Thursday, May 08, 2014

A Charneca e o Jardim


Machado de Assis



Estava relendo Iaiá Garcia (o motivo deste post meio maluco) Sempre tentei entender duas coisas sobre Machado de Assis.

Uma é por que ele é sempre considerado como um autor de ensino médio? “Que que eu vou querer com Machado de Assis? Isso é lá do tempo do meu 2º Grau”, dizia um amigo.

A outra é: por que um autor como Raymundo Faoro, autor do clássico Os Donos do Poder escreveria um ensaio sobre “um autor considerado de ensino Médio” (1)?

O que posso compreender das duas questões que botei aqui em cima é: Machado é leitura obrigatória na escola. Contudo, ele não é um escritor para jovens.

Como se sabe, o autor fluminense não publicava folhetim para jovens. Esse gênero jornalístico – típico da imprensa do Século XIX – era consumido por santas senhoras e senhores. E como todo jornalista, ele escrevia para o público desta ou daquela gazeta.

Mas Machado publicou todos seus folhetins em livro. Com o tempo, eles foram ganhando uma fortuna crítica. Foi através de gente como Faoro e muitos outros, que descobriu-se que sua obra transcende a leitura fugaz; foi através dessa gente que descobrimos que o “Bruxo do Cosme Velho” era mais do que um crítico de costumes. Na verdade, ele usou a literatura para fazer um radiograma de Brasil que, de lá prá cá, é praticamente o mesmo.

Um exemplo dessas possíveis leituras diversas de sua obra é Iaiá Garcia.


Publicado originalmente em o Cruzeiro, em 1878 e, mais tarde, em volume, pela Garnier, à primeira vista, Iaiá Garcia (2) é um romance romântico sobre a nobreza da renúncia de um amor.

Parece uma comédia de enganos: Jorge se apaixona por Estela, uma moça humilde, a mãe tenta dissuadi-lo e o faz pegar em armas e ir para a Guerra do Paraguai. No front, ele sonha com ela, até descobrir que o senhor Luís Garcia, confidente de seus arrufos, desposa a tal moçoila.

Garcia tem uma filha, Iaiá. Estela vira madrasta da menina, e sabemos que o consórcio se deu por causa da garota: ele não queria casar, não queria casar, mas as duas pareciam nascidas uma para a outra.

Jorge engole o despeito de ver seu confidente desposar a rapariga e seu amor jogado no ralo. No entanto, seu Garcia tem saúde fraca. Quer que Jorge vela por sua pequena família. Iaiá, agora moça, não gosta do major. Ele frequenta a casa deles. Ainda gosta da sua madrasta de forma quase ausente. O relacionamento entre os dois é impossível.

Elas não conhecem o pacto entre Luís e Jorge, e não entendem o porquê do moço visitá-los amiúde. Nesse meio tempo, outro homem, Procópio, conhece Iaiá e se apaixona por ela.

A antipatia entre a enteada de Estela e Jorge desaparecem. Na ausência daquele, os laços entre o filho de Dona Valéria e a pequena se estreitam até o paroxismo da paixão correspondida.

Procópio, como um duplo de Luís, transforma Jorge em confidente de seus amores por Iaiá, ante de partir a negócios numa longa viagem ao sul. Também fica sabendo da paixão frustrado do amigo pela Sra. Garcia.

Mas o amor fala mais alto: Jorge e Iaiá acenam para um casamento próximo. Quando volta, Procópio, agora como um duplo de Jorge, sabe do engodo: o seu confidente roubou-lhe a rapariga. O que fazer? Revela à garota o passado entre Estela e o major.

Nesse meio tempo, Luís morre. Num acesso de ciúmes, envenenada pela revelação, Iaiá, num rompante de ciúmes, acaba com o noivado e deixa todos perplexos. Agora, pateticamente enteada e madrasta viram antagonistas.

Segue-se um rebu entre as duas, só contornado por Estela, que diz que sim, eles tinham algo no passado. Contudo, hoje, não sente nada por Jorge. Era um amor do passado. Ou, num gesto extremo de nobreza, renuncia àquele amor.

Da mesma forma, temos um símile da situação do começo do livro. Antes, Jorge teve uma chance e foi levado a perder e aceitou. Agora, era ela quem teria a chance de, sabendo do grande amor de Jorge, por conta de um diálogo epistolar do tempo em que o rapaz lutava no Paraguai, ela poderia unir-se ao seu verdadeiro amor.
Ou seja, o desfecho poderia ser como o que Manuel Antônio de Almeida encontrou para o seu Memórias de um Sargento de Milícias: tipicamente romântico. Mas não era o que Machado de Assis tinha em mente.


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Num artigo, intitulado "A Novidade das Memórias Póstumas", Roberto Schwartz (3) vira o santo de cabeça para baixo.
Sua tese é a seguinte: no Brasil de Machado, havia duas classes, os "capitalistas" e os escravos. A misturinha desse sanduíche são as pessoas livres e pobres, os sem-culotes do Império.

Naquele tempo não existia mercado de trabalho, porque o trabalho era escravo. A forma que eles teriam de sobreviver era na base do favor, a proteção de um bem-nascido. Sem isso, você não era ninguém.

Prá explicar: um personagem que vocês conhecem (no universo machadiano), José Dias (de Dom Casmurro, naturalmente), um reles agregado. De charlatão, ele vira um arauto de uma viúva rica. No começo contra o casamento de Bentinho com Capitu, virou a casaca porque sabia que ia futuramente viver de favor do filho de D. Vitória.

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Schwartz explica que essa cultura brasileira meramente clientelista do "favor" está por trás dos quatro romances "românticos" de Machado de Assis - mais especificamente em Iaiá Garcia.

Segundo ele, nas relações de favor a realização passa pelo consentimento, pela captação do consentimento de uma pessoa proprietária”. Porém, existe uma certa “cumplicidade sistemática” do narrador a respeito do status quo. Assim, o estranhamento do enredo reside no fato de que vemos esse jogo de favores operar normalmente; por parte do autor, não existe nenhuma pretensão de denunciar isso abertamente.

A “denúncia” se dá no sentido de que Machado vai além do material romântico dos antecessores, Macedo e Alencar, que não mostravam claramente essa engrenagem. É essa a “primeira denúncia”, que opera em sua fase romântica

Para ele, no entanto, ao viver do favor, o sem-culotes tem que ser ladino, dançar conforme a música, e, na sua expressão (espero não estar descaracterizando o pensamento dele), engolir sapos. Ou seja, não se trata de malandragem: é a luta pela sobrevivência (ideia que vai ser retomada pelo autor mais tarde)

Nesse sentido, a sem-culotes de Iaiá Garcia é Estela. Ela é filha de um burocrata de terceira categoria. Jorge se apaixona por ela e, sendo rico, acha que pode cortejá-la sem nenhum porém. Porém, existe uma gama de relações "de favor".

O pai dela e Luís Garcia são o que hoje se poderia chamar de contínuo de sinecura. Estão onde estão porque alguém os colocou lá. Jorge faz uso de sua autoridade social para obter Estela. D. Valéria consegue mandá-lo para a guerra, e empurrá-la para Garcia.

Aqui é Estela quem aproveita a chance de subir na vida. O casamento é de favor e só acontece porque ela, usando de engenho e arte, "seduz" Luís ao demonstrar afeição parental por Iaiá. Ela engole o sapo empurrado goela abaixo empurrado pela imperativa e imperiosa mãe de Jorge.

O sapo lhe cai mal, mas lhe cai bem. Ela tem um casamento de sonho para quem pode, de comum acordo com o noivo, virar uma governanta de luxo. Estela pode ter analisado friamente: Jorge vai me largar na primeira esquina (como Félix, no começo de Ressureição, lembra?).

Ela age pelos seus instintos. Muito mais tarde ela vai saber que o amor do rapaz era profundo e verdadeiro. Mas, aqui, ela sabe que esse casamento lhe dará a sobrevivência. Essa revelação vai aparecer quando Luís finalmente morre e Iaiá e Estela se desentendem.

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Pegando o mote do Schwartz, relendo o fim do livro, podemos entender que Machado foi tão pessimista, irônico e cínico quanto seria em sua fase realista. Estela faz e recebe favores, de forma fria. Por que? Porque ela quer ser limpinha, embora ache o processo meio degradante, o que ela poderia fazer? Apenas agir friamente. Ou dissimular: pega o irredutível viúvo pelo seu calcanhar-de-Aquiles, a filha dele.

Na fórmula romântica, Machado sublima essa cruel equação, que causa um acerta náusea: pobres serviçais e proprietários onipotentes. Ainda está dentro do "esquema". Ele iria inverter isso na fase realista, quando caricatura os protagonistas de Memórias e Dom Casmurro - mostrando um retrato devastador da classe proprietária, a partir do ponto-de-vista deles, Brás Cubas e Bentinho.

Em Dom Casmurro, a "moça do favor" é a famélica Capitu. É ela quem, ardilosa e pacientemente, puxando um fio, consegue seduzir Bentinho a largar a batina e casar com ela.

Capitu é uma espécie de My Fair Lady às avessas: ela é quem tem a ambição de se tornar uma bela dama, não é vítima de um sortilégio ou aposta. Ela toma a iniciativa para salvar-se, e dá o golpe no baú; é ela quem faz o filho de D. Vitória sair do Seminário. Ele estava totalmente passivo com relação a isso. Por Bentinho, ele teria ficado lá.

Ele se dá conta do embuste quando Escobar morre. Sua razão de viver acabou. Ao invés de viver feliz para sempre na igreja com seu querido Escobar, Bentinho largou a batina por um casamento infeliz – Mas que beneficiou Capitu. Ele se sente enganado pelo embuste da My Fair Lady sem-culote e desconta todo o seu ódio senhorial àquela moça pobre que subiu na vida às costas dele, um proprietário. Seu objetivo agora é esmagá-la.

Da mesma forma, assim podemos entender o ódio rancoroso de Iaiá Garcia com Estela, quando seu pai morre. A morte de Luís acaba com o contrato de favor, e escandaliza Iaiá ao ver-se no meio de um singularíssimo (como diria Augusto dos Anjos) triângulo amoroso e percebe que sua madrasta pode roubar-lhe Jorge.

No fim, Capitu e Estela vão para o degredo: A esposa de Bentinho parte para a Europa e Estela, por ironia do destino, se torna educadora no interior de São Paulo (Machado podia literalmente matá-la de culpa, deixando-se morrer por um golpe de ar, por exemplo. Porém, já havia feito o mesmo com Helena).

No entanto, em Iaiá Garcia, há o desfecho romântico. Em Dom Casmurro, é claro que não, de forma alguma. Machado quer mostrar a brutalidade pela voz do proprietário.

Não existe aquela relação (até certa forma) consentida entre proprietários e favorecidos dos quatro primeiros romances do autor. Aqui, Machado quer mostrar, em primeira pessoa (como em Brás Cubas), o proprietário enfiando a botina na cara dos pobres sem-culotes.


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O próprio nome do romance ironicamente desvia o foco: toda a história gira em torno de Estela, tudo acontece por causa dela. Iaiá Garcia é a sua antagonista. Mas como estamos num romance romântico, o título deve referir-se à heroína romântica. Não a sem-culotes.

O fim de Iaiá Garcia é uma flor de cinismo. No capítulo XVI, Estela tenta convencer sua enteada que não quer Jorge, dizendo "não há nada eterno neste mundo, nada, nada. As mais lindas paixões morrem com o tempo." E concluí, cinicamente: "um homem sacrifica o repouso (...) e essa paixão violenta e extraordinária acaba às portas de um simples namoro, entre duas xícaras de chá".

Amor eterno entre duas xícaras de chá. Iaiá pergunta se Estela nunca o amou. Sua resposta é o momento crucial da história, é o credo de Estela, a ária do terceiro ato, e que faz com que tenhamos que entender a mola mestra do romance (os grifos são meus. Desculpem a longa citação):


Havia entre nós um fosso largo, muito largo, disse Estela. Eu era humilde e obscura, ele distinto e considerado; diferença que podia desaparecer, se a
natureza me houvesse dado outro coração. Medi toda a distância que nos separava e tratei simplesmente de evitá-lo. Foi então que ele embarcou;
interiormente aprovei-o. Talvez lhe não neguei um pouco de compaixão silenciosa, mas nada mais. Casamento, entre nós, era impossível, ainda que todos
trabalhassem para ele; era impossível, sim, porque o consideraria uma espécie de favor, e eu tenho um grande respeito a minha própria condição. Meu pai já me achava, em pequena, uns arremessos de orgulho. Como querias tu que, com tal sentimento, pudesse desposar um homem, socialmente superior a mim? Era
preciso dar-me outra índole. Todas as felicidades do casamento achei-as ao pé de teu pai. Não nos casamos por amor; foi escolha da razão, e por isso acertada. Não tínhamos ilusões; pudemos ser felizes sem desencanto. Teu pai não tinha os mesmos sentimentos que eu; era mais tímido que orgulhoso. Qualquer que fosse a razão do seu desapego ao mundo, bastava que o tivesse, para me fazer feliz; vivemos assim alguns anos de inteiro isolamento, sem conhecer o amargor, que é o que fica no fundo da vida, sem necessidade da dissimulação... Minto; tive necessidade de fingir, desde que aquele homem aqui apareceu; era necessário. Um dia teu pai mostrou-me essa carta e referiu-me a paixão encoberta que aí se conta; podes imaginar se ouvi tranqüila. Mas fora desse acontecimento, que outro podia perturbar minha alma? Não vi
nenhuma porta abrir-se-me por obséquio, nenhuma mão apertou a minha por simples condescendência. Não conheci a polidez humilhante, nem afabilidade sem calor. Meu nome não serviu de pasto à natural curiosidade dos amigos de meu marido. Quem é ela? Donde veio? Ninguém me perguntou donde vinha, não é
verdade? Perguntaste-me quem era eu?
Não; amaste-me como tinhas amado tua mãe, e eu amei-te, como se foras minha filha. E para isto bastou-nos estender os
braços; não foi preciso descer nem subir.
— Não foi, bradou Iaiá comovida, apertando-lhe as mãos.
— Já vês quem eu era e sou; uma espécie de animal feroz, que prefere a charneca ao jardim. Não me senti lisonjeada com a paixão que inspirei; rejeitei, talvez, um marido digno das ambições de qualquer mulher. Era isto o que querias saber? Pois aí tens a minha história, a história dessa carta, que já agora podemos rasgar...

Qual seria o “outro coração”? O coração passional, romântico que, em se tratando de uma sem-culotes, foi a desgraça de Cecília, em Ressureição, abandonada por Félix. Não quis nada com ele porque seria “um favor”, mas um favor além da sua capacidade de “humilhar-se”, era preciso “outra índole”, muito embora preferisse a charneca ao jardim.


O casamento com Luís lhe era, pois, tangível, porquanto ambos eram socialmente cognatos. Ela sabia que um homem “socialmente superior” não ia trata-la de igual para igual. Ela não ia ser doida de ceder aos caprichos da parte proprietária. Estela é a anti-Cecília, a anti-Eugênia, Jorge pode ser um proto-Brás Cubas. Estela conhece esse jogo: não vai cair nele. Sua virtude é a sua frieza sentimental. Essa é a grande “renúncia” do livro – que chega ao paroxismo de jurar, mesmo sabendo do verdadeiro coração profundo de Jorge, que não o ama, não o quer, não tem atração por ele, prefere virar uma “assalariada” (como o fez Machado) a envolver-se com o rapaz, já que, dessa vez, sua atitude iria soar, de certa forma, "imoral".

Schwartz é quem observa: “Tanto Luís Garcia como Estela têm um lado de peixe-morto que eles alcançaram a duras penas, e que é a arma que eles conseguiram para não serem degradados”. Como diz o poeta, quem mora entre feras tem a necessidade de ser fera.

E é isso o que literalmente diz o pai de Estela, quando descobre que ela quer partir, e fica horrorizado e perplexo em saber que ele era apaixonado por ela e, mesmo assim, renuncia ao amor:

— Tu chegaste a amá-lo! exclamou ele. Não o aborrecias? Amaram-se? E só agora
sei... Bem digo eu; tu és uma fera.



E, perplexo, com a maior cara-de-pau, conclui:


- Não tens, nunca tiveste pena de minha
velhice... Ele é tão bom! tão digno! E se morresse por tua causa? não terias
remorso? não te havia de doer o coração quando soubesses que um moço tão
bem-nascido, que gostava de ti... Sim, ele gostava muito de ti; e tu também... e
só hoje!


Ora, "não tem pena da minha velhice?". Ora, o pai está preocupado com a felicidade da filha, que ele considera "orgulhosa" e que "nunca fez nada de certo"? Fica a pergunta prá vocês, caros leitores (uns 23) (não me devolvam).

Como bem diz Roberto Schwartz, a moral da história do Machado pré-realista (ou "realista") é mostrar essas regras de conduta, de forma a que os personagens saibam viver sem degradarem-se, ou “civilizar a relação para que ela não seja tão degradante”. Aqui, o autor não critica o clientelismo; o direito dos proprietários não é posto em dúvida.

O caráter desumano e opressor não mostra a sua cara. Machado precisou virar o santo, e criar um proprietário defunto que não tivesse língua presa ao contar as suas sórdidas vicissitudes. Esse é o delírio de Brás Cubas, o livro que iria ser o Machado de Assis, o nosso Raymundo Faoro do ensino médio.



Notas:

(1) FAORO, Raymundo. A pirâmide e o trapézio. São Paulo: Ed. Globo, 2001.
(2) ASSIS, Machado. Obras completas em 4v. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.
(3) SCHWARZ, Roberto. Machado de Assis: um debate. In: Novos estudos n.29, março de 1991, p.59-82


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