Wednesday, October 29, 2014

No tempo da Fita





As de 90 eram as melhores (mas rebentavam sempre)




Gurizada que hoje baixa música na Internet não sabe o que foi aquele barato de ser piá nos anos 70/80. Naquele tempo, a gente não tinha acesso aos últimos lançamentos de discos e sequer tinha condições de comprar vinil, com aquela mesada que mal dava para conciliar entre o último gibi do Pato Donald ou as figurinhas do álbum.

Meu pai me deu um radinho de pilhas azul Motorádio, eu fazia escuta de madrugada. Isso foi em 1982, eu morava em Curitiba. De noite, pegava a Mundial do Rio de Janeiro e as emissoras do sul de madrugada, quando o sinal era mais fácil de pegar.

Sempre preferi o rádio a tevê. Talvez porque gosto de ouvir música, qualquer música. Depois, quando herdei um rádio-gravador CCE, comecei a gravar programas.

Era o auge do FM. Agora já estava em Porto Alegre. Isso é impensável hoje, quando a faixa da frequência modulada serve de plataforma para difusão de canais do éter para o celular mas, naquele tempo, rádio musical dava dinheiro. A gente aprendia a conhecer música garimpando emissoras pelo dial afora, pedia os lançamentos e flashbacks e gravava muita coisa.

Não existe nada mais obsoleto do que uma fita cassete. Mas, para a minha geração, era a única forma viável de podermos montar uma database sonora. Eu fazia seleções de músicas. Ou então sempre tinha aquela fitinha onde havia aquela determinada música que gravou inteira durante uma meia hora de programação da Atlântida ou da Ipanema. Não tinha como apagar. O jeito era arranjar mais fitas. Eu tinha saco delas.

Eu era aquele que enchia o saco do Nilo Cruz nas madrugadas do "Voo do Morcego" pedindo sempre a mesma "Sultans of Swing". Tenho certeza que até hoje ele deve se lembrar de mim pentelhando ele e o operador, pedindo sempre Dire Straits. Isso que, naquelas priscas eras, a banda do Mark Knopfler não era a queridinha das rádios daqui.

Eu pagava o preço de gostar de rock'n roll numa época que isso era coisa de tio. Não havia nada mais defunto que pedir Hollies, Animals, Stones da antiga ou Beatles nos anos 80. Hoje ouve-se de tudo mas, há trinta anos atrás, era tabu. O que tocava nas rádios ditas "jovens" era Crowded House, Duran Duran, New Order, Christopher Cross, Dan Fogelberg, Culture Club, essas coisas. Só syinth-pop. O que tocava todo dia era "True" com o Spandau Ballet.

Eu odiava tudo isso, queria que as rádios tocassem Beatles. Eu ligava e eles diziam que tinham em elepê, mas que as bolachas estavam arranhadas (o que devia se verdade). A alternativa eram a Capital FM ou a Felusp, que não tinham "jabá". Lembro do Johnny Mathis e do Nico Fidenco na Capital, e de escutar um vinil inteiro do Gerry and the Pacemakers (com um chiado horrível) na Felusp. Tempo que se fazia FM para escutar.

Tinha sempre aquela música que a gente gostava e não sabia o nome. "Classic" com o Adrian Gurvitz, por exemplo, era uma daquelas tipo Antena 1 que eu tinha em fitas, e só fui saber quem cantava depois e velho. Isso era muito comum.

Tinha uma fota que era uma mistura de coisas. Era uma TDK roubada do meu pai, apaguei umas Maria Bethânia dele e gravei músicas da Ipanema. Lembro que o lado A tinha "Infinita Highway", "Luka", gravados inteiras da Atlântida, "Love Me Tender" e "Lay Lady Lay" da Capital.

Essas eu havia gravado por acaso. Mas eu vivia ligando para os locutores prá pedir música. Era chato, mesmo. Pedia música na Universal, mas era ruim, eles só tocavam jabá. Ficava na Ipanema. Tinha o charme de poder influenciar na programação porém, na maioria das vezes, eu queria sempre alguma coisa que não tinha como achar. Fora coisas que eles nem tinham na discoteca. E coisas que eram "banidas", ou seja, não faziam parte da programação.

Nos anos 80, não dava prá imaginar que, como nos dias de hoje, era só ouvir, buscar na Internet e baixar (ou ripar do Youtube). Prá piorar, muitos artistas de rock em geral não eram lançados no Brasil ou os discos estavam esgotados há décadas. Hendrix, por exemplo, era algo que eu via na tevê, mas não tocava em rádio. Os discos estavam fora de catálogo. O que salvava era aquele disc-jockey que era tipo o falecido Big Boy: tinha uma mina de ouro em sua discoteca particular, e tocava os venenos no ar.

A Ipanema tinha um programa (apresentado pela Kátia Suman) chamado Base Sonora, domingo às 19h. Cada programa era um álbum clássico. Esse era o tipo de programa que nos salvava. De repente, rolava um Freak Out! ou um Autobahn e era a chance prá gravar. Rolava a bolacha toda, sem vinheta. Era a vitória da turma do classic rock contra o jabaculê (embora a gente curtisse um Duran Duran mas não falava nada, ouvia escondido mesmo).

O FM brasileiro é uma invenção carioca. Nasceu com a Eldopop 98,1 FM nos anos 70, quando o imperialismo da frequência modulada ainda não ameaçava o AM. Como a Eldo funcionava em caráter experimental, eles tinham carte blanche prá tocar a vanguarda da época, o rock progressivo. Era música escapista, e que se encaixou com o perfil do ouvinte jovem do começo dos anos 70.

Desbundado, ele podia achar no FM experimental da Eldopop a trilha sonora prá ficar drogado. Nos anos 80, o FM "profissionalizou-se", oa desbundados foram ouvir outra coisa, e apareceram as FMs comerciais e ouvinte como nós.

Mas o fetiche do ouvinte arte-pela-arte de rádio, esse nasceu no tempo da Eldopop e, de mãos dadas com o que foi o boom da indústria fonográfica, as rádios viveram uma vida saudável e próspera enquanto o esquema das gravadoras tinha paralelo com a produção de discos. Tanto é que, com o advento da Internet, o CD foi morrendo aos poucos - até a morte absoluta, nos anos 2010. Com isso, morreram abraçados no mesmo transatlântico o disco comercial e a rádio musical.

Toda aquela postura, aquela aura de transgressão, aquela cumplicidade dos ouvintes com os disc-jockeys morreu. O que se vê hoje e o locutor comercial metido a tudo, menos disc-jockey, sem o fetiche do expedicionário musical, como nos tempos de um Big Boy, um Beto Roncaferro. As rádios FM hoje só repetem news radio para celulares. E a internet criou uma geração de ouvintes de Winamp players, egoístas e pedidos em si mesmos.

Não quero parecer saudosista: apenas exponho os fatos. Aquela integração que existia há, vamos dizer, trinta anos atrás (até menos), por mais troglodita que fosse aquela tecnologia e a forma de contato entre ouvintes, parecia funcionar mais. Parecia algo mais autêntico, mesmo que falho, porque, a despeito do problema de acesso às músicas, havia uma certa referência. Hoje (não quero ser saudosista) todo mundo fala com todo mundo e ninguém sabe nada, ninguém se entende. Acabou-se o ritualístico. Alguém vai ficar com saudade da Usina do Som ou do Last FM daqui a vinte anos?

Aquele rito de ligar na rádio, naquele programa (hoje não tem mais programa "programa", só programa Não sei se me entendem)). Aquele ritual de comprar o disco, chegar em casa, pôr o disco na vitrola e roubar o úisque do papai prá tomar escondido ouvindo aquele vinil.

Enfim, não quero acreditar que tudo passou, que certas coisas na vida morrem para sempre e apodrecem em nós sob a forma de uma doce memória. Prefiro pensar que estou ficando velho e irremedivelmente chato.


Friday, October 24, 2014

O inocente banho de tanque

Quando era criança, um dia muito quente podia representar um refrescante banho de tanque no fim da tarde. Era com alegria imensa que eu entrava no tanque de concreto que existia na minha casa no bairro Santana. A água gelada era apenas sentida em um primeiro momento, porque depois era só diversão.
Falo isso porque tive que conviver com o banho de tanque na manhã de hoje, algo que jamais pensei ser possível na altura dos meus 48 anos. Uma pequena reforma no meu banheiro impossibilitou o banho tradicional de chuveiro por 24 horas. Restou-me o impensável tanque que fica na área do meu apartamento.
A água estava fria, mas a alegria não estava lá. Os tempos são outros, a vida já não é mais sem as preocupações infantis. Também lembrei que é muito difícil ver cenas dessas nos bairros tradicionais. Moro no Menino Deus, que cada vez mais está sendo ocupado por prédios de apartamentos, acabando com as casas tradicionais. Ali, criança nem sai mais de casa. Não as vejo na rua jogando bola, brincando de pegar, jogando taco. Tem muito carros por causa do Hospital Mãe de Deus. Tem moradores de rua cobrando pelo estacionamento gratuito em área que não é Azul.
A exceção é uma casa de madeira, a única do bairro, de gente pobre, honesta e trabalhadora. São os netos da dona Pondonga, que jogam bola na calçada no final da tarde. A bola, por sinal, é velha, surrada e, acho, até furada. Mas os guris nem se importam. O que vale é a diversão, o sonho de ser o jogador de futebol que faz gols e não aquele que ganha somas estratosféricas. A criança não pensa no dinheiro, em sair da pobreza, quer é fazer gol, fazer a defesa fantástica, correr para a galera, ser aclamado pela torcida.
A inocência da criança, o descompromisso com o futuro, a alegria da diversão. Lembrei disso tudo em um banho que durou poucos minutos, na bica de um tanque de concreto.

Tuesday, August 19, 2014

A Odisseia de Dyonélio


Dyonélio Machado

Em Os Ratos, obra-prima do escritor gaúcho Dyonélio Machado (1) (publicado em 1935) Naziazeno precisa arrumar cinquenta e três mil réis para poder saldar a dívida com o leiteiro, alimentar o filho recém-nascido e, de quebra, pagar o conserto do salto do sapato de sua senhora.

Li o livro algumas vezes e, sempre que o releio, imagino com ele a Porto Alegre que ele ambientou em suas história, a Porto Alegre de 1935.

Dyonélio parece narrar a odisseia quixotesca de seu herói suburbano como com uma "câmera-na-mão" (algo que Erico Verissimo faria, anos mais tarde, em Noite), eu posso fantasiar a cidade naquele dia fatídico.

Mesmo que ele não mencione a capital de forma ostensiva, além de moldura para o romance, ela é quase uma personagem coadjuvante - como Josué Guimarães em Camilo Mortágua (que, aliás, foi motivo de um antigo post meu por aqui).

Às vésperas do Estado Novo, em 35, Porto Alegre era ainda uma cidade liliputiana de 272 mil habitantes, cujo comércio ficava concentrado na rua da Praia; a maioria dos bares ficavam na volta da praça Quinze e Mercado Público que, ao contrário de hoje, mantinha parte de seus estabelecimentos abertos 24 horas ao dia.

Naquele tempo, o umbigo da cidade era o Largo dos Medeiros, entroncamento da General Câmara com Rua da Praia. É que a quase totalidade de escritórios comerciais, tabelionatos e bancas de advogados ficavam na Ladeira.

Quando a tarde caía, todo esse pessoal ia parar nas mesas dos cafés do Largo (Schramm, Central, Café América), que ficavam entre Andradas e Sete de Setembro. O Shramm inclusive tinha um mezanino e um segundo andar, onde funcionava um café-cantante.

No Largo, aquela populacha admirável era, quase sempre, formada de uma variada plêidade: dsdee funcionários públicos, assessores políticos, tabeliães, advogados (muitos rábulas), pequenos comerciantes, muita gente de rádio, repórteres(todos os jornais ficavam a poucas quadras do Largo, como o Diário de Notícias)se misturavam com rufiões, apostadores (naquele tempo, o turfe era mais popular que o futebol numa Porto Alegre que tentava imitar Buenos Aires).

Quando a noite chegava, o público se dispersava, ou indo para os lados do Mercado para algum rega-bofes no Clube do Comércio (para os abastados) Chalé, no Gambrinus ou no Treviso (no tempo em que se bebia chope) ou rumava para os bas-fonds do high-life, como o que ainda sobrara do malfadado Clube dos Caçadores, na Rua Nova (hoje a Andrade Neves) ou para o baixo meretrício - Pantaleão Telles ou Cabo Rocha.


Essa é a flora e a fauna de Os Ratos. O título, aliás, tem um quê de prosopopéia. Naziazeno e seus compadres tentam arrumar o tal dinheiro como um bando de animais famintos, apalpando e farejando a cidade inteira em busca de algum morlaco: vendendo, comprando, pedindo emprestado.

Podemos traçar Naziazeno em sua odisseia urbana. No capítulo 3, ele pega o bonde para o Centro. Pelo trajeto (que passa por uma praça), imagino que ele venha dos lados da antiga margem (hoje Gen. Salustiano, no borco da península.

Nos bares do Mercado, procura Duque, agiota cujo "escritório" são as mesas dos cafés. Oito e meia, ele vê a torre da Prefeitura.

Não acha Duque, procura certo "diretor" em algum prédio do serviço público municipal. Vê um cargueiro alemão no Cais. Do Paço, enxerga o alto da Igreja das Dores (até então, a maior construção do Centro).

No capítulo 5, volta ao Mercado sem achar nenhum contato.
Dyonéio diz: "é a segunda vez que consulta o relógio da Prefeitura (...) esse relógio, lá no alto, parece-lhe uma cara redonda e impassível".

No 6, encontra Alcides, um amigo que o aconselha a jogar. Rumam do Mercado para o Café Nacional, no Largo. Já no 7, distraído, vai para os lados das Dores, passar por um briquebraque (cujo nome não menciona - mas certamente trata-se do Ao Belchior (o dono era o português Joaquim da Cunha que, durante muito tempo, manteve um comércio onde hoje fica o prédio do antigo Cine Cacique). Vê uma antiga espada na vitrine.

No retorno, ao meio-dia, encontra o tal contato, um diretor da antiga Secretaria de Obras Públicas, que nega-lhe um empréstimo. Reencontra Alcides no Centro, que propõe que vá cobrar um cliente (um "corretor da Rua Quinze", ou seja, da hoje José Montaury. Na época da escritura do livro, el ahavia sido recém aberta com a construção do Viaduto da Borges de Medeiros, cuja artéria ligava, pela primeira vez, o Mercado com a Ponte de Pedra, como uma perimetral) seu; de quebra, teria o dinheiro.

Naziazeno terá que encontrar o homem em casa, numa certa "Coronel Carvalho" (p.57). Hoje, ela é a atual André Puente, paralela à Independência. Naquele tempo, o bairro era afamado (como dizia minha avó) pelos palacetes de grandes patriarcas de gado que aportaram na capital.

Já a Coronel Carvalho, como diz Sérgio da Costa Franco, num famoso livro de referência sobre Porto Alegre (2) ao contrário de hoje, era um beco que coomprendia a última quadra, na altura da hoje Ramiro Barcelos. Anos depois é que ela seria finalmente aberta em direção ao bairro Floresta até a Santo Antônio.

Nosso herói foi ter com o homem, que disse não saber da cobrança, que isso era com outro sócio do esquema. Depois de subir toda a Independência, Naziazeno volta de mãos vazias para o Largo em busca de Alcides.

Não o acha. Procura então o tal sócio e vai cobrá-lo num banco "da rua Sete" (de Setembro). É possível que, pela descrição de Machado, trate-se do antigo Banco Nacional de Comércio, na esquina da Ladeira mas, mais possível(mente) a antiga Caixa, cuja porta ficava para a Sete, na frente da Delegacia Fiscal (o Margs), prédio erguido em estilo eclético pelo arquiteto alemão Theo Wiederspahn no começo do século passado, já demolido.

O homem estava em viagem. Naziazeno volta a buscar Alcides. Finalmente o encontra, no fim do capítulo 10. Seu amigo recomenda procurar um certo Sr. Conti, nos altos da Ladeira com a Ponte (Riachuelo) "pouco antes da Biblioteca" (p.71).

Como diz Sérgio da Costa Franco, pela sua vizinhança no antigo Foro e no Tribunal, na Praça da Matriz, desde o século XIX, a Ladeira era a mais procurada para escritórios e cartórios desde o tempo do Ouvidor, "pista de carreira de advogados que galopam entre o alto e o baixo Foro, passarela de magistrados, escrivães, requerentes e meirinhos".

No caminho, Dyonélio narra: "na primeira esquina, na intersessão de uma travessa conhecida como centro da jogatina, dos cabares e das pensões chiques" (p.74). Ora, como se sabe, a travessa não citada é a Andrade Neves do tempo que chamava-se Rua Nova.

Como diz Sérgio da Costa Franco, até os anos 40, ela era um beco sem saída aberto pela Ladeira. "centro da boemia, de pensões alegres e cabarés, entre os quais, o Clube dos Caçadores" (que ficava onde hoje fica um estacionamento atrás do Centro Cultural Erico Verissimo) , só foi aberta nos anos 40, com o prolongamento das obras da avenida Salgado Filho, aberta para escoar o fluxo cada vez maior de bondes para a zona central da cidade.

(um parêntese: só o Clube dos Caçadores merecia um livro sobre, principalmente por toda a história social e política a qual o insigne lugar esteve vinculado, no primeiro quartel do século 20. A despeito da fama, o Caçadores não agenciava prostituição de alta roda. Apenas cedia o espaço para encontros. O capítulo O Deputado, do primeiro tomo do Arquipélago, do Erico Verissimo, ambienta o deputado Rodrigo Cambará numa de suas estrepolias nos Caçadores, pouco antes da Revolução de 23)

Naziazeno não acha o tal advogado, mas pecha com um amigo dândi. Ele o ataca e consegue cinco mil réis emprestado "até amanhã". Mesmo com fome, dirige-se a uma tabacaria "ao lado do Nacional" (no Largo) e resolve torrar o dinheiro no jogo.

Depois de torrar a grana, no Capítulo 14, desce até "pavilhões compridos" na área do Porto na tarde vazia das ruas do Centro. Sabe-se que havia muitos desses pavilhões onde hoje fica a Siqueira Campos na altura do Majestic (Casa de Cultura Mário Quintana desde 1991). Noutro escritório, regateia outro empréstimo, que lhe é negado.

Contudo, na página 99, Dyonélio faz referência à "docas em construção". Logo, é possível imaginar que trate-se do outro lado do cais onde, à época, era realizada a continuação das obras para os lados da Avenida Júlio de Castilhos. Ou seja, toda a extensão entre o rio e a Mauá correspondem a um aterro que estava sendo realizado naquele momento dafeitura de Os Ratos. Num trecho, o autor nos descreve o ocaso em Porto Alegre:

"A cidade se recorta sobre avermelhada que tem o céu para os lados onde está se escondendo o sol. O semicírculo do horizonte que Naziazeno abraça com o olhar está pesado de vapores. O rio, que reflete a batalha das cores escuras e claras lá do céu , tem um movimento lento e espesso de óleo. Bem à direita, lá longe, quase sobre as ilhas baixas, as sombras dos grandes navios ancorados no largo cavam buracos pretos na água grossa"

No começo do 15, Naziazeno vê uma certa casa "Azevedo". Segundo Sérgio da Costa Franco, esse estabelecimento pertencia ao Comendador Azevedo, um dos fundadores do Banco Nacional de Comércio e grande comerciante da cidade.

Na página 102, Dyonélio descreve uma cena na rua Santa Catarina. Hoje ela é a Dr. Flores. Naquele tempo, ela terminava na Voluntários da Pátria, na margem do rio, antes do aterro do cais Marcílio Dias - o que leva a crer que ele foi para os lados da Viação Férrea e não do Majestic.

"Através da praça e dos arbustos lá do fundo" (p.103) diz o autor, referindo-se com efeito para a Otávio Rocha, já que arremata a vista do antigo Hotel Sperb, na subida para a Andradas.

No 20, nosso herói retorna de mãos vazias ao Mercado, onde encontra Alcides e Duque. Ambos citam um agiota (Rocco) na rua Paissandu, hoje a Caldas Júnior, a próxima parada de Naziazeno. No retorno para os lados da Alfândega, passa pela vitrina do Ao Belchior e vê novamente as torres das Dores.

O homem não empresta, logo a triste embaixada de roedores sociopatas vai ter com um certo Fernandes, para os lados da rua Clara (João Manoel). Nada de dinheiro. Voltam. Por sugestão de Duque, Alcides decide especular reempenhando um anel de doutor (que não é dele obviamente).

Capítulo 18 (até o 21, o melhor do livro): a casa de penhor, como não podia deixar de ser, ficava na Ladeira. Já noite, o trio pega a peça e parte para outro penhor, para outro lado, dos lados da rua do Rosário (Vigário José Inácio).

Mesmo regateando, não conseguem empenhar o anel. Só com um certo Mondina, que lhes adiantaria o dinheiro mediante recibo de empenhar o anel e devolver-lhe a quantia: finalmente conseguem efetuar a transação.

Dyonélio descreve o ambiente num café (no Largo?)

"São quase oito horas (...). Pequenos grupos de homens vêm aparecendo nas portas, vêm entrando devagar. Outra fase na vida da cidade se inicia. A noite refrescou. (...) na mesa ao lado deles lê tranquliamente um jornal".


Notas:

(1) Os Ratos, Dyonélio Machado. Ed. Planeta, 2004
(2) Porto Alegre: Guia Histórico. Ed da UFRGS, 1988

Thursday, August 07, 2014

O Telefonema


Teté


Existem muitas histórias curiosas a respeito de José Francisco Duarte Júnior, o Teté. Considerado um dos maiores treinadores gaúchos de todos os tempos, muitos lembram de várias anedotas envolvendo aquele que foi comandante do Internacional por quase toda a década de 50. Vários o consideram uma espécie de Gentil Cardoso dos pampas. Empírico, era famoso por tratar contusões de seus atletas com placebo e de inventar macumbas inenarráveis para ganhar jogos. Consta que, sempre em semana de Gre-Nal, como um sabujo, Teté andava com o sobrolho carregado pelas esquinas do antigo estádio dos Eucaliptos, procurando algum despacho deixado pelos arredores por alguém das hostes inimigas, com o intuito de "amarrar" o seu time.

Foi numa dessas semanas de clássico que essa história aconteceu. Meados da década de 50. Os jogadores estavam todos concentradísismos no fortim da rua Silveiro (ou Silvério, como alguns insistem em dizer) desde a quarta-feira. Teté não deixava nada passar. Quando não caçava despachos pelas esquinas do Menino Deus, estava controlando todos os passos dos seus pupilos, inclusive fiscalizando telefonemas. Todos deviam ficar incomunicáveis.

Na sexta-feira, logo pela manhã, toca o telefone nos Eucaliptos. Sem querer se identificar, um sujeito muito ansioso queria porque queria falar com o goleiro La Paz.

- Ele não pode falar, está concentrado - explicou Teté. - Se você quiser, me diga o que você quer falar com ele que eu passo o recado.

- Mas eu preciso falar com ele urgentemente.

- Não pode, já disse.

- Mas eu preciso.

- Desculpe, eu não posso deixar você falar com ele. Só recado.

- Mas é pessoal. Eu preciso urgentemente falar com ele.

Uma hora depois, toca o telefone. Era o mesmo sujeito de antes.

- Mas afinal de contas, com quem eu estou falando? - quis saber Teté.

- Não posso dizer - respondeu o anônimo. - Só posso dizer que é um amigo do La Paz.

Por toda a sexta-feira, o homem continuou atazanando - certamente na esperança que outra pessoa atendesse e, dessa forma, pudesse falar com o arqueiro colorado. Mas de nada adiantou: obcecado, Teté passou o dia todo montando guarda em frente ao aparelho. O treinador atendia e tentava em vão fazer com que o homem pelo menos desembuchasse o nome.

As ligações continuaram no sábado, o dia todo. Nem Teté liberava o telefone para La Paz, nem o homem, cada vez mais angustiado ("mais angustiado que barata de ponta-cabeça", como se diz lá na Campanha)do outro lado da linha, dizia quem era ou do que se tratava aquela tal "urgência urgentíssima".


- Mas quem é o senhor? Que coisa mais estranha. Afinal de contas, por que essa insistência toda? - queria saber o comandante do vestiário alvirrubro.

- Não posso falar, seu Teté. É só com ele!

Domingo de manhã, faltando horas para o jogo, o homem insistia. O treinador do Inter estava nas últimas. Quando atendia o telefone, olhava com o rabo dos olhos para os dirigentes que, naquela altura, pareciam almas penadas quietas observando aquele teatro do absurdo.

- Eu preciso falar com o La Paz! Eu preciso falar com ele! - bradava o anônimo.

- Mas eu dou o recado para ele - insistia Teté.

- Não, não não!!! Tem que ser com ele.

- Não posso, meu senhor.

- Escuta, seu Teté, eu sei que o senhor é um homem justo. É particular, eu tenho que falar com ele, e é só com ele mesmo. O senhor não pode abrir uma exceção para mim? Por favor, seu Teté, eu lhe peço, eu lhe rogo, seu Teté!

- Não.

- Mas seu Teté, eu vou até o muro, ele não precisa nem sair da concentração, eu vou até o muro da Dona Augusta e eu falo com ele, é rapidinho, seu Teté. é rápido e ele depois pode voltar lá prá dentro.

Na hora do almoço, o homem liga para o telefone dos Eucaliptos.

- Por favor, seu Teté!

- Escuta aqui, moço, por favor digo eu. Aqui quem manda sou eu. Eu já te disse que eles estão sob a minha responsabilidade. Tudo o que acontecer com eles é responsabilidade minha, ninguém vai passar por cima de mim, ouviu? Tudo que acontecer aqui para o bem ou para o mal, quem vai ter que arcar com as consequências sou eu. Então, eu não posso, de maneira nenhuma, deixar os meus jogadores correrem risco nenhum, entendeu? Isso é mais difícil para mim do que para você. Se você quiser, eu passo o recado para o La Paz, eu me responsabilizo pelo sigilo da informação se é de cunho pessoal, não precisa se preocupar. É o que eu posso fazer por você.

- Tudo bem - respondeu o homem, vencido do outro lado da linha. Mas o senhor me promete que dá o recado para ele?

- Prometo - insistiu Teté.

- Pois diga prá ele que já tá tudo acertado, conforme o combinado, viu° Tá tudo certo. Tchau.


Friday, July 18, 2014

Dizzie e "Kerouac"


Bird e Diz


Lembro-me que tive em vinil um disco, chamado Legends Masterpieces (Best Tracks Remastered) do Dizzy Gillespie. Lançado pela Underground Inside Records, é uma colcha de retalhos, com gravações ao vivo. Bem ao estilo dos discos de Bebop da época, o show é captado de forma rudimentar. Em vinil até soa bem com bastante chiado. Contudo, na versão digital, o som fica frio e destituído de graves.

Sempre me chamou a atenção uma faixa, intitulada "Kerouac". Todos nós sabemos da importância do jazz na formação literária do autor de "On the Road". Mas o fato de existir uma faixa composta pelo papa do Bop como uma homenagem ao escritor beat, isso me fez tecer um rosário de hipóteses que levassem a alguma relação pessoal entre os dois. Relação essa que, por incrível que pareça, nunca existiu de fato.

Kerouac escreveu muito sobre jazz, falou que viu Mingus no Minton e outros músicos do gênero bem no auge, no fim da 2ª Guerra Mundial. Mas essa faixa em especial me levou a crer que Gillespie e Jack se conhecessem. Ledo engano. Na verdade, eu só fui descobrir a história por detrás da faixa muito tempo depois, quando achei o livro Alma Beat (coletânea muito boa, por sinal, infelizmente fora de catálogo há bastante tempo e difícil de achar em sebos), da LPM, esquecido no acervo da Biblioteca do Campus do Vale. A explicação está em um dos ensaios da obra: Beats e Jazz, do Roberto Muggiati.



A história é a seguinte: Dizzie e Kerouac nunca se conheceram pessoalmente e Jack ainda não era o célebre escritor. Naquele tempo, ele não passava de um entusiasta do Bop de 19 anos. Tudo começou quando um pioneiro de gravações do estilo, Jerome Newman (1918-1970), amigo de Kerouac, começou a frequentar inferninhos suarentos de jazz em Nova Iorque com um gravador de rolo. Com um acervo em mãos, decidiu fundar um selo, a Esoteric records.

A gênese do nome da faixa é um expediente típico do Bop. Era comum que intérpretes fizessem paráfrases de canções obscuras ou até funestas - ou simplesmente standards da canção norte-americana. Por exemplo, você pegava algo como "Ain't Misbehavin'" e fazia centenas de variações em cima de uma célula musical. O tema ficava tão desfigurado que poderia ser considerado uma nova canção. Então alguém inventava um título qualquer para ela e pronto.

Mugiatti cita exemplos dessa "técnica". "Lullaby of Birdland" era, na verdade, "Love Me or Leave Me" numa recriação do pianista George Shearing, que virava um fox brilhante. Pios "Kerouac" faz o mesmo percurso. Trata-se, por sua vez, de uma paráfrase de "Exactly Like You". "Como a melodia era diferente", explica Mugiatti, "Newman, na hora de lançar o disco, batizou a canção com o nome do colega, "Kerouac". de acordo com ele, também era uma forma de não ter que pagar direito autoral aos editores.

Aliás, na época em que Newman gravava os heróis do jazz em Nova Iorque, Kerouac, seu colega do tempo da Universidade de Columbia, veio à roldão, inclusive ajudando Jerome (ou Jerry) a descolar gravações. Foi naquele ano fatídico, 1941, que Jack descobriu o Bebop, a voz guia que iria revolucionar a sua escrita a partir da elaboração de "On the Road", oito anos depois.

Wednesday, July 09, 2014

Como uma Onda


Capa do disco (inspirada no cartaz) da Bienal do
Samba da Record, 1968


A I Bienal do Samba da TV Record surgiu como um contraponto aos festivais de música da emissora. O certame, que ocorreu entre maio e junho de 1968, era um retorno ao tradicionalismo do gênero, que andava meio demodé no calor da hora dos festivais da época. Ao mesmo tempo, era a chance de que muitos intérpretes pudessem cantar "na sua própria língua" e, ao mesmo tempo, evitar a acirrada e progressiva politização dos outros festivais.

Ela também serviu para que ocorresse uma curiosa integração entre a velha guarda e os novos compositores, de Ismael Silva a Chico Buarque (na época, ainda "de Hollanda"). Numa das apresentações, a Record foi buscar em Vila Isabel a veterana Aracy de Almeida. Apresentando clássicos de Noel Rosa no palco do Paramount, ela teve que bisar três vezes. Porém, a vencedora foi "Lapinha", de Baden Powell e o jovem Paulo César Pinheiro, na voz de Elis Regina, que voltou a pontificar na era dos festivais, depois de "Arrastão", a vencedora do I Festival da Excelsior, e que moldaria o cânone das canções de certame a partir de então.

Em segundo lugar, veio "Bom Tempo", de Chico Buarque, com ele mesmo defendendo a canção; em terceiro, "Pressentimento", de Elton Medeiros e Hermínio Bello de Carvalho, com Maria Medalha e, em quarto, "Canto Chorado", de Billy Blanco, com Jair Rodrigues; em quinto, a hoje clássica "Tive Sim", de Cartola, com Cyro Monteiro. e o quinto, foi "Coisas do Mundo, Minha Nega", do Paulinho da Viola, com Jair Rodrigues.

Mas uma história que passou batido na época da Bienal, e que foi contada décadas depois por Zuza Homem de Mello (1) é a respeito de algo que não aconteceu: a participação de Tom Jobim no certame. Dentro daquele espírito de integração entre a velha e a nova geração. o compositor de "Chega de Saudade" foi convidado ao evento. Para a bienal, ele compôs uma bossa-nova, intitulada por ele "Onda".

Na verdade, Jobim tinha apenas o instrumental quando terminou a canção, enquanto trabalhava como arranjador nos Estados Unidos. Como Chico Buarque havia posto letra em outro tema seu, "Zíngaro" que passou a receber o nome de "Retrato em Branco e Preto", Tom chamou o autor da "Banda" para botar letra nesta também.

Chico matutou por dias a fio, entanto, tentando, tentando. Contudo, ele não conseguia passar do primeiro verso, "vou te contar". Tom cobrava o parceiro diariamente sobre a letra. Como é impossível pressionar as musas da inspiração, de nada adiantou: Chico desistiu, restando a Jobim a árdua tarefa (nada que ele não tivesse feito antes, com feito, no tempo de sua parceria com Newton Mendonça) de escrever os versos.

Teve tempo de enviar fresquinhas letra e música para a comissão julgadora da Bienal. O escalado para defender "Onda" não era ninguém menos que Roberto Carlos Braga. ele mesmo, o ídolo da Jovem Guarda. No entanto, no dia da primeira eliminatória, dia 12 de maio de 1968, ele tinha um compromisso inadiável: ia casar-se com Nice. Mais: naquele mesmo dia, estava embarcando para Nova Iorque, para a lua-de-mel.

A viagem, que iria se estender por mais duas semanas, acabou inviabilizando a participação de Roberto no Festival. Ou seja, além de interpretá-la e defendê-la na Bienal, Roberto Carlos poderia ter sido o primeiro cantor a gravá-la. A primazia, contudo, coube ao quarteto Vocal 004, com o título "Vou te Contar". A discretíssima gravação contou com a participação do próprio Tom, e saiu no único disco do grupo, intitulado Retrato e Branco e Preto, e que contou com aparticipação de Eumir Deodato e Ugo Marotta (que, à época, tocavam no conjunto do Roberto Menescal).

De acordo com Zuza Homem de Mello, o disco, lançado pelo selo obscuro Codil, em junho de 1968, virou um pocket-sdhow no Teatro Toneleros, em Copacabana, com a participação de Tom, Eumir e grande elenco, incluindo o malfadado parceiro de "Wave", Chico Buarque. a apresentação foi gravada em acetato e está à disposição de discófilos e curiosos da história da MPB, nos arquivos do Museu da Imagem e do Som, em duas versões: uma, instrumental com o Hepteto de Paulo Moura (que integrou o show) e a outra, com o Quarteto 004 cantando, tendo Jobim ao piano. Já Roberto desistiu de gravar "Wave" em seu disco daquele ano em favor de "Madrasta", de Renato Teixeira e Beto Ruschel (também oriunda de festival, como se sabe).

Meses depois do fim da Bienal do Samba, sairia no Brasil a versão de Tom Jobim para "Wave", no disco de mesmo nome, lançado pela A&M Records (aqui, o elepê saiu pela Fermata, subsidiária da selo de Herb Alpert) e com arranjos de Claus Ogerman. Frank Sinatra também faria o seu cover, no Sinatra And Company (arranjos de Eumir Deodato).

"Wave" iria tornar-se um standard, coverizado por vários artistas, como Stanley Turrentine, Oscar Peterson, Buddy Rich, Paul Desmond e Joe Pass (e a Sarah Vaughan!). Mas a versão que todos iriam se lembrar é a de João Gilberto, do disco Amoroso, de 1977 (também arranjado pelo mesmo Ogerman do disco de Jobim, dez anos depois).





(1) Zuza Homem de Mello. A Era dos Festivais. Editora 34, São Paulo, 2003.

Wednesday, July 02, 2014

Uma Pessoa Só




Foi destaque na imprensa, no final de junho: o Loki está comemorando 40 anos. Parece mentira. Quarenta anos! Se formos pesquisar na internet afora, vamos ver que não existe muito a acrescentar a respeito do aclamado primeiro disco solo do mutante Arnaldo Baptista, para que eu possa aqui fazer uma resenha decente com o fito de que pareça algo que não intranscenda do óbvio mais do mesmo.

Duas coisas chamam a atenção: a primeira, a longevidade do disco como cânone musical; a segunda, o conteúdo singular do álbum - e esse segundo fator, no fim das contas, está relacionado ao primeiro.

A verdade seja dita aqui: Loki perfaz aquele estereótipo do disco que estava à frente do seu tempo. Ele ficou encapsulado no tempo como obra de arte. No ano do seu lançamento, 1974, ele não tinha nada a ver com o tipo de produção fonográfica dita " de consumo" de sua época. Para tanto, basta lembrar que a música dos Mutantes estava se tornando, com a voga do progressivo, cada vez mais "difícil" e, por isso mesmo, cada vez mais anticomercial.

Como lemos na biografia da banda, a "Divina Comédia dos Mutantes", eles estavam pouco se lixando com o udigrudi, o banal e fútil que satisfaz. O que a banda queria era fazer o som deles, mesmo que a fundo perdido, como foi.

O corolário disso, como se sabe, foi a interdição do "O A e o Z". O problema não estava nem exatamente no descompasso entre o pensamento dos Mutantes e a política da gravadora, a Polydor.

Mais do que isso, o problema é que o Brasil nunca gostou de rock. O rock, ao contrário de outros países, nunca vendeu disco. É a velha história: o som dos Mutantes era para inglês ver.

Naqueles tempos bicudos, empunhar uma guitarra era sinônimo de pregar no deserto. Como dizem Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano num excelente livro (1), a partir de 1973, com a expansão da televisão, as trilhas de novelas passaram a exercer influência muito forte na formação de sucessos musicais, "impondo a maior parte das composições que integram o hit parade".

Logo, o "O A e o Z" não dançava no mesmo compasso da filosofia das gravadoras. A Polydor rescindiu o contrato com os Mutantes, o disco foi para a geladeira (ficou por vinte anos lá) e Arnaldo saiu da banda. Por ironia do destino, o selo que mais investia em trilhas de novelas, a Som Livre, talvez por conta do sucesso ainda proeminente do grupo, apostou no elepê seguinte, "Tudo foi Feito Pelo Sol".

Enquanto Sérgio Dias ainda tentava levar a barca mutante a singrar mais alguns anos pela contramaré dos anos 70, Arnaldo Baptista ficou para trás - tanto por seu purismo musical quanto por problemas pessoais.

Parece cruel exaltar uma obra que tenha nascido de uma dor explicável (ou não). Mas o fato é que, por todos os caminhos tortuosos possíveis, explicáveis ou não, "Loki" chama a atenção justamente pela singularidade de seu criador, o contexto musical e extra-musical.

A história da sua malfadada relação com Rita Lee é sempre citada como a tônica daquela tragédia pessoal que redundaria num dos maiores clássicos da música brasileira de todos os tempos. Existem várias versões (menos a de Rita), mas assim como muitos relacionam esse fator como o elemento catalisador dessa crise, outros, como Dinho Leme, não entendem dessa maneira.

A história na biografia dos Mutantes (escrita pelo Carlos Calado) mostra que episódios como o abuso de drogas por parte de Arnaldo, quanto ao seu extremo perfeccionismo, levaram ele a um abismo insuperável entre ele e a banda, e ele e Rita. Pelo que se depreeende do livro, Baptista subestimou qualquer possibilidade de separação e, quando deu por si, estava sem mulher, sem banda, sem gravadora, sem lenço e sem documento.

Quando Roberto Menescal, que era diretor musical da Polygram, reebeu a proposta de gravação do que viria a ser "Loki", ele se viu diante de uma oportunidade singular.
O célebre autor de "O Barquinho" tinha autonomia para fazer das suas - como o lançamento do Fa-tal, de Gal Costa - e agora tinha a chance de gravar Arnaldo Baptista com uma proposta surpreendente: um trabalho totalmente pessoal e à revelia do udigrudi que vendia disco.

Era um verdadeiro tubo de ensaio. É certo que falou mais alto a sua intuição. Ninguém mais, dentro do circuito fonográfico da época, seria capaz de entender aquela situação. Menescal conseguiu desdobrar a gravadora a lançar, num selo de visibilidade nacional, no tempo das trilhas de novelas, um disco que, desde o começo, estava fadado ao fracasso.

Se o ilustre leitor parar para pensar, se não fosse por Menescal, "Loki" não seria gravado - da mesma forma que, se a Polydor tivesse tomado conhecimento de do "O A e o Z" desde a pré-produção, seria outro trabalho natimorto.

No documentário "Loki", o próprio Menescal fala do que foi a gravação do disco. Arnaldo estava fragilizado e o que se pode falar do disco em si é que ele teve a chance de gravar uma inefável catarse.

O álbum, por si só, é uma pré-produção, quase a la Dylan. Quando Dinho e Liminha se davam conta, a tomada estava gravada. Baptista cortava as faixas solo, ao piano, sem partitura (como em "Honky-Tonky" que, aliás, mais parece uma peça clássica em sua concação), em canções sem refrão, e em letras que, em alguns momentos, perdem-se em tragicômicas digressões, como a nota social em "Navegar de Novo".

Se o que existe por detrás do universo poético de Arnaldo Baptsita fica perdido em hipóteses que giram em torno da sua vida particular, o que podemos interpretar já reside na forma como é a dor que somos nós quem sentimos.

Disso, é notável a sensação de abandono, de falar e esconder, de sublimar o discurso de um eu-lírico perdido, confuso, esquecido, com medo da solidão, sem saída, sem perspectiva, que ora parte para o remorso ("Desculpe"), ora cai no auto-deboche ("Vou Me Afundar na Langerie"), ora vai para a auto-imolação e o desejo de transcendência ("Não tô nem Aí") ora perde-se em desalento ("Será que eu Vou virar Bolor") ou apela para a mais lúgubre nostalgia ("Uma Pessoa Só"), na verdade, um "leftover" do do "O A e o Z".

Passados quatro décadas, o "Loki" ainda choca pela originalidade de um álbum que não encontra similar em toda a discografia musical (talvez encontre um cognato no "Pink Moon", do Nick Drake, ou não...). Sempre será difícil acreditar no que se ouve: a voz de um cantor-compositor cuja nota íntima espanta pela coragem de confessar o inconfessável.




(1) A Canção no Tempo - 85 anos de músicas brasileiras, volume 2 1958-1985 - Ed 34, São Paulo, 1998.

Friday, June 13, 2014

Uma Weltanschauung porto-alegrense


Largo dos Medeiros

Esses dias, eu subia num domingo de tarde de chuva forte Duque acima, quando cruzei na esquina do Alto da Bronze.

Fiquei imaginando que, assim como Tróia, se um arqueólogo do futuro apostasse sob as ruínas de Porto Alegre, ele iria descobrir, assim como Heinrich Schliemann, que existem várias cidades debaixo de Porto Alegre. Existe uma Porto Alegre que traz atavismos de décadas passadas. Porém, existem outras porto alegres enterradas debaixo da arquitetura presente. Cidades mortas, e enterradas, junto com seu passado, seus protagonistas.

Então lembro-me do Carlos Reverbel. Numa crônica (no Barco de Papel), ele diz que uma senhora o interpelou, na rua, para saber onde ficava a Rua da Praia. A resposta do Reverbel: “minha senhora, a Rua da Praia a senhora hoje só vai encontrar nas páginas do livro do Nilo Ruschel.

Agora, imagino que, por seu turno, nem mesmo vocês sabem do que ele estava falando, ou quem foi Nilo Ruschel. Estamos, na verdade, falando das porto alegres enterradas. Esse alumbramento só perpassa na mente dos arqueólogos.

Por exemplo. Porto Alegre teve pontos de encontro em sua história que hoje morreram e a quase totalidade dos seus habitantes sem memória, quando passam por esses locais, sequer sonham que esses locais foram, um dia, pontos de convergência de muita gente.

É o tipo de episódio que, se alguém contar, ninguém acredita. É como Tróia. Estamos falando de algo tão antigo que a gente nem sabe se realmente existiu ou se, de fato, vivenciamos aquilo tudo — tão passado e tão presente.

Cito três exemplos de lugares que ora representaram quase um Weltanschauung porto-alegrense, e você, caríssimo e jovem leitor, nem sequer suspeita do que representaram.

Largo dos Medeiros
: a esquina da rua General Câmara com a Andradas foi, durante muito tempo, a Times Square da cidade. Naquelas priscas eras— entre meados da década de 20 e final dos anos 70, o grosso do comércio chic do centro ficava ali. A partir dos anos 30, na quadra fronteiriça à praça da Alfândega, os irmãos Medeiros abriram uma confeitaria, ao lado do Cinema Central. Junto com eles, havia outro estabelecimento, a Schramm, na outra esquina. Era comum, principalmente na hora dio footing, no fim de tarde, uma aglomeração de tipos que, com o tempo, acabaram tornando-se decanos do Largo — figuras conhecidas e folclóricas do provincianismo porto-alegrense (e que já renderam a famosa trilogia literária do Renato Maciel de Sá Júnior, nos estertores da Globo gaúcha), além de políticos, futebolistas, turfistas (lembrem-se que, até os anos 50, o turfe em Porto alegre era tão popular (ou mais) do que o futebol.

O Largo dos Medeiros era o ponto ideal: para lá convergia o pessoal dos escritórios, balcões, redações (todos os jornais e rádios ficavam perto dali). O auge perdurou até o começo dos anos 60. Mais tarde, com a descentralização da área, o fim dos cinemas e das confeitarias e o advento do maldito calçadão (já na prefeitura do Thompson Flores), a turma do Largo se perdeu — se dispersou ou morreu. E, aos poucos, o próprio topônimo foi desaparecendo, até perder o sentido. Se não, faça o teste: pergunte a qualquer passante pela Rua da Praia sobre a localização do tal “Largo dos Medeiros”. Ninguém saberá dizer.

Encouraçado Butikin e a “Indepê”: quem lia diariamente a extinta Folha da Manhã, no começo dos anos 70, se deparava com notas sociais e colunas diárias da Ivete Brandalise e do Luís Fernando Verissimo versando sobre o “Butikin”. Idealizado por Rui Sommer, o bar, que marcou época em Porto Alegre, e delimitou os altos da Independência como o point da boemia bem vestida deste burgo açoriano (como diria o Reverbel), surgiu em 1966. Durou até 1972 com a direção original e rerpesentou o momento em que aquela classe média (média-alta) criou um pequeno mundo entre a Santo Antônio e a Ramiro Barcelos.
É preciso lembrar que, nos anos 60, os bairros nobres “de escol” eram, com efeito, Independência e o Moinhos de Vento (muito antes de Três Figueiras e arredores).
E ora pois, principalmente a “Indepê” (que virou a gíria das “minininhas”, como nas tiras do Verissimo, testemunha ocular da história), que foi construída pelos estanceiros que aportaram à cidade e os capitães de indústria que ergueram palacetes inexpugnáveis para além do Jardim Cristóffel. Porto Alegre era mais provinciana e liliputiana do que nunca, mas não havia nada mais adorável do que aquela boemia, que começava na Baiúca, o Teatro Leopoldina (depois da Ospa) na esquina da Garibaldi, o Whisky a Go-Go, o Joe’s (que fechou suas portas, já como uma teimoso atavismo dos tempos da Indepê só em 2010) terminava, de repente, num pocket show no Butikin. Imagine o The Sun Also Rises na Porto Alegre trique-trique rolimã. Era mais ou menos isso.

A partir do começo dos anos 70, tudo mudou. Em junho de 1972, a Prefeitura começou a concretagem do muro da Mauá e a construção do viaduto da Conceição. Para piorar de vez, o Butikin fechou as suas portas.

Esquina Maldita:
a gurizada que estuda no Campus Central hoje vai beber os seus porres politizados ou no Xiru Beer, na esquina da Avaí, ou na Cidade Baixa. Não sabem eles que, o entroncamento da Sarmento com a Oswaldo Aranha foi o point da estudantada intelectualizada ou desbundada dos anos 60 e 70. Somada à repressão do Governo Militar, os botecos que formavam a Esquina Maldita, o local virou foco de resistência ao regime e recanto da esquerda (festiva e não-festiva). Os bares eram o Alaska, o Copa 70, o Marius e o Estudantil. A maioria desses estabelecimentos morreu com a Abertura e a transferência dos cursos de Humanas para a Agronomia. Alguns viraram xerox, outros, mini-mercados. Só restou o Mariu’s que, apesar de ter a sua freguesia descacacterizada de lá prá cá, é outro atavismo daqueles anos políticos ou “anos de chumbo”, como preferem alguns. O “maldita” do nome não era tanto pela raiz política dos estudantes (na maioria homns, já que era difícil ver mulheres sozinhas por lá naquele tempo), mas mais pela aura de transgressão numa época em que duas pessoas fumando juntas podia dar cadeia, imagine conversando entre si.


Para quem quiser saber mais, não irei perder-me em digressões por aqui, pois existe, por incrível que pareça, alguma bibliografia sobre esses assuntos. Assim, respectivamente, eu recomendo, sobre o Largo, os três volumes do Anedotário da Rua da Praia (relançados pela Editora da Cidade, em 2010) e o Rua da Praia, do Nilo Ruschel (reeditado pela IEL, original da Globo, de 1971); sobre o Butikin, o Na Ponta da Agulha, do DJ Claudinho Pereira (de 2010). E sobre o Esquina maldita, um livro-reportagem que é definitvo sobre o tema, escrito pelo Paulo César Teixeira, e editado em 2012 pela Libretos.

Monday, May 19, 2014

Touradas no Maracanã


Braguinha


Maracanã, Campeonato Mundial de Futebol, dia 13 de julho de 1950. Estádio lotado ou, como diria Nelson Rodrigues, com “gente até no lustre”. Naquela tarde, a Seleção enfrentava a Espanha. Quando Chico tinha acabado de meter o quarto gol na cidadela adversária (aos onze do 2º tempo), quem estava nas arquibancadas pôde assistir a uma cena inesquecível.

Alguém começou a puxar a marchinha “Touradas em Madri”. Numa progressão fulminante, todas as 200 mil almas começaram a cantar junto:

Eu fui às touradas em Madri
E quase não volto mais aqui
Pra ver Peri beijar Ceci.
Eu conheci uma espanhola
Natural da Catalunha;
Queria que eu tocasse castanhola
E pegasse touro à unha.
Caramba! Caracoles! Sou do samba,
Não me amoles.
Pro Brasil eu vou fugir!
Isto é conversa mole para boi dormir!



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Lançada para o Carnaval de 1938, “Touradas Em Madri” foi injustiçada naquele ano. Na noite de sexta-feira, dia 25 de fevereiro, ou seja, na véspera dos festejos de Momo, a Prefeitura do então Distrito Federal realizou o tradicional concurso de marchinhas.

Gravada originalmente por Almirante na Odeon, no dia 28 de novembro de 1937, o disco foi lançado (junto com "Yes, Nós Temos Bananas") no suplemento de novidades carnavalescas do selo em janeiro do ano seguinte (como acontecia com todas as marchinhas concorrentes ao Carnaval).



O resultado perpretado pelo júri foi o seguinte: em primeiro lugar, “Touradas em Madri”, de autoria de Alberto Ribeiro e João de Barro. Em segundo, “As Pastorinhas”, também de Braguinha, porém em parceria com Noel Rosa, seguidos por “Sereia” (Alvarenga e Ranchinho). A vitória, contudo, durou até segunda, quando os jornais anunciaram a anulação do certame.

O motivo era o não comparecimento do presidente da Comissão anunciada no edital na data aprazada da apuração. Segundo Zuza Homem de Mello (1), a tal anulação não passou de pura marmelada: os demais perdedores haviam entrado com ação contra a escolha do júri.

A alegação era a de que “Touradas em Madri” na verdade não era “música brasileira” mas, sim, uma estilização de passodoble, ou seja, um ritmo não-autóctone. Para eles, de acordo com o edital, isso resultaria na virtual eliminação do tema.

Assim, na tarde do dia 28, ocorria nova eleição. As vitoriosas, desta vez, foram “As Pastorinhas”, “O Cantar do Galo” (Benedito Lacerda e Darcy de Oliveira) e “Ali Babá” ((Roberto Roberti e Arlindo Marques Júnior).

Em seu depoimento para o seu fascículo História da Música Popular Brasileira, da Abril, Braguinha comenta que inscrevera “As Pastorinhas” pela desfeita com “Touradas”. No entanto, a coisa foi mais longe: houve uma guerra, capitaneada por Mário Lago perante ao público, naturalmente pressionando o júri para que aquela vencesse.

Outro foi um entrevero entre Nássara e João de Barro. Por puro despeito — pelo fato da sua marchinha “Periquito Verde” ter sido desconsiderada pelos jurados — o autor de “A-la-la-ô” debochou de Braguinha, dizendo que quem havia vencido o certame era o espírito de Noel Rosa, o célebre co-autor de “As Pastorinhas”. Os dois se engalfinharam, no calor da hora, sendo apartados incontinente por Ari Barroso se a turma do deixa-disso.

Para ver como o tempo cuida de colocar tudo nos devidos lugares, “Touradas em Madri”, além de várias outras criações de Braguinha, seria eternizado pelos próximos carnavais.
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Naquela tarde, todos no estádio cantavam “Touradas em Madri” — menos um sujeito, presente nas cadeiras cativas. Ao contrário, ele estava com a cara afundada nas mãos, imagem típica do desespero.

— Ensinem esse espanhol a cantar! — gritou um gaiato, ao ver o tal sujeito a chorar copiosamente.

O Maracanã continuava cantando. O torcedor se impacientou e gritou mais alto, para que o pobre diabo ouvisse:

— Olha como esse cara tá quieto, só pode ser espanhol...coitado.

Mais um gol, e o coro recomeça:

Eu fui às touradas em Madri — parará-tim-bum, bum, bum!

Quando o jogo termina e a torcida festeja a vitória final — um sonoro e inapelável seis a um, aquele homem inconsolável pôde, então, se recompor e se levantar. O nome do torcedor “espanhol” era Carlos Alberto Ferreira Braga, o Braguinha, vulgo João de Barro, o autor da execrada “Touradas em Madri”. E, doze anos depois, já entronizada como clássico, ela seria lembrada por um Maracanã lotado — e pelo resto do Brasil — para sempre.



(1) Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello. A Canção do Tempo, 85 anos de músicas brasileiras, Volume 1: 1910-1957


Thursday, May 08, 2014

A Charneca e o Jardim


Machado de Assis



Estava relendo Iaiá Garcia (o motivo deste post meio maluco) Sempre tentei entender duas coisas sobre Machado de Assis.

Uma é por que ele é sempre considerado como um autor de ensino médio? “Que que eu vou querer com Machado de Assis? Isso é lá do tempo do meu 2º Grau”, dizia um amigo.

A outra é: por que um autor como Raymundo Faoro, autor do clássico Os Donos do Poder escreveria um ensaio sobre “um autor considerado de ensino Médio” (1)?

O que posso compreender das duas questões que botei aqui em cima é: Machado é leitura obrigatória na escola. Contudo, ele não é um escritor para jovens.

Como se sabe, o autor fluminense não publicava folhetim para jovens. Esse gênero jornalístico – típico da imprensa do Século XIX – era consumido por santas senhoras e senhores. E como todo jornalista, ele escrevia para o público desta ou daquela gazeta.

Mas Machado publicou todos seus folhetins em livro. Com o tempo, eles foram ganhando uma fortuna crítica. Foi através de gente como Faoro e muitos outros, que descobriu-se que sua obra transcende a leitura fugaz; foi através dessa gente que descobrimos que o “Bruxo do Cosme Velho” era mais do que um crítico de costumes. Na verdade, ele usou a literatura para fazer um radiograma de Brasil que, de lá prá cá, é praticamente o mesmo.

Um exemplo dessas possíveis leituras diversas de sua obra é Iaiá Garcia.


Publicado originalmente em o Cruzeiro, em 1878 e, mais tarde, em volume, pela Garnier, à primeira vista, Iaiá Garcia (2) é um romance romântico sobre a nobreza da renúncia de um amor.

Parece uma comédia de enganos: Jorge se apaixona por Estela, uma moça humilde, a mãe tenta dissuadi-lo e o faz pegar em armas e ir para a Guerra do Paraguai. No front, ele sonha com ela, até descobrir que o senhor Luís Garcia, confidente de seus arrufos, desposa a tal moçoila.

Garcia tem uma filha, Iaiá. Estela vira madrasta da menina, e sabemos que o consórcio se deu por causa da garota: ele não queria casar, não queria casar, mas as duas pareciam nascidas uma para a outra.

Jorge engole o despeito de ver seu confidente desposar a rapariga e seu amor jogado no ralo. No entanto, seu Garcia tem saúde fraca. Quer que Jorge vela por sua pequena família. Iaiá, agora moça, não gosta do major. Ele frequenta a casa deles. Ainda gosta da sua madrasta de forma quase ausente. O relacionamento entre os dois é impossível.

Elas não conhecem o pacto entre Luís e Jorge, e não entendem o porquê do moço visitá-los amiúde. Nesse meio tempo, outro homem, Procópio, conhece Iaiá e se apaixona por ela.

A antipatia entre a enteada de Estela e Jorge desaparecem. Na ausência daquele, os laços entre o filho de Dona Valéria e a pequena se estreitam até o paroxismo da paixão correspondida.

Procópio, como um duplo de Luís, transforma Jorge em confidente de seus amores por Iaiá, ante de partir a negócios numa longa viagem ao sul. Também fica sabendo da paixão frustrado do amigo pela Sra. Garcia.

Mas o amor fala mais alto: Jorge e Iaiá acenam para um casamento próximo. Quando volta, Procópio, agora como um duplo de Jorge, sabe do engodo: o seu confidente roubou-lhe a rapariga. O que fazer? Revela à garota o passado entre Estela e o major.

Nesse meio tempo, Luís morre. Num acesso de ciúmes, envenenada pela revelação, Iaiá, num rompante de ciúmes, acaba com o noivado e deixa todos perplexos. Agora, pateticamente enteada e madrasta viram antagonistas.

Segue-se um rebu entre as duas, só contornado por Estela, que diz que sim, eles tinham algo no passado. Contudo, hoje, não sente nada por Jorge. Era um amor do passado. Ou, num gesto extremo de nobreza, renuncia àquele amor.

Da mesma forma, temos um símile da situação do começo do livro. Antes, Jorge teve uma chance e foi levado a perder e aceitou. Agora, era ela quem teria a chance de, sabendo do grande amor de Jorge, por conta de um diálogo epistolar do tempo em que o rapaz lutava no Paraguai, ela poderia unir-se ao seu verdadeiro amor.
Ou seja, o desfecho poderia ser como o que Manuel Antônio de Almeida encontrou para o seu Memórias de um Sargento de Milícias: tipicamente romântico. Mas não era o que Machado de Assis tinha em mente.


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Num artigo, intitulado "A Novidade das Memórias Póstumas", Roberto Schwartz (3) vira o santo de cabeça para baixo.
Sua tese é a seguinte: no Brasil de Machado, havia duas classes, os "capitalistas" e os escravos. A misturinha desse sanduíche são as pessoas livres e pobres, os sem-culotes do Império.

Naquele tempo não existia mercado de trabalho, porque o trabalho era escravo. A forma que eles teriam de sobreviver era na base do favor, a proteção de um bem-nascido. Sem isso, você não era ninguém.

Prá explicar: um personagem que vocês conhecem (no universo machadiano), José Dias (de Dom Casmurro, naturalmente), um reles agregado. De charlatão, ele vira um arauto de uma viúva rica. No começo contra o casamento de Bentinho com Capitu, virou a casaca porque sabia que ia futuramente viver de favor do filho de D. Vitória.

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Schwartz explica que essa cultura brasileira meramente clientelista do "favor" está por trás dos quatro romances "românticos" de Machado de Assis - mais especificamente em Iaiá Garcia.

Segundo ele, nas relações de favor a realização passa pelo consentimento, pela captação do consentimento de uma pessoa proprietária”. Porém, existe uma certa “cumplicidade sistemática” do narrador a respeito do status quo. Assim, o estranhamento do enredo reside no fato de que vemos esse jogo de favores operar normalmente; por parte do autor, não existe nenhuma pretensão de denunciar isso abertamente.

A “denúncia” se dá no sentido de que Machado vai além do material romântico dos antecessores, Macedo e Alencar, que não mostravam claramente essa engrenagem. É essa a “primeira denúncia”, que opera em sua fase romântica

Para ele, no entanto, ao viver do favor, o sem-culotes tem que ser ladino, dançar conforme a música, e, na sua expressão (espero não estar descaracterizando o pensamento dele), engolir sapos. Ou seja, não se trata de malandragem: é a luta pela sobrevivência (ideia que vai ser retomada pelo autor mais tarde)

Nesse sentido, a sem-culotes de Iaiá Garcia é Estela. Ela é filha de um burocrata de terceira categoria. Jorge se apaixona por ela e, sendo rico, acha que pode cortejá-la sem nenhum porém. Porém, existe uma gama de relações "de favor".

O pai dela e Luís Garcia são o que hoje se poderia chamar de contínuo de sinecura. Estão onde estão porque alguém os colocou lá. Jorge faz uso de sua autoridade social para obter Estela. D. Valéria consegue mandá-lo para a guerra, e empurrá-la para Garcia.

Aqui é Estela quem aproveita a chance de subir na vida. O casamento é de favor e só acontece porque ela, usando de engenho e arte, "seduz" Luís ao demonstrar afeição parental por Iaiá. Ela engole o sapo empurrado goela abaixo empurrado pela imperativa e imperiosa mãe de Jorge.

O sapo lhe cai mal, mas lhe cai bem. Ela tem um casamento de sonho para quem pode, de comum acordo com o noivo, virar uma governanta de luxo. Estela pode ter analisado friamente: Jorge vai me largar na primeira esquina (como Félix, no começo de Ressureição, lembra?).

Ela age pelos seus instintos. Muito mais tarde ela vai saber que o amor do rapaz era profundo e verdadeiro. Mas, aqui, ela sabe que esse casamento lhe dará a sobrevivência. Essa revelação vai aparecer quando Luís finalmente morre e Iaiá e Estela se desentendem.

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Pegando o mote do Schwartz, relendo o fim do livro, podemos entender que Machado foi tão pessimista, irônico e cínico quanto seria em sua fase realista. Estela faz e recebe favores, de forma fria. Por que? Porque ela quer ser limpinha, embora ache o processo meio degradante, o que ela poderia fazer? Apenas agir friamente. Ou dissimular: pega o irredutível viúvo pelo seu calcanhar-de-Aquiles, a filha dele.

Na fórmula romântica, Machado sublima essa cruel equação, que causa um acerta náusea: pobres serviçais e proprietários onipotentes. Ainda está dentro do "esquema". Ele iria inverter isso na fase realista, quando caricatura os protagonistas de Memórias e Dom Casmurro - mostrando um retrato devastador da classe proprietária, a partir do ponto-de-vista deles, Brás Cubas e Bentinho.

Em Dom Casmurro, a "moça do favor" é a famélica Capitu. É ela quem, ardilosa e pacientemente, puxando um fio, consegue seduzir Bentinho a largar a batina e casar com ela.

Capitu é uma espécie de My Fair Lady às avessas: ela é quem tem a ambição de se tornar uma bela dama, não é vítima de um sortilégio ou aposta. Ela toma a iniciativa para salvar-se, e dá o golpe no baú; é ela quem faz o filho de D. Vitória sair do Seminário. Ele estava totalmente passivo com relação a isso. Por Bentinho, ele teria ficado lá.

Ele se dá conta do embuste quando Escobar morre. Sua razão de viver acabou. Ao invés de viver feliz para sempre na igreja com seu querido Escobar, Bentinho largou a batina por um casamento infeliz – Mas que beneficiou Capitu. Ele se sente enganado pelo embuste da My Fair Lady sem-culote e desconta todo o seu ódio senhorial àquela moça pobre que subiu na vida às costas dele, um proprietário. Seu objetivo agora é esmagá-la.

Da mesma forma, assim podemos entender o ódio rancoroso de Iaiá Garcia com Estela, quando seu pai morre. A morte de Luís acaba com o contrato de favor, e escandaliza Iaiá ao ver-se no meio de um singularíssimo (como diria Augusto dos Anjos) triângulo amoroso e percebe que sua madrasta pode roubar-lhe Jorge.

No fim, Capitu e Estela vão para o degredo: A esposa de Bentinho parte para a Europa e Estela, por ironia do destino, se torna educadora no interior de São Paulo (Machado podia literalmente matá-la de culpa, deixando-se morrer por um golpe de ar, por exemplo. Porém, já havia feito o mesmo com Helena).

No entanto, em Iaiá Garcia, há o desfecho romântico. Em Dom Casmurro, é claro que não, de forma alguma. Machado quer mostrar a brutalidade pela voz do proprietário.

Não existe aquela relação (até certa forma) consentida entre proprietários e favorecidos dos quatro primeiros romances do autor. Aqui, Machado quer mostrar, em primeira pessoa (como em Brás Cubas), o proprietário enfiando a botina na cara dos pobres sem-culotes.


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O próprio nome do romance ironicamente desvia o foco: toda a história gira em torno de Estela, tudo acontece por causa dela. Iaiá Garcia é a sua antagonista. Mas como estamos num romance romântico, o título deve referir-se à heroína romântica. Não a sem-culotes.

O fim de Iaiá Garcia é uma flor de cinismo. No capítulo XVI, Estela tenta convencer sua enteada que não quer Jorge, dizendo "não há nada eterno neste mundo, nada, nada. As mais lindas paixões morrem com o tempo." E concluí, cinicamente: "um homem sacrifica o repouso (...) e essa paixão violenta e extraordinária acaba às portas de um simples namoro, entre duas xícaras de chá".

Amor eterno entre duas xícaras de chá. Iaiá pergunta se Estela nunca o amou. Sua resposta é o momento crucial da história, é o credo de Estela, a ária do terceiro ato, e que faz com que tenhamos que entender a mola mestra do romance (os grifos são meus. Desculpem a longa citação):


Havia entre nós um fosso largo, muito largo, disse Estela. Eu era humilde e obscura, ele distinto e considerado; diferença que podia desaparecer, se a
natureza me houvesse dado outro coração. Medi toda a distância que nos separava e tratei simplesmente de evitá-lo. Foi então que ele embarcou;
interiormente aprovei-o. Talvez lhe não neguei um pouco de compaixão silenciosa, mas nada mais. Casamento, entre nós, era impossível, ainda que todos
trabalhassem para ele; era impossível, sim, porque o consideraria uma espécie de favor, e eu tenho um grande respeito a minha própria condição. Meu pai já me achava, em pequena, uns arremessos de orgulho. Como querias tu que, com tal sentimento, pudesse desposar um homem, socialmente superior a mim? Era
preciso dar-me outra índole. Todas as felicidades do casamento achei-as ao pé de teu pai. Não nos casamos por amor; foi escolha da razão, e por isso acertada. Não tínhamos ilusões; pudemos ser felizes sem desencanto. Teu pai não tinha os mesmos sentimentos que eu; era mais tímido que orgulhoso. Qualquer que fosse a razão do seu desapego ao mundo, bastava que o tivesse, para me fazer feliz; vivemos assim alguns anos de inteiro isolamento, sem conhecer o amargor, que é o que fica no fundo da vida, sem necessidade da dissimulação... Minto; tive necessidade de fingir, desde que aquele homem aqui apareceu; era necessário. Um dia teu pai mostrou-me essa carta e referiu-me a paixão encoberta que aí se conta; podes imaginar se ouvi tranqüila. Mas fora desse acontecimento, que outro podia perturbar minha alma? Não vi
nenhuma porta abrir-se-me por obséquio, nenhuma mão apertou a minha por simples condescendência. Não conheci a polidez humilhante, nem afabilidade sem calor. Meu nome não serviu de pasto à natural curiosidade dos amigos de meu marido. Quem é ela? Donde veio? Ninguém me perguntou donde vinha, não é
verdade? Perguntaste-me quem era eu?
Não; amaste-me como tinhas amado tua mãe, e eu amei-te, como se foras minha filha. E para isto bastou-nos estender os
braços; não foi preciso descer nem subir.
— Não foi, bradou Iaiá comovida, apertando-lhe as mãos.
— Já vês quem eu era e sou; uma espécie de animal feroz, que prefere a charneca ao jardim. Não me senti lisonjeada com a paixão que inspirei; rejeitei, talvez, um marido digno das ambições de qualquer mulher. Era isto o que querias saber? Pois aí tens a minha história, a história dessa carta, que já agora podemos rasgar...

Qual seria o “outro coração”? O coração passional, romântico que, em se tratando de uma sem-culotes, foi a desgraça de Cecília, em Ressureição, abandonada por Félix. Não quis nada com ele porque seria “um favor”, mas um favor além da sua capacidade de “humilhar-se”, era preciso “outra índole”, muito embora preferisse a charneca ao jardim.


O casamento com Luís lhe era, pois, tangível, porquanto ambos eram socialmente cognatos. Ela sabia que um homem “socialmente superior” não ia trata-la de igual para igual. Ela não ia ser doida de ceder aos caprichos da parte proprietária. Estela é a anti-Cecília, a anti-Eugênia, Jorge pode ser um proto-Brás Cubas. Estela conhece esse jogo: não vai cair nele. Sua virtude é a sua frieza sentimental. Essa é a grande “renúncia” do livro – que chega ao paroxismo de jurar, mesmo sabendo do verdadeiro coração profundo de Jorge, que não o ama, não o quer, não tem atração por ele, prefere virar uma “assalariada” (como o fez Machado) a envolver-se com o rapaz, já que, dessa vez, sua atitude iria soar, de certa forma, "imoral".

Schwartz é quem observa: “Tanto Luís Garcia como Estela têm um lado de peixe-morto que eles alcançaram a duras penas, e que é a arma que eles conseguiram para não serem degradados”. Como diz o poeta, quem mora entre feras tem a necessidade de ser fera.

E é isso o que literalmente diz o pai de Estela, quando descobre que ela quer partir, e fica horrorizado e perplexo em saber que ele era apaixonado por ela e, mesmo assim, renuncia ao amor:

— Tu chegaste a amá-lo! exclamou ele. Não o aborrecias? Amaram-se? E só agora
sei... Bem digo eu; tu és uma fera.



E, perplexo, com a maior cara-de-pau, conclui:


- Não tens, nunca tiveste pena de minha
velhice... Ele é tão bom! tão digno! E se morresse por tua causa? não terias
remorso? não te havia de doer o coração quando soubesses que um moço tão
bem-nascido, que gostava de ti... Sim, ele gostava muito de ti; e tu também... e
só hoje!


Ora, "não tem pena da minha velhice?". Ora, o pai está preocupado com a felicidade da filha, que ele considera "orgulhosa" e que "nunca fez nada de certo"? Fica a pergunta prá vocês, caros leitores (uns 23) (não me devolvam).

Como bem diz Roberto Schwartz, a moral da história do Machado pré-realista (ou "realista") é mostrar essas regras de conduta, de forma a que os personagens saibam viver sem degradarem-se, ou “civilizar a relação para que ela não seja tão degradante”. Aqui, o autor não critica o clientelismo; o direito dos proprietários não é posto em dúvida.

O caráter desumano e opressor não mostra a sua cara. Machado precisou virar o santo, e criar um proprietário defunto que não tivesse língua presa ao contar as suas sórdidas vicissitudes. Esse é o delírio de Brás Cubas, o livro que iria ser o Machado de Assis, o nosso Raymundo Faoro do ensino médio.



Notas:

(1) FAORO, Raymundo. A pirâmide e o trapézio. São Paulo: Ed. Globo, 2001.
(2) ASSIS, Machado. Obras completas em 4v. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.
(3) SCHWARZ, Roberto. Machado de Assis: um debate. In: Novos estudos n.29, março de 1991, p.59-82


Wednesday, April 09, 2014

O Dia em que o Correio encarou a guarda


A traição da "cortesã"

Segundo Carlos Reverbel (1), que foi redator, repórter e editor do Correio do Povo ao longo de quarenta e seis anos - de 1934 até 1980, o matutino, fundado em 1895 por Cardas Júnior, a despeito de ter surgido sob a égide de uma linha editorial neutra - diferente da maioria da imprensa porto-alegrense de então, de caráter eminentemente polítco-ideológico, sempre foi apreciado e respeitado pelas altas esferas dos governos militares pós 1964. Segundo ele, mesmo os presidentes que não eram gaúchos tinham alguma relação com o Rio Grande do Sul. "Breno Caldas tinha acesso fácil a todos eles, que também tinham interesse em ficar de bem com o Correio", disse.

Não bastasse isso, como lembra Walter Galvani em seu panegírico (2) sobre a Caldas Júnior, a Folha da Tarde, tida como a "puta velha" do Dr. Breno, a partir de 1964, tinha em sua direção Ediberto Degrazia - ex sub-chefe da Casa Civil do Governo Ildo Meneghetti, um dos próceres que defenderam a queda do presidente João Goulart.

O curioso é que, da antiga Companhia Jornalística Caldas Júnior, os jornais que gozavam de maior "liberalidade" eram primeiro a Folha da Tarde, depois um pasquim que nascera da costela desta publicação, a Folha da Manhã. Esta, por sua vez, era tão "prafrentex" que encontrava resistência de fontes e de leitores. Tanto é que repórteres tinham que se dizer ligados ao Correio - a cortesã do poder - e não a Folhinha, que era sutilmente renegada até pelo seu patrão, Dr. Breno. Mesmo assim, ela fez história, e ainda merece uma biografia em livro (a Folha e o Correio já ganharam as suas).

Contudo, o Correio do Povo teve um problema com a censura, em pleno regime. A história foi a seguinte: o governo negava que houvesse censura à imprensa. No entanto, Rui Mesquita, então diretor do Estadão, mandou um telex ao Ministro da Justiça do Governo Garrastazu, Alfredo Buzaid arrazoando uma ordem apócrifa que havia chegado às redações proibindo qualquer referência à "abertura política ou redemocratização".

O tal memorando foi parar na redação do Correio, trazido por censores. O libelo do editor-chefe do Estadão dizia: "sinto vergonha pelo Brasil, degradado a uma condição de república de Uganda qualquer por um governo que acaba, de forma incrível, de decretar o ostracismo dos próprios companheiros de revolução". À guisa de conclusão, Mesquita disse: "Todos os que estão no poder hoje baixarão um dia. E então, senhor Ministro, como aconteceu na Alemanha, na Itália ou na Rússia, o Brasil ficará sabendo da verdadeira história desse período (...)".

O Correio resolveu dar uma gauchada, e publicou o telex apócrifo e o arrazoado de Rui Mesquita. A história foi parar na Capital Federal. As ordens lá de cima eram as de apreender aquela edição, do dia 20 de setembro de 1972.

Breno Caldas fez menção de resistir; alguns funcionários da casa, num rompante heróico de capa-e-espada, chegaram a se armar. Porém, quando o grosso do pelotão de choque cercou o vetusto Edifício Hudson, capitularam. A milícia cercava o prédio, da Sete até a Rua da Praia. O delegado da Polícia Federal foi ter com Caldas, no escritório do homem.

A matéria estava no noticiário da página 8, como cabeça de página. Irredutível, Breno disse que não ia refazer a edição, ou seja, não ia sacar a matéria, intitulada "LÍDERES DO GOVERNO NEGAM QUE MINISTRO DA JUSTIÇA QUEIRA CENSURAR A IMPRENSA".

- Então o seu jornal vai ser apreendido - advertiu o milico.

- Faça o que o senhor quiser. - respondeu o dono do Correio.

Toda a edição que havia rodado lá pelas 4 da manhã estava sendo transportada para os caminhões verde-oliva, cujo destino era a sede da PF, na Zona Norte de Porto Alegre.

Mas de fato toda a edição daquele dia foi aprendida? Não. Uma intrépida funcionária do departamento de Arquivo de Jornais da empresa, Francisca Espinosa, bancou a Antígona do Correio do Povo. Driblou os guardas e pegou um maço de exemplares. Como ela conhecia muito bem o prédio por dentro, conseguiu furtar o material debaixo dos bigodes da guarda sem ser descoberta. Desceu até o setor de impressão e saiu por uma passagem que só ela conhecia, até chegar no terceiro andar.

Prá quem quiser, no setor de Arquivo, está lá, intactos, os 20 exemplares salvos da censura naquele aziago 20 de setembro de 1972.

Desse dia em diante, o velho Correião não teve problemas extremos como esse. Contudo, como se sabe, quem estava com a cabeça à prêmio era, justamente, a filha rebelde da CJCJ, a Folha da Manhã - segundo Reverbel um jornal "avançado para a época, muito bem feito por uma geração brilhante de jovens jornalistas que começavam a sair das faculdades de comunicação".

De acordo com ele, no entanto, a ousadia da Folha da Manhã era a tendência "à esquerda" (como se fosse a única redação cheia de "comunistas" no Brasil. À bocca chiusa, muitos donos de jornal confessavam preferir os repórteres de esquerda pois, segundo eles, eram os mais produtivos). O problema é que esse pretenso esquerdismo da Folhinha não incomodava diretamente os militares; para Reverbel, os maiores incomodados eram os leitores do Correio.

- Não foi o governo militar que rejeitou a Folha da Manhã, mas sim os assinantes do Correio, que ameaçavam cancelar as suas assinaturas se a Caldas Júnior continuasse mantendo um jornal como aquele - explicou.

Três anos depois da gauchada do 20 de setembro de 1972, os militares pediram a cabeça de toda a cimeira da redação do jornal - entre eles, Luís Fernando Verissimo e Ruy Carlos Ostermann.

Ainda assim, a filha maldita e renegada da Caldas Júnior iria durar mais cinco anos, até 1980, quando Breno finalmente atendeu à demanda dos assinantes do Correio e pôs fim à aventura da Folhinha.



(1) Carlos Reverbel, Arca de Blau, Artes & Ofícios, Porto Alegre, 1993.
(2) Walter Galvani, Um Século de Poder - Os Bastidores da Caldas Júnior, Mercado Aberto, Porto Alegre, 1994.

Friday, April 04, 2014

A gente era feliz (e não sabia)


Pois esses dias, numa plácida tarde-noite de chuva, tive que pegar um táxi para ir até um endereço na Saturnino de Brito, lá prá quem desce para a Avenida dos Prazeres. Como estava no Moinhos de Vento, peguei o carro de praça na altura da Eudoro Berlink. Chovia pequeno e logo escureceu. O trânsito engarrafava. Fazia um friozinho de fim de outubro (não era fim de outubro).

Íamos parando, de semáforo em semáforo, depois Anita, Carlos Gomes e Nilo Peçanha. Mais engarrafamento na Nilo, na saída dos colegiais do Anchieta. Tudo parado. O rádio estava ligado em algum vitrolão, se não me engano, na Antena 1. Eis que, de repente, começa a tocar It's a Mistake, do Men At Work. Nisso, estávamos parados na altura da General Store.

Ouço Men At Work e, naquela chuva oblíqua, com o nariz esmagado no vitro do taxi, olhando as luzes noturnas da Nilo naquela altura, de repente, de repente voltei no tempo. E voltei ao tempo das homéricas baladas de Porto Alegre nos anos 90.

Na época, ninguém ia na Cidade Baixa. Havia uma noite que começava no Lei Seca, primeiro quando era na Bordini, depois subiu para a Plínio, e perto do Fim de Século, que ficava na Silva Jardim. A gente descia a D. Pedro II e tinha o Santa Mônica. Ou descia a Carlos Gomes e tinha uma noite começando quase lá passando o Anchieta, comçava num pub perto do posto e descia até o último grito da moda, que era o Dado Bier.

Era superestimado e com razão, até que a gente finalmente arrumou grana e beca para entrar lá (falando em beca, nada a ver com o assunto, mas lembro-me que, na época, eu era grunge. Sempre que um amigo me apresentava a um amigo comum, esse amigo comum me perguntava se eu fazia Elétrica na UFRGS. WTF?).

Havia alguns bares na Protásio, na volta do Barranco. Perto do Ratão, havia o Território da Paz, que tinha promoção de chope. Era uma ótima pedida prá passar a noite ouvindo Burning Spear e sair de lá trocando as pernas.

Mais embaixo, bem na frente do Barranco, funcionava o Mapa da Cidade. Ali ia muita gente da PUC. O Mapa era muito legal, pena que eu fui poucas vezes lá.
Coincidiu justamente na época em que eu entrei na Faculdade, em 1994. E, do lado do Porto de Elis (que, naquela altura, não era mais o avoengo 'Porto' clássico, dos anos 80) tinha uma casa de samba, o Zimbro's.
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O Zimbro's eu fui só uma vez, uma amiga me convidou prá ir no aniversário de uma na verdade, tinha vertido libações (tomado várias) no Maza (o antigo Maza, não esse atual aí não) depois da aula e ela me achou quando eu tava na parada para ir para casa. Na verdade, tudo não passou de ardil dessa minha amiga, já que a aniversariante em questão era uma guria que eu paquerava e todas amigas dela sabiam. Então ela quis me pôr nessa reta e justamente nos cumpleanos dela.

Cheguei lá pronto, se é que me entendem. Me lembro de mim, bêbado, indo então conversar com a menina. Eu estava com uma garrafa cheia de Polar na mão (com a tampa fechada, veja só, o meu estadinho). Sei que, no meio da conversa, deixo cair a garrafa no chão. Ela caiu feericamente de pé, mas não rachou. A moça fez menção de rir e virou da lado. Mesmo desconcertado, salvei a cerveja: a garrafa felizmente não explodiu. Mas eu, naquele, estado, naquela hora da madrugada, já estava honestamente de porre e, graças ao deus Gambrinus, achando tudo muito engraçado.

Mas bom mesmo era o Lei Seca. A gente ia prá lá, para cá, mas sempre acabava no Lei Seca. Lembro-me que, na finaleira, sempre o DJ rolava um Taj Mahal prá galera pular igual pipoca. Imagine: isso nos tempos em que éramos todos jovens, e tínhamos fôlego e saúde para varar a madrugada tomando cerveja, até o sol raiar, e ainda por cima ir para a PUC com a mesma roupa de véspera, para a aula de Cultura Religiosa I. Todos com cara de paisagem oito da manhã, no Prédio 7, para as prédicas do professor, acerca de hinduísmo e Lao Tsé.

....

(Aliás, falando em Cidade Baixa, ela ainda tava começando os trabalhos. Não tinha a vida noturna que tem hoje. Tinha o antigo Marinho (o de hoje, na Sarmento, não conta, nem com a roda de violão), o Cult Bar, do lado do DEP, hoje é um boteco gourmet metido a pé-sujo, isto é, boteco da forma mais cínica, impossível, bem coisa desse cínico começo de centúria).

Lembro-me que, na verdade, a noite, ainda mais ali na região da José do Patrocínio, era algo muito simplório, quase um gueto. A República e adjacências não havia se tornado ainda a Haight-Ashbury do socialismo-sandália que é hoje.

A peça de resistência, no entanto, era, como sempre, o Opinião. Naquele tempo, 1994 ou 1995, era um barzinho pequeno. A gente conhece o Opinião grande na esquina, mas era um pub muito pequenino, com o palco de costas para a calçada. Logo depois, ele seria reformado. Lembro-me que, quando rolaram os primeiros shows da Hard Working Band (curtia eles coverizando Natural Woman) ali, já era o novo espaço, o que a gente vai hoje.

Mas a Cidade Baixa acabou virando uma boa pedida (no fim das contas), justamente porque éramos (e somos e sempre seremos) uns pelados. É que fazer a balada na rota Lei Seca-Plutão-Nilo Peçanha-Crocodilus era ou prá quem tinha carro ou conseguia descolar carona. E a Cidade Baixa é a melhor balada a pé do planeta.
Mas na minha lembrança, hoje, é uma balada histórica. Hoje, essa região da Nilo-Iguatemi foi devidamente tomada pela especulação imobiliária. Naquele tempo, era uma área devoluta, ainda quase toda projetada.

O sítio da cervejaria do Dado Bier era, então, um mato sem cachorro. Tinha nada ali. Só o barracão da IAPI (hoje é uma concessionária).

Muita vez eu com uma galera na hora da larica no Plutão eu sem patavina só olhando os outros comendo xis e eu seco de cerveja por dentro (só pelo derradeiro gole de cerveja ainda, ali pelas cinco da matina), louco para chegar em casa, me atirar na cama e esperar que o sono vencesse a fome...



Sempre que eu passo por ali, de noite, com uma chuvinha rala no vidro do carro, ainda por cima se for ao som de algo como Reckless, do Australian Crawl, por exemplo, eu me lembro daquelas baladas anos 90 quando, como diria peremptoriamente o Mauro Borba, a gente era feliz e não sabia.

Na volta, retornei pela Nilo. Dessa vez, pedi ao taxista que me deixasse na altura do General Store. Queria tomar uma cerveja ali, com chuva e tudo. Depois eu que voltasse de T7. Azar. Estava muito nostálgico.

Thursday, April 03, 2014

Uma conversa bem meia-boca

A língua portuguesa é uma das mais difíceis do mundo, até para nós. 
O português praticado no Brasil ...
*Na recepção dum salão de convenções, em Fortaleza*
- Por favor, gostaria de fazer minha inscrição para o Congresso.
- Pelo seu sotaque vejo que o senhor não é brasileiro. O senhor é de onde?
- Sou de Maputo, Moçambique.
- Da África, né?
- Sim, sim, da África.
- Aqui está cheio de africanos, vindos de toda parte do mundo. O mundo está cheio de africanos.
- É verdade. Mas se pensar bem, veremos que todos somos africanos, pois a África é o berço antropológico da humanidade...
- Pronto, tem uma palestra agora na sala meia oito.
- Desculpe, qual sala?
- Meia oito.
- Podes escrever?
- Não sabe o que é meia oito? Sessenta e oito, assim, veja: 68.
- Ah, entendi, *meia* é *seis*.
- Isso mesmo, meia é seis. Mas não vá embora, só mais uma informação: A organização do Congresso está cobrando uma pequena taxa para quem quiser ficar com o material: DVD, apostilas, etc., gostaria de encomendar?
- Quanto tenho que pagar?
- Dez reais. Mas estrangeiros e estudantes pagam *meia*.
- Hmmm! que bom. Ai está: *seis* reais.
- Não, o senhor paga meia. Só cinco, entende?
- Pago meia? Só cinco? *Meia* é *cinco*?
- Isso, meia é cinco.
- Tá bom, *meia* é *cinco*.
- Cuidado para não se atrasar, a palestra começa às nove e meia.
- Então já começou há quinze minutos, são nove e vinte.
- Não, ainda faltam dez minutos. Como falei, só começa às nove e meia.
- Pensei que fosse as 9:05, pois *meia* não é *cinco*? Você pode escrever aqui a hora que começa?
- Nove e meia, assim, veja: 9:30
- Ah, entendi, *meia* é *trinta*.
- Isso, mesmo, nove e trinta. Mais uma coisa senhor, tenho aqui um folder de um hotel que está fazendo um preço especial para os congressistas, o senhor já está hospedado?
- Sim, já estou na casa de um amigo.
- Em que bairro?
- No Trinta Bocas.
- Trinta bocas? Não existe esse bairro em Fortaleza, não seria no Seis Bocas?
- Isso mesmo, no bairro *Meia* Boca.
- Não é meia boca, é um bairro nobre.
- Então deve ser *cinco* bocas.
- Não, Seis Bocas, entende, Seis Bocas. Chamam assim porque há um encontro de seis ruas, por isso seis bocas. Entendeu?
- Acabou?
- Não. Senhor é proibido entrar no evento de sandálias. Coloque uma meia e um sapato...
O africano enfartou...

(não sei quem é o autor)

Tuesday, April 01, 2014

As Flores e o Canhão


Vandré no Festival de 1968: aclamado pelas vaias à Sabiá

Quando voltou do exílio, em 1973, Geraldo Vandré foi preso ao desembarcar do voo doméstico que o trazia de uma forçada turnê entre a Europa e a América do Sul. A alegação é que ele era o autor de “Prá Não Dizer Que Não Falei de Flores”. Além disso, ele teria dado declarações contra o governo nacional no exterior.

É irônico pensar hoje que, de certa forma, toda a fama da música que o compositor paraibano inscreveu no Festival da Canção de 1968 foi causada, em grande parte, por causa de toda a história da censura que esta sofreu, a partir do seu lançamento, logo após o certame. A canção foi banida por uma década mas não foi esquecida. E, ao que parece, o banimento a promoveu - prova-dos-nove de que a censura é, foi e sempre será um afrodisíaco irresistível.

Ela poderia ter quase caído no esquecimento, como "Margarida", de Guarabira. Que, com efeito, foi a campeã do II Festival Internacional da Canção Popular. Não. “Prá Não Dizer Que Não Falei de Flores”, além de vice, virou símbolo de uma geração que caminhava para o cadafalso.

O compacto, editado pela Som Maior, trazia as duas versões: a de estúdio, mais contida, embora com um arranjo de violões muito bonito e expressivo.

No lado B, porém, escutamos a versão mais emblemática de “Caminhando”. Gravada ao vivo em pleno Maracanazinho lotado, no calor da hora do Festival, ela é, a um só tempo, o registro de uma época – época essa em que as liberdades sociais e políticas foram sendo tolhidas com o AI - 5, no rastilho do fatal corolário do Golpe de 1964 - deflagrado há exatos 50 anos, num glorioso 1° de abril) o ambiente daqueles certames havia catalisado toda a pressão social daqueles idos de 68, quando parecia que tudo ia mudar.

No palco, de forma surpreendente, Vandré capitulava. O homem que brigou com meio mundo e travou uma cruzada pessoal e solitária com uma canção de dois acordes aceitou a decisão do júri. Mais: ofereceu a outra face, elogiando os autores de Sabiá – Tom Jobim e Chico Buarque de Hollanda – e dando adeus à inocência diante de uma plateia ensurdecedora que vaiava a decisão do júri.

Ato reflexo, começa a tocar, de forma dramática. A platéia exulta ao fim de cada estrofe (como quando ele diz "morrer pela pátria e viver sem razão").



Você pode não gostar nem de Vandré, nem da música, mas é impossível ficar incólume à maneira como o público vai, aos poucos, passando do silêncio à catarse, até quando, no fim, entoam juntos o refrão. Vandré, possivelmente admirado, chega a errar um acorde. Ninguém percebeu, mas está no disco.

O compositor, mais conhecido por “Disparada” do que com “Porta-Estandarte” ou “Rancho da Rosa Encarnada”, “Aroeira” ou “Ventania”, escreveu um pequena marselhesa agreste. De quebra, de forma conativa, incitava o ouvinte a luta.

De certa forma, a canção foi emblemática também como o fim de um ciclo. A partir dali, o ambiente de festival sofreria um esvaziamento, total perda de sentido, uma crise de identidade. A MPB se exilava. Era o começo da tempestade.

Um militar, o general Luís de Oliveira, então Secretário da Segurança do antigo Estado da Guanabara, chegou então a declarar ao falecido Correio da Manhã que os indecisos cordões de “Prá Não Dizer Que Não Falei de Flores” eram de uma música “ofensiva à soberania nacional e um achincalhe às Forças Armadas”. Talvez essa seja a melhor crítica à segunda colocada do FIC – dada a torpeza de sentimentos em tal afirmativa. Quem não gostaria de ouvir essa tal música que ameaçou a soberania de um país?

É de se pensar em como as canções têm esse poder – se não o de querer mudar o mundo ou as pessoas (Vandré, de forma enigmática, dizia que não era compositor de protesto), o de fazer muitos acreditarem que ela seja capaz de tal façanha.

Mas eles tinham medo de uma canção. e promoveram uma perseguição absurda, coisa de tiranos contra um mero artista, uma pessoa que estava apenas realizando seu pleno exercício de liberdade de criação. Como ele disse no palco: "a nossa função é de fazer canções" (enquanto o Maracanazinho, com gente até no lustre (como diria Nelson Rodrigues) gritava em coro "é marmelada, é marmelada").

Uma canção realmente tem o poder de mudar o mundo? Pelo menos a ponto de ser uma ameaça à soberania nacional? Por menos que isso, por exemplo, meses após o retorno de Vandré ao Brasil, Victor Jara seria eliminado fisicamente por causa de suas músicas. O ódio dos generais chilenos era tamanho que destruíram inclusive os masters de seus discos. Em suma: queriam apagá-lo da história.

Não conseguiram. E Vandré sobreviveu à censura - inclusive ao próprio ostracismo (e ao auto-ostracismo quando este declarou, no fim dos anos 70, que Vandré era um personagem de um certo Geraldo Pedroso de Araújo Dias) por causa de sua música.

O fascículo da História da Música Popular Brasileira dedicada a Vandré (publicada em 1978, pela Abril) não trazia “Prá Não Dizer Que Não Falei de Flores”. A música era proibida (o fascículo, se a contivesse, poderia atentar à soberania).

Muitos foram os casos de canções censuradas no Brasil. Muitas nasceram mortas na ditadura (o que dizer de canções que não puderam nascer?). “Prá Não Dizer Que Não Falei de Flores” sobreviveu ao exílio, à censura, à indiferença do seu próprio autor. É um caso de se estudar. E, de certa forma, a censura a fortaleceu. Renasceria na voz de Simone (numa versão em ritmo de chacarera) naquele disco ao vivo, dez anos depois da versão original.

…..

Mudando de assunto (e ficando no mesmo) me lembro de um episódio, que não me recordo de onde li ou ouvi: era um jovem casal. Ele, esquerdista roxo, enragé de primeira ordem, adepto da luta armada, queria “Prá Não Dizer Que Não Falei de Flores”. Sua namorada, no entanto, preferia “Sabiá”.

Ele brigou com ela porque ele achava o tema de Jobim e Chico “alienada”. Um dia, ele caiu na ilegalidade. Conseguiu fugir da perseguição política e exilou-se. Dez anos depois, ele voltou.

No saguão do aeroporto, eles se reencontram. Ele, mudado, com uma barba de vinte dias, a roupa amarfinhada, como de quem tivesse carregado o mundo nas costas durante todo aquele tempo.

Depois das juras de amor, ele olhou nos olhos dela e disse:

- Você tinha razão, Sábia é a mais bonita.

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Vandré nunca mais a promoveu. O tempo passou, mas ela nunca perdeu sua magia. Muitos reclamam que Vandé nunca mais gravou nada. Não precisaria. “Prá Não Dizer Que Não Falei de Flores” é mais expressiva que dez mil variações sobre “Aroeira” que, por sua vez, soava quase como uma variação de “Disparada”.

Sua discografia hoje se resume a alguns discos esgotados (quando ele ainda era o romântico cantor a la Sérgio Ricardo (quando este também era apenas um cantor romântico) e o emblemático elepê Canto Geral, e outro álbum, gravado na França, nos anos 70. “Prá Não Dizer Que Não Falei de Flores” estará sempre associada àquela metáfora das cordilheiras desabando sobre as flores, flores que todos acreditavam que podiam vencer o canhão.

Tuesday, March 18, 2014

Sara

Sara é uma ilustre desconhecida para mim. Ela vem a ser uma parente de uma parente de uma parente, sendo que, no meio dessa genealogia toda, algum sangue se perdeu com o passar dos tempos. E se eu mal tenho contato com meus parentes, imagine com parentes de parentes de parentes de parentes.

Íamos a um casamento. O lugar do enlace e da festa eu não conheço. Sei que fica num distrito da cidade, quase limite com Ana Rech. É um daqueles lugares típicos, que ainda possui um certo atavismo do tempo dos colonizadores italianos. Como aqueles lugares onde os vovôs jogam truco em salão paroquial, jogam bolão e conversam estrepirosamente em dialeto.

É engraçado: eu sempre vinha passar o verão aqui quando eu era menino, isso no tempo em que a gente ficava um mês inteiro veraneando.

Aprendi a andar por toda a cidade, todos os lugares, conheço o trajeto da casa de minha tia até o Centro. No entanto, não decorei o nome dos bairros e, pior, não sei andar de ônibus a parte alguma.

Cheguei em casa de minha tia e ela estava num animado chá com suas amigas. Eram todas da sua idade, já beirando os setenta anos. Me ofereceu chá, mas eu recusei: queria mesmo era bebericar o vinho da pequena adega do meu tio, no porão da casa.

Porém, ele não estava lá. E minha tia não deixa eu mexer lá no porão e meu tio muito menos, porque ele é ciumento com a adega dele. É uma adega ordinária; porém, ele gosta de beber vinho em todas as refeições, como são muitos na Serra.

Depois, perguntei por todo mundo. Todos estão bem. Minha tia disse que Sara estava no andar de cima, se arrumando, e ia ficar pronta logo. Isso queria dizer pelo menos uma hora e meia.

Pedi licença para sair para ir no bolicho ao lado. Voltei com uma garrafa de vinho debaixo do casaco. Fui para a sala da tevê e fiquei estirado naqueles sofás-cama vintage de loja de departamentos vendo um jogo de futebol.


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Ah, me esqueci de dizer: minha tia apareceu com uma gata persa muito bonita, preta e sempre com uma cara de enfezada. Um pouco mais tarde, depois que o serão de minha tia terminou, enquanto ela arrumava a sala de jantar, eu perguntei:

- Titia, já que vamos ter que esperar até que Sara fique pronta, você poderia me contar a história dessa gata persa aí, não é?

- Com muita honra e gosto - disse ela

Então, falou.

- Há algum tempo, tu não eras nascido ainda, eu vivia na colônia do meu tio, um comerciante de vinhos perto de Garibaldi.

Um dia, ele me contou uma história que aconteceu com seu irmão, Dom Virgílio. Ele era rico e próspero; no entanto, ele e a esposa. D. Lavínia, não conseguiam ter filhos. Depois de muito tempo, ele resolveu pegar uma das mucamas e ela lhe deu um filho, Jacopo.

Anos depois, o garoto já era adolescente, e Dom Virgílio teve que resolveu uns negócios na Europa. Quando voltou deu falta do filho.

- Ele conheceu uma cocottte, ficou maluco por ela e foi embora - disse D. Lavínia.

Ninguém sabia disso - disse-me minha tia - mas D. Lavínia era uma mulher muito má e invejosa e foi iniciada, desde a infância, na feitiçaria e na arte dos encantamentos. Pela ciência da sua magia, ela transformou Jacopo num boi barroso, que ficou perdido no meio dos outros animais, bucolicamente a pastar e a servir de animal de carga.

D. Virgílio não soube notícias de seu filho, e ficou prostrado. Nunca mais soube notícias de Jacopo. Ele ficou sofrendo por um ano. Uma dia, o burro quebrou uma das patas dianteiras. A solução era sacrificá-lo.

Quando D. Virgílio se aproximou para degolar o animal, este, de forma surpreendente, se atirou aos pés do homem. Como sucedera aos cavalos de Pátroclo, os olhos do boi vertiam lágrimas.

Impressionado com o que vira, o homem decidiu não matá-lo. No entanto, da varanda da casa, D. Lavínia falou:

- É absolutamente imperioso que matem o boi. Não temos condições de sustentar e cuidar desse animal moribundo!

No entanto, meu tio teve pena do bichinho. E pediu que o caseiro levasse o boi barroso e cuidasse bem dele.

Dias depois, o mesmo caseiro veio ter com o patrão:

- D. Virgílio, preciso contar um segredo para o senhor. Sente-se, primeiro.

Então o agregado contou a verdade: a filha do caseiro havia aprendido feitiçaria com uma velha que viveu com eles há tempos atrás. "A garota me disse que o boi barroso, na verdade, era seu filho e que a madrasta o havia enfeitiçado", revelou o sujeito.

Espavorido, titio seguiu o homem até o pequeno curral, ao lado do modesto chalé do caseiro. Ao ver D. Virgílio, o animal teve a mesma reação de antes. Perplexo, ele olhou para Santuzza, a filha do caseiro:

- Então é verdade?
- Sim, senhor.
- Santuzza, se tu quebrar o feitiço, toda esta colônia é sua.
D. Virgílio - disse ela, olhando com seus enormes olhos castanhos ao patrão - eu só peço duas coisas: o amor de Jacopo e poder enfeitiçar quem eu quiser.

Titio concordou. Ela pegou um panelão, cozinhou umas ervas, embebeu toda aquela beberragem no boi barroso e disse: "se és um animal, que tu permaneças animal. Mas se és um ser humano, volte a ser um ser humano".

O bicho se contorceu no curral, até se transformar em Jacopo. D. Virgílio se atirou aos pés do rapaz, soluçando.

Em seguida, Santuzza deixou seu pai e titio e foi até o sobrado de D. Virgílio, onde estava D. Lavínia. Esta, ao vê-la, diante dos frontões da casa, gritou:

- Fora daqui, sua cadela! Nós combinamos que não iríamos se confrontar nunca!

- E eu alguma vez jurei algo para você, sua vaca? - respondeu Santuzza.

- Então tome o que eu tenho guardado para você!

D. Lavínia se transformou num leão, que saltou sobre a menina. Santuzza, num átimo, puxou um fio de cabelo seu e assoprou, transformando-o numa espada, que golpeou o animal, decepando-o em dois pedaços, que viraram texugos, e saíram aos pulos e gritos.

De repente, no topo de uma árvore, os texugos se uniram numa acrobacia mortal, virando uma gigantesca águia, que partiu em rasante em direção de Santuzza, que virou outra águia. As duas ficaram farfalando estrepitosamenbte as asas, guinchando e se bicando furiosamente no ar, até que uma delas alçou voo até a rosa-dos-ventos do sobrado e sumiram no céu, até desceram noutro rasante, até perfurarem o chão, abrindo uma fenda.

D. Virgílio e o caseiro apenas olhavam a cena, perplexos – dizia titia. Da fenda, saiu uma onça, tendo um lobo gigantesco em seu encalço. O lobo subjulgou a onça, que se transformou numa cobra com asas, que saiu voando; o lobo então virou um bugio dantesco.

O bugio pôs se a cagar, girando o enorme rabo viril e espartanamente como uma hélice, disparando suas fezes encantadas como uma feérica metralhadora, em direção da cobra voadora. Com destreza, ela escapou incólume da bateria anti-aérea, se transformando num corvo branco kamikaze que, com toda a pertinácia do mundo, contra-atacou em direção ao bugio.

Antes que pudesse esboçar reação, o macaco foi golpeado em cheio pela destra do corvo, se rasgando em dezenas de pedaços. O corvo, então, pôs-se no encalço dos pedaços do bugio, até devorar tudo. Porém, alguns pedaços foram rolando até um manatial. Os restos do bugio viraram uma enorme garoupa, e pulou dentro do manatial bufante.

O corvo deu outro rasante, se transformando, contudo, num pirarucu, mergulhando também no manatial.

- Meu Deus - gemeu titio.

- Desse manatial elas não escapam mais - respondeu o caseiro. - Já vi esse filme.

Vinte minutos depois, as águas pararam de borbulhar. Ambos ficaram olhando o manatial, como duas estátuas de sal.

Eis que, de repente, as duas saíram em forma humana da profundezas num salto monstro, até caírem de pé diante da vila de titio. Como um combate impossível, as duas trocavem raios e trovões, berrando palavras mágicas. Temendo pela própria pele, as duas testemunhas fugiram para um abrigo.

Santuzza disparou um raio em D. Lavínia que, com os olhos latejados em vermelho, soltou fogo pelo nariz, aniquilando o raio; a filha do caseiro escapou da onda de fogo, que foi parar no galinheiro, matando todas as galinhas e o galo também.

Novo embate. Porém, dessa vez eram tantos raios disparados que entre as duas mulheres formou-se um círculo de fogo, queimando toda a vegetação do local. Dez minutos depois, via-se cinzas pelo chão e Santuzza desmaiada.

D. Virgílio chegou perto da menina. Pegou em seu pulso. Ela estava viva! O caseiro, então, a abraçou e a pegou no colo:

- Santuzza! Deus seja louvado! - E puseram-se a berrar, a estapear o rosto, a chorar e a gemer.

Porém, mesmo virada em cinzas, a bruxa má lançou uma maldição. D. Lavínia vociferou que quando Santuzza completasse 18 anos, ela iria se transformar numa gata persa.

Ninguém ali acreditou nessa história. E os anos se passaram, a menina cresceu e todos se esqueceram da tal maldição. Até que, na festa de 18 anos de Santuzza, a maldição aconteceu. De repente, do nada, ela se metamorfoseou nessa gatinha persa que eu tenho aqui no colo.


Eu fiquei olhando para as duas, entre perplexo e confuso. Olhava nos olhos da gata, tentando tirar alguma coisas do olhar do animal. E algo me dizia que a gata me olhava de um jeito como se dissesse “acredite” e eu pensando no que eu poderia fazer para quebrar o encanto.

Nesse meio tempo apareceu Sara, muito bonita como uma modelo de Botero, com um vestido longo, parecia uma menina maquiada tentando parecer aparentar idade maior do que a dela.

Minha tia nos apresentou e ligou para o táxi. Ìamos pegar mais umas duas pessoas e partir para Ana Rech.

Quando descíamos a escada da casa, eu resolvi perguntar:

- Me diga uma coisa, de onde saiu aquela gata persa da tia?

- D. Lavínia deixou com ela semana passada, elas são muito amigas, titia e ela, desde crianças - explicou Sara. - Como D. Lavínia ia viajar num pacote turístico de cidades santas na Itália, não tinha com quem deixar a Santuzza com ninguém. E deixou com a titia.

- Ah – respondi, depois de um breve silêncio. Então continuei:

- É que...é que ela me disse uma história de uma maldição, de um desenlace entre duas gênias e a maldição, que na verdade essa gata persa é....

- Ah, esquece isso, guri – riu Sara. - Titia vive lendo livros. Livros! Sempre pede livros emprestada. Tá sempre embarafustada com algum livro na frente dela. Acho que ela está é ficando maluca de tanto ler livros. Então ela fica delirando essas coisas.

Novo silêncio – desta vez interrompido por Sara:

- Mas não vá espalhar que a titia está ficando senil, né.

- Prometo não contar para ninguém – respondi, enquanto chegava o táxi.


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