar uma nova temporada pelos cinemas da capital. 

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