Wednesday, February 26, 2020

O Forte e a Marchinha

A marcha ao cadafalso: os 18 do Forte

Aproveitando esse clima de Carnaval, vou contar uma historinha.



Depois de tomar posse, em 1923, o presidente Arthur Bernardes, entre muitas outras atitudes discricionárias – entre elas baixar uma lei que previa censura aos jornais e enquadramento do movimento operário no Brasil,impondo, inclusive, pena de deportação aos anarquistas espanhóis e italianos e um governo sob estado de sítio (com a anuência do Águia de Haia, Ruy Barbosa), mandar mater e prender centenas de pessos, ele proibiu a execução pública da divertida marchinha “Ai seu Mé”, de autoria de Freire Júnior e que, por sinal, não aparece com seu nome no selo do disco. Todos cantavam a música. As crianças adoravam a sabiam de cor. 

A marchinha carnavalesca, grande sucesso do Carnaval de 1922, junto com “Eu quero é beliscá” tem uma história fantástica por trás. Pra começar, hoje não se ouvem mais marchinhas. Mas era muito comum que elas, que começaram a ganhar vulto a partir do famoso “Pelo Telefone”, de 1917 e teriam seu auge nos anos 30 e 40, com temas escritos por Lamartine Babo e Braguinha, entre outros, fizessem muita crítica de costumes e, principalmente, sátira política.

Esse é o caso de “Ai, seu Mé. Lançada no começo de 1922, virou sucesso porque, com uma letra tão ostensiva quanto sutil, fazia crítica direta a Arthur Bernardes, então candidato do governo ao Catete. Bernardes, meses antes, mais precisamente em outubro do ano anterior, havia se envolvido numa grande patuscada, quando cartas falsas atribuídas à ele, que foram publicadas pelo Correio da Manhã.

As cartas atacavam diretamente o marechal Hermes da Fonseca. Na época, ele era um dos candidatos preferidos pelos oficiais das Forças Armadas para candidato de oposição, pela chapa oposicionista ‘Reação Republicana’. Como presidente do Clube Militar, ele promovia banquetes no local a fim de angariar fundos para a campanha.

As cartas davam a entender que Arthur Bernardes estava irritado com a atitude de Hermes, e o teria chamado de “sargentão sem compostura” à Epitácio Pessoa,  numa das cartas, depois descobertas que eram totalmente apócrifas.  Ao mesmo tempo, pedia que o presidente fizesse alguma coisa “àquela canalha”.

O grande problema é que, se as relações entre Epitácio e as Forças Armadas já estavam estremecidas. Afinal, numa atitude que não se via desde o Segundo Reinado, Pessoa nomeou civis para as pastas militares – Afonso Pena na Marinha e Pandiá Calógeras, que nunca tinha participado nem de um tiro ao alvo em mafuá, no então chamado Ministério da Guerra. Para os militares, isso era um acinte, um absurdo, um ultraje.

Agora, de forma intempestiva, o seu candidato chamava Hermes, um luminar do Exército, amado por todos os jovens tenentes como um símbolo de resistência antes aquele estado das coisas, um governo que traiu os ideais da República em favor do clientelismo e da corrupção e violência o chamava, da maneira mais surrealista possível, de “sargentão sem compostura”.

Até que descobrissem a autoria das cartas falsas, o Correio fez ampla cobertura do corolário dos acontecimentos, e o resto da imprensa carioca, inclusive as revistas, como o Malho, publicavam charges a respeito do assunto. E, como se pode imaginar, a última coisa que a imprensa queria saber era se elas eram falsas ou não.  Afinal, porcausa do escândalo, muitos jornais vendiam exemplares aos milheiros. O fato ocorreu em outubro de 1921. Até o ano seguinte, muita água correu e não foi para apagar o rastilho de pólvora.

Então, no calor dos acontecimentos, Freire Júnior escreveu a cálida e brincalhona marchinha, que deu para Bahiano, então um dos mais famosos cantores do país, dos tempos da aurora da fonografia no Brasil. A letra é esta:

Zé-povo quer a goiabada campista
Rolinha, desista, abaixe essa crista
Embora se faça uma bernarda a cacete
Não vais ao Catete!
Não vais ao Catete!

Ai, seu Mé!
Ai Mé Mé!

Lá no Palácio das Águias, olé
Não hás de pôr o pé
O queijo de Minas está bichado, seu Zé
Não sei porque é, não sei porque é
Prefira bastante apimentado, Iaiá
O bom vatapá, o bom vatapá

O primeiro verso é referência a Nilo Peçanha, o candidato da ‘Reação...’, que era natural de Campos, Rio de Janeiro, a terra da “Goiabada Campista”. O embora se faça uma bernarda a cacete, não vais ao Catete”. A rima, genial, combina de forma genial com a expressão “bernarda” (motim) com o duplo sentido de falar do sobrenome do candidato governista. Depois, fala que o “queijo de Minas está bichado”, outra referência a Bernardes, que era mineiro.  

A relação com vatapá pode fazer referência a um tipo de comida muito popular no Rio, ou seja,prefira vatapá ao queijo mineiro. Ou seja, a marchinha é eivada de referências à Bernardes, fechando com o refrão, “Seu Mé”, seu apelido, porque ele era considerado “cara de cabrito”. Lá no Palácio das Águias, o outro nome para o Palácio do Catete.

A canção, junto com o episódio das cartas falsas serviram para causar um grande estrago na candidatura governista, vencedora de largada, num país de eleições "de cabresto", abertos, sem partidos populares e sem comícios. E o sucesso da marchinha mostrou que o “Zé  povo” (pelo menos quem não podia votar, já que as eleições eram patrioticamente viciadas, como se sabe). 

De qualquer forma, as duas coisas galvanizaram um ódio enorme (e popular) à Arthur Bernardes – tanto que, quando ele foi em campanha ao Rio, foi vaiado o tempo todo e em toda a parte. Até quem não gostava inticava com Seu Mé. E o pobre diabo naturalmente era obrigado “Ai seu Mé” até durante os sonhos. Mesmo que muitos não votassem, sua imagem ficou bastante prejudicada, e esse descontentamento, com a música, ganhou as ruas durante o tríduo momesco e caiu na boca do povo.

As cartas e “Ai seu Mé” e a cisão entre os militares e o Catete levaram ao famoso e dramático levante de 1922. Marcado para o dia 5 de julho, ele foi desenvolvido secretamente, por boa parte da oficialidade da Escola do Realengo, então considerada mais politizada do que a da Praia Vermelha. Ás vésperas do levante, Siqueira Campos, o gatilho mais rápido do Forte de Copacabana, disse a Hermes que, em seu nome, iria haver uma revolta, envolvendo o Forte, a Vila Militar e a escola do Realengo.

Entre nervoso e irritado, Hermes não deixou Campos falar. Respondeu que não queria o levante de forma alguma. Depois, percebeu que não podia fazer nada. Mas o ex-presidente tinha uma relação íntima com o Forte de Copacabana: ele foi seu idealizador e quem colocou uma bela e moderna artilharia lá. Além do mais, seu filho, Euclides, estava lotado lá.

O filme O país dos Tenentes romanceou as cenas dos levantes da Vila e do Forte. Quando os tenentes prenderam seus superiores e deflagram a revolta, começam a cantarem coro: “ai, seu Mé, ai, seu Mé, lá no Palácio das Águias, olé, não hás de pôr o pé”. Não sei se isso aconteceu de fato (Hélio Silva, que escreveu o famoso 1922: sangue na areia de Copacabana, e narra o episódio com riqueza de detalhes, não menciona o fato), mas pode ter ocorrido. Isso é a mais pura verossimilhança.

O resto todos sabem: os levantes da Vila e em Realengo foram desmanchados a tempo. Ficou o Forte de Copacabana lá, impávido e sozinho, reinando diante do mar,  totalmente armado e cheio de minas na parte superior,  prontas para levar tudo pelos ares. Na revolta solitária, os tenentes lá lotados, (entre eles Mário Carpenter, Eduardo Gomes e Siqueira Campos), bombardearam anunciando a revolta; chegaram a bombardear o navio São Paulo que, vigiando a situação distraidamente, ficou na alça de mira do canhão de Siqueira, que também chegou a atingir vários alvos no centro do Rio, matando muita gente.

Sitiados, com várias peças de artilharia danificadas, eles resolveram sair em marcha e enfrentar mais de 3 mil legalistas, que os esperavam ao longo da praia. De todo o grupo de oficiais, restaram uns trinta. O restante resolveu enfrentar a caterva de Epitácio e Calógeras, na avenida Atlântica.

De peito aberto, repartiram uma bandeira do Brasil em pedaços, e cada um carregou um com eles. A que estava reservado a Euclides, que foi preso ao sair para tentar uma quixotesca rendição, foi dada a um civil que era amigo de Campos e de outros oficiais. Simbolicamente, ele foi o civil que representou sem querer o “Zé povo” da marcinha.  Otávio Côrrea, o ilustre civil, era filho de estancieros da fronteira do Rio Grande do Sul.

Depois de várias pândegas na Europa, ele voltou à terra natal desencantado em retornar à Jaguarão e à lide campeira, e sem poder permanecer na França, devido a um dueloem que se meteu, perdendo o passaporte, a contragosto ele voltou ao Rio. E resolveu fazer uma gauchada com os oficiais do Forte. Ele é o homem de chapéu que aparece nas fotos históricas de Zenóbio da Costa depois publica das em O Malho.

Assim como Canudos, na famosa frase de Euclides da Cunha, o Forte não se rendeu. Desceu a Atlântica e enfrentou os legalistas. Foram alvejados um a um, como patinhos num triste e heroico tiro ao alvo de mafuá. Muitos foram morrendo pelo caminho, pela areia, onde se escondiam para atirar como livre-atiradores. No fim, os 18 foram vencidos, poucos sobreviveram. Siqueira Campos, mesmo levando um balaço no ventre, sobreviveu. O civil, Otávio, ferido gravemente, morreu horas depois, no hospital. Eduardo Gomes também teve ferimentos graves.  

No fim das contas, “Seu Mé” pôs os pés no Catete, impôs ferrenha censura á imprensa e,  por pura implicância e desfeita, acabou com a divertida cantoria da marchinha de Freire Júnior.




Referências

Afonso Licks. Octávio, o civil dos 18 de Copacabana. Quattro Projetos, 2016.
Hélio Silva. 1922: sangue na areia de Copacabana, Civilização Brasileira, 1964.
Marly Rodrigues. O Brasil na década de 20. Ática, 1997.
Ruy Castro. Metrópole à beira-mar. Companhia das Letras, 2019.


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