Wednesday, April 09, 2014

O Dia em que o Correio encarou a guarda


A traição da "cortesã"

Segundo Carlos Reverbel (1), que foi redator, repórter e editor do Correio do Povo ao longo de quarenta e seis anos - de 1934 até 1980, o matutino, fundado em 1895 por Cardas Júnior, a despeito de ter surgido sob a égide de uma linha editorial neutra - diferente da maioria da imprensa porto-alegrense de então, de caráter eminentemente polítco-ideológico, sempre foi apreciado e respeitado pelas altas esferas dos governos militares pós 1964. Segundo ele, mesmo os presidentes que não eram gaúchos tinham alguma relação com o Rio Grande do Sul. "Breno Caldas tinha acesso fácil a todos eles, que também tinham interesse em ficar de bem com o Correio", disse.

Não bastasse isso, como lembra Walter Galvani em seu panegírico (2) sobre a Caldas Júnior, a Folha da Tarde, tida como a "puta velha" do Dr. Breno, a partir de 1964, tinha em sua direção Ediberto Degrazia - ex sub-chefe da Casa Civil do Governo Ildo Meneghetti, um dos próceres que defenderam a queda do presidente João Goulart.

O curioso é que, da antiga Companhia Jornalística Caldas Júnior, os jornais que gozavam de maior "liberalidade" eram primeiro a Folha da Tarde, depois um pasquim que nascera da costela desta publicação, a Folha da Manhã. Esta, por sua vez, era tão "prafrentex" que encontrava resistência de fontes e de leitores. Tanto é que repórteres tinham que se dizer ligados ao Correio - a cortesã do poder - e não a Folhinha, que era sutilmente renegada até pelo seu patrão, Dr. Breno. Mesmo assim, ela fez história, e ainda merece uma biografia em livro (a Folha e o Correio já ganharam as suas).

Contudo, o Correio do Povo teve um problema com a censura, em pleno regime. A história foi a seguinte: o governo negava que houvesse censura à imprensa. No entanto, Rui Mesquita, então diretor do Estadão, mandou um telex ao Ministro da Justiça do Governo Garrastazu, Alfredo Buzaid arrazoando uma ordem apócrifa que havia chegado às redações proibindo qualquer referência à "abertura política ou redemocratização".

O tal memorando foi parar na redação do Correio, trazido por censores. O libelo do editor-chefe do Estadão dizia: "sinto vergonha pelo Brasil, degradado a uma condição de república de Uganda qualquer por um governo que acaba, de forma incrível, de decretar o ostracismo dos próprios companheiros de revolução". À guisa de conclusão, Mesquita disse: "Todos os que estão no poder hoje baixarão um dia. E então, senhor Ministro, como aconteceu na Alemanha, na Itália ou na Rússia, o Brasil ficará sabendo da verdadeira história desse período (...)".

O Correio resolveu dar uma gauchada, e publicou o telex apócrifo e o arrazoado de Rui Mesquita. A história foi parar na Capital Federal. As ordens lá de cima eram as de apreender aquela edição, do dia 20 de setembro de 1972.

Breno Caldas fez menção de resistir; alguns funcionários da casa, num rompante heróico de capa-e-espada, chegaram a se armar. Porém, quando o grosso do pelotão de choque cercou o vetusto Edifício Hudson, capitularam. A milícia cercava o prédio, da Sete até a Rua da Praia. O delegado da Polícia Federal foi ter com Caldas, no escritório do homem.

A matéria estava no noticiário da página 8, como cabeça de página. Irredutível, Breno disse que não ia refazer a edição, ou seja, não ia sacar a matéria, intitulada "LÍDERES DO GOVERNO NEGAM QUE MINISTRO DA JUSTIÇA QUEIRA CENSURAR A IMPRENSA".

- Então o seu jornal vai ser apreendido - advertiu o milico.

- Faça o que o senhor quiser. - respondeu o dono do Correio.

Toda a edição que havia rodado lá pelas 4 da manhã estava sendo transportada para os caminhões verde-oliva, cujo destino era a sede da PF, na Zona Norte de Porto Alegre.

Mas de fato toda a edição daquele dia foi aprendida? Não. Uma intrépida funcionária do departamento de Arquivo de Jornais da empresa, Francisca Espinosa, bancou a Antígona do Correio do Povo. Driblou os guardas e pegou um maço de exemplares. Como ela conhecia muito bem o prédio por dentro, conseguiu furtar o material debaixo dos bigodes da guarda sem ser descoberta. Desceu até o setor de impressão e saiu por uma passagem que só ela conhecia, até chegar no terceiro andar.

Prá quem quiser, no setor de Arquivo, está lá, intactos, os 20 exemplares salvos da censura naquele aziago 20 de setembro de 1972.

Desse dia em diante, o velho Correião não teve problemas extremos como esse. Contudo, como se sabe, quem estava com a cabeça à prêmio era, justamente, a filha rebelde da CJCJ, a Folha da Manhã - segundo Reverbel um jornal "avançado para a época, muito bem feito por uma geração brilhante de jovens jornalistas que começavam a sair das faculdades de comunicação".

De acordo com ele, no entanto, a ousadia da Folha da Manhã era a tendência "à esquerda" (como se fosse a única redação cheia de "comunistas" no Brasil. À bocca chiusa, muitos donos de jornal confessavam preferir os repórteres de esquerda pois, segundo eles, eram os mais produtivos). O problema é que esse pretenso esquerdismo da Folhinha não incomodava diretamente os militares; para Reverbel, os maiores incomodados eram os leitores do Correio.

- Não foi o governo militar que rejeitou a Folha da Manhã, mas sim os assinantes do Correio, que ameaçavam cancelar as suas assinaturas se a Caldas Júnior continuasse mantendo um jornal como aquele - explicou.

Três anos depois da gauchada do 20 de setembro de 1972, os militares pediram a cabeça de toda a cimeira da redação do jornal - entre eles, Luís Fernando Verissimo e Ruy Carlos Ostermann.

Ainda assim, a filha maldita e renegada da Caldas Júnior iria durar mais cinco anos, até 1980, quando Breno finalmente atendeu à demanda dos assinantes do Correio e pôs fim à aventura da Folhinha.



(1) Carlos Reverbel, Arca de Blau, Artes & Ofícios, Porto Alegre, 1993.
(2) Walter Galvani, Um Século de Poder - Os Bastidores da Caldas Júnior, Mercado Aberto, Porto Alegre, 1994.

No comments: