Wednesday, July 02, 2014

Uma Pessoa Só




Foi destaque na imprensa, no final de junho: o Loki está comemorando 40 anos. Parece mentira. Quarenta anos! Se formos pesquisar na internet afora, vamos ver que não existe muito a acrescentar a respeito do aclamado primeiro disco solo do mutante Arnaldo Baptista, para que eu possa aqui fazer uma resenha decente com o fito de que pareça algo que não intranscenda do óbvio mais do mesmo.

Duas coisas chamam a atenção: a primeira, a longevidade do disco como cânone musical; a segunda, o conteúdo singular do álbum - e esse segundo fator, no fim das contas, está relacionado ao primeiro.

A verdade seja dita aqui: Loki perfaz aquele estereótipo do disco que estava à frente do seu tempo. Ele ficou encapsulado no tempo como obra de arte. No ano do seu lançamento, 1974, ele não tinha nada a ver com o tipo de produção fonográfica dita " de consumo" de sua época. Para tanto, basta lembrar que a música dos Mutantes estava se tornando, com a voga do progressivo, cada vez mais "difícil" e, por isso mesmo, cada vez mais anticomercial.

Como lemos na biografia da banda, a "Divina Comédia dos Mutantes", eles estavam pouco se lixando com o udigrudi, o banal e fútil que satisfaz. O que a banda queria era fazer o som deles, mesmo que a fundo perdido, como foi.

O corolário disso, como se sabe, foi a interdição do "O A e o Z". O problema não estava nem exatamente no descompasso entre o pensamento dos Mutantes e a política da gravadora, a Polydor.

Mais do que isso, o problema é que o Brasil nunca gostou de rock. O rock, ao contrário de outros países, nunca vendeu disco. É a velha história: o som dos Mutantes era para inglês ver.

Naqueles tempos bicudos, empunhar uma guitarra era sinônimo de pregar no deserto. Como dizem Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano num excelente livro (1), a partir de 1973, com a expansão da televisão, as trilhas de novelas passaram a exercer influência muito forte na formação de sucessos musicais, "impondo a maior parte das composições que integram o hit parade".

Logo, o "O A e o Z" não dançava no mesmo compasso da filosofia das gravadoras. A Polydor rescindiu o contrato com os Mutantes, o disco foi para a geladeira (ficou por vinte anos lá) e Arnaldo saiu da banda. Por ironia do destino, o selo que mais investia em trilhas de novelas, a Som Livre, talvez por conta do sucesso ainda proeminente do grupo, apostou no elepê seguinte, "Tudo foi Feito Pelo Sol".

Enquanto Sérgio Dias ainda tentava levar a barca mutante a singrar mais alguns anos pela contramaré dos anos 70, Arnaldo Baptista ficou para trás - tanto por seu purismo musical quanto por problemas pessoais.

Parece cruel exaltar uma obra que tenha nascido de uma dor explicável (ou não). Mas o fato é que, por todos os caminhos tortuosos possíveis, explicáveis ou não, "Loki" chama a atenção justamente pela singularidade de seu criador, o contexto musical e extra-musical.

A história da sua malfadada relação com Rita Lee é sempre citada como a tônica daquela tragédia pessoal que redundaria num dos maiores clássicos da música brasileira de todos os tempos. Existem várias versões (menos a de Rita), mas assim como muitos relacionam esse fator como o elemento catalisador dessa crise, outros, como Dinho Leme, não entendem dessa maneira.

A história na biografia dos Mutantes (escrita pelo Carlos Calado) mostra que episódios como o abuso de drogas por parte de Arnaldo, quanto ao seu extremo perfeccionismo, levaram ele a um abismo insuperável entre ele e a banda, e ele e Rita. Pelo que se depreeende do livro, Baptista subestimou qualquer possibilidade de separação e, quando deu por si, estava sem mulher, sem banda, sem gravadora, sem lenço e sem documento.

Quando Roberto Menescal, que era diretor musical da Polygram, reebeu a proposta de gravação do que viria a ser "Loki", ele se viu diante de uma oportunidade singular.
O célebre autor de "O Barquinho" tinha autonomia para fazer das suas - como o lançamento do Fa-tal, de Gal Costa - e agora tinha a chance de gravar Arnaldo Baptista com uma proposta surpreendente: um trabalho totalmente pessoal e à revelia do udigrudi que vendia disco.

Era um verdadeiro tubo de ensaio. É certo que falou mais alto a sua intuição. Ninguém mais, dentro do circuito fonográfico da época, seria capaz de entender aquela situação. Menescal conseguiu desdobrar a gravadora a lançar, num selo de visibilidade nacional, no tempo das trilhas de novelas, um disco que, desde o começo, estava fadado ao fracasso.

Se o ilustre leitor parar para pensar, se não fosse por Menescal, "Loki" não seria gravado - da mesma forma que, se a Polydor tivesse tomado conhecimento de do "O A e o Z" desde a pré-produção, seria outro trabalho natimorto.

No documentário "Loki", o próprio Menescal fala do que foi a gravação do disco. Arnaldo estava fragilizado e o que se pode falar do disco em si é que ele teve a chance de gravar uma inefável catarse.

O álbum, por si só, é uma pré-produção, quase a la Dylan. Quando Dinho e Liminha se davam conta, a tomada estava gravada. Baptista cortava as faixas solo, ao piano, sem partitura (como em "Honky-Tonky" que, aliás, mais parece uma peça clássica em sua concação), em canções sem refrão, e em letras que, em alguns momentos, perdem-se em tragicômicas digressões, como a nota social em "Navegar de Novo".

Se o que existe por detrás do universo poético de Arnaldo Baptsita fica perdido em hipóteses que giram em torno da sua vida particular, o que podemos interpretar já reside na forma como é a dor que somos nós quem sentimos.

Disso, é notável a sensação de abandono, de falar e esconder, de sublimar o discurso de um eu-lírico perdido, confuso, esquecido, com medo da solidão, sem saída, sem perspectiva, que ora parte para o remorso ("Desculpe"), ora cai no auto-deboche ("Vou Me Afundar na Langerie"), ora vai para a auto-imolação e o desejo de transcendência ("Não tô nem Aí") ora perde-se em desalento ("Será que eu Vou virar Bolor") ou apela para a mais lúgubre nostalgia ("Uma Pessoa Só"), na verdade, um "leftover" do do "O A e o Z".

Passados quatro décadas, o "Loki" ainda choca pela originalidade de um álbum que não encontra similar em toda a discografia musical (talvez encontre um cognato no "Pink Moon", do Nick Drake, ou não...). Sempre será difícil acreditar no que se ouve: a voz de um cantor-compositor cuja nota íntima espanta pela coragem de confessar o inconfessável.




(1) A Canção no Tempo - 85 anos de músicas brasileiras, volume 2 1958-1985 - Ed 34, São Paulo, 1998.

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