Friday, July 18, 2014

Dizzie e "Kerouac"


Bird e Diz


Lembro-me que tive em vinil um disco, chamado Legends Masterpieces (Best Tracks Remastered) do Dizzy Gillespie. Lançado pela Underground Inside Records, é uma colcha de retalhos, com gravações ao vivo. Bem ao estilo dos discos de Bebop da época, o show é captado de forma rudimentar. Em vinil até soa bem com bastante chiado. Contudo, na versão digital, o som fica frio e destituído de graves.

Sempre me chamou a atenção uma faixa, intitulada "Kerouac". Todos nós sabemos da importância do jazz na formação literária do autor de "On the Road". Mas o fato de existir uma faixa composta pelo papa do Bop como uma homenagem ao escritor beat, isso me fez tecer um rosário de hipóteses que levassem a alguma relação pessoal entre os dois. Relação essa que, por incrível que pareça, nunca existiu de fato.

Kerouac escreveu muito sobre jazz, falou que viu Mingus no Minton e outros músicos do gênero bem no auge, no fim da 2ª Guerra Mundial. Mas essa faixa em especial me levou a crer que Gillespie e Jack se conhecessem. Ledo engano. Na verdade, eu só fui descobrir a história por detrás da faixa muito tempo depois, quando achei o livro Alma Beat (coletânea muito boa, por sinal, infelizmente fora de catálogo há bastante tempo e difícil de achar em sebos), da LPM, esquecido no acervo da Biblioteca do Campus do Vale. A explicação está em um dos ensaios da obra: Beats e Jazz, do Roberto Muggiati.



A história é a seguinte: Dizzie e Kerouac nunca se conheceram pessoalmente e Jack ainda não era o célebre escritor. Naquele tempo, ele não passava de um entusiasta do Bop de 19 anos. Tudo começou quando um pioneiro de gravações do estilo, Jerome Newman (1918-1970), amigo de Kerouac, começou a frequentar inferninhos suarentos de jazz em Nova Iorque com um gravador de rolo. Com um acervo em mãos, decidiu fundar um selo, a Esoteric records.

A gênese do nome da faixa é um expediente típico do Bop. Era comum que intérpretes fizessem paráfrases de canções obscuras ou até funestas - ou simplesmente standards da canção norte-americana. Por exemplo, você pegava algo como "Ain't Misbehavin'" e fazia centenas de variações em cima de uma célula musical. O tema ficava tão desfigurado que poderia ser considerado uma nova canção. Então alguém inventava um título qualquer para ela e pronto.

Mugiatti cita exemplos dessa "técnica". "Lullaby of Birdland" era, na verdade, "Love Me or Leave Me" numa recriação do pianista George Shearing, que virava um fox brilhante. Pios "Kerouac" faz o mesmo percurso. Trata-se, por sua vez, de uma paráfrase de "Exactly Like You". "Como a melodia era diferente", explica Mugiatti, "Newman, na hora de lançar o disco, batizou a canção com o nome do colega, "Kerouac". de acordo com ele, também era uma forma de não ter que pagar direito autoral aos editores.

Aliás, na época em que Newman gravava os heróis do jazz em Nova Iorque, Kerouac, seu colega do tempo da Universidade de Columbia, veio à roldão, inclusive ajudando Jerome (ou Jerry) a descolar gravações. Foi naquele ano fatídico, 1941, que Jack descobriu o Bebop, a voz guia que iria revolucionar a sua escrita a partir da elaboração de "On the Road", oito anos depois.

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