Wednesday, July 09, 2014

Como uma Onda


Capa do disco (inspirada no cartaz) da Bienal do
Samba da Record, 1968


A I Bienal do Samba da TV Record surgiu como um contraponto aos festivais de música da emissora. O certame, que ocorreu entre maio e junho de 1968, era um retorno ao tradicionalismo do gênero, que andava meio demodé no calor da hora dos festivais da época. Ao mesmo tempo, era a chance de que muitos intérpretes pudessem cantar "na sua própria língua" e, ao mesmo tempo, evitar a acirrada e progressiva politização dos outros festivais.

Ela também serviu para que ocorresse uma curiosa integração entre a velha guarda e os novos compositores, de Ismael Silva a Chico Buarque (na época, ainda "de Hollanda"). Numa das apresentações, a Record foi buscar em Vila Isabel a veterana Aracy de Almeida. Apresentando clássicos de Noel Rosa no palco do Paramount, ela teve que bisar três vezes. Porém, a vencedora foi "Lapinha", de Baden Powell e o jovem Paulo César Pinheiro, na voz de Elis Regina, que voltou a pontificar na era dos festivais, depois de "Arrastão", a vencedora do I Festival da Excelsior, e que moldaria o cânone das canções de certame a partir de então.

Em segundo lugar, veio "Bom Tempo", de Chico Buarque, com ele mesmo defendendo a canção; em terceiro, "Pressentimento", de Elton Medeiros e Hermínio Bello de Carvalho, com Maria Medalha e, em quarto, "Canto Chorado", de Billy Blanco, com Jair Rodrigues; em quinto, a hoje clássica "Tive Sim", de Cartola, com Cyro Monteiro. e o quinto, foi "Coisas do Mundo, Minha Nega", do Paulinho da Viola, com Jair Rodrigues.

Mas uma história que passou batido na época da Bienal, e que foi contada décadas depois por Zuza Homem de Mello (1) é a respeito de algo que não aconteceu: a participação de Tom Jobim no certame. Dentro daquele espírito de integração entre a velha e a nova geração. o compositor de "Chega de Saudade" foi convidado ao evento. Para a bienal, ele compôs uma bossa-nova, intitulada por ele "Onda".

Na verdade, Jobim tinha apenas o instrumental quando terminou a canção, enquanto trabalhava como arranjador nos Estados Unidos. Como Chico Buarque havia posto letra em outro tema seu, "Zíngaro" que passou a receber o nome de "Retrato em Branco e Preto", Tom chamou o autor da "Banda" para botar letra nesta também.

Chico matutou por dias a fio, entanto, tentando, tentando. Contudo, ele não conseguia passar do primeiro verso, "vou te contar". Tom cobrava o parceiro diariamente sobre a letra. Como é impossível pressionar as musas da inspiração, de nada adiantou: Chico desistiu, restando a Jobim a árdua tarefa (nada que ele não tivesse feito antes, com feito, no tempo de sua parceria com Newton Mendonça) de escrever os versos.

Teve tempo de enviar fresquinhas letra e música para a comissão julgadora da Bienal. O escalado para defender "Onda" não era ninguém menos que Roberto Carlos Braga. ele mesmo, o ídolo da Jovem Guarda. No entanto, no dia da primeira eliminatória, dia 12 de maio de 1968, ele tinha um compromisso inadiável: ia casar-se com Nice. Mais: naquele mesmo dia, estava embarcando para Nova Iorque, para a lua-de-mel.

A viagem, que iria se estender por mais duas semanas, acabou inviabilizando a participação de Roberto no Festival. Ou seja, além de interpretá-la e defendê-la na Bienal, Roberto Carlos poderia ter sido o primeiro cantor a gravá-la. A primazia, contudo, coube ao quarteto Vocal 004, com o título "Vou te Contar". A discretíssima gravação contou com a participação do próprio Tom, e saiu no único disco do grupo, intitulado Retrato e Branco e Preto, e que contou com aparticipação de Eumir Deodato e Ugo Marotta (que, à época, tocavam no conjunto do Roberto Menescal).

De acordo com Zuza Homem de Mello, o disco, lançado pelo selo obscuro Codil, em junho de 1968, virou um pocket-sdhow no Teatro Toneleros, em Copacabana, com a participação de Tom, Eumir e grande elenco, incluindo o malfadado parceiro de "Wave", Chico Buarque. a apresentação foi gravada em acetato e está à disposição de discófilos e curiosos da história da MPB, nos arquivos do Museu da Imagem e do Som, em duas versões: uma, instrumental com o Hepteto de Paulo Moura (que integrou o show) e a outra, com o Quarteto 004 cantando, tendo Jobim ao piano. Já Roberto desistiu de gravar "Wave" em seu disco daquele ano em favor de "Madrasta", de Renato Teixeira e Beto Ruschel (também oriunda de festival, como se sabe).

Meses depois do fim da Bienal do Samba, sairia no Brasil a versão de Tom Jobim para "Wave", no disco de mesmo nome, lançado pela A&M Records (aqui, o elepê saiu pela Fermata, subsidiária da selo de Herb Alpert) e com arranjos de Claus Ogerman. Frank Sinatra também faria o seu cover, no Sinatra And Company (arranjos de Eumir Deodato).

"Wave" iria tornar-se um standard, coverizado por vários artistas, como Stanley Turrentine, Oscar Peterson, Buddy Rich, Paul Desmond e Joe Pass (e a Sarah Vaughan!). Mas a versão que todos iriam se lembrar é a de João Gilberto, do disco Amoroso, de 1977 (também arranjado pelo mesmo Ogerman do disco de Jobim, dez anos depois).





(1) Zuza Homem de Mello. A Era dos Festivais. Editora 34, São Paulo, 2003.

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