Tuesday, April 01, 2014

As Flores e o Canhão


Vandré no Festival de 1968: aclamado pelas vaias à Sabiá

Quando voltou do exílio, em 1973, Geraldo Vandré foi preso ao desembarcar do voo doméstico que o trazia de uma forçada turnê entre a Europa e a América do Sul. A alegação é que ele era o autor de “Prá Não Dizer Que Não Falei de Flores”. Além disso, ele teria dado declarações contra o governo nacional no exterior.

É irônico pensar hoje que, de certa forma, toda a fama da música que o compositor paraibano inscreveu no Festival da Canção de 1968 foi causada, em grande parte, por causa de toda a história da censura que esta sofreu, a partir do seu lançamento, logo após o certame. A canção foi banida por uma década mas não foi esquecida. E, ao que parece, o banimento a promoveu - prova-dos-nove de que a censura é, foi e sempre será um afrodisíaco irresistível.

Ela poderia ter quase caído no esquecimento, como "Margarida", de Guarabira. Que, com efeito, foi a campeã do II Festival Internacional da Canção Popular. Não. “Prá Não Dizer Que Não Falei de Flores”, além de vice, virou símbolo de uma geração que caminhava para o cadafalso.

O compacto, editado pela Som Maior, trazia as duas versões: a de estúdio, mais contida, embora com um arranjo de violões muito bonito e expressivo.

No lado B, porém, escutamos a versão mais emblemática de “Caminhando”. Gravada ao vivo em pleno Maracanazinho lotado, no calor da hora do Festival, ela é, a um só tempo, o registro de uma época – época essa em que as liberdades sociais e políticas foram sendo tolhidas com o AI - 5, no rastilho do fatal corolário do Golpe de 1964 - deflagrado há exatos 50 anos, num glorioso 1° de abril) o ambiente daqueles certames havia catalisado toda a pressão social daqueles idos de 68, quando parecia que tudo ia mudar.

No palco, de forma surpreendente, Vandré capitulava. O homem que brigou com meio mundo e travou uma cruzada pessoal e solitária com uma canção de dois acordes aceitou a decisão do júri. Mais: ofereceu a outra face, elogiando os autores de Sabiá – Tom Jobim e Chico Buarque de Hollanda – e dando adeus à inocência diante de uma plateia ensurdecedora que vaiava a decisão do júri.

Ato reflexo, começa a tocar, de forma dramática. A platéia exulta ao fim de cada estrofe (como quando ele diz "morrer pela pátria e viver sem razão").



Você pode não gostar nem de Vandré, nem da música, mas é impossível ficar incólume à maneira como o público vai, aos poucos, passando do silêncio à catarse, até quando, no fim, entoam juntos o refrão. Vandré, possivelmente admirado, chega a errar um acorde. Ninguém percebeu, mas está no disco.

O compositor, mais conhecido por “Disparada” do que com “Porta-Estandarte” ou “Rancho da Rosa Encarnada”, “Aroeira” ou “Ventania”, escreveu um pequena marselhesa agreste. De quebra, de forma conativa, incitava o ouvinte a luta.

De certa forma, a canção foi emblemática também como o fim de um ciclo. A partir dali, o ambiente de festival sofreria um esvaziamento, total perda de sentido, uma crise de identidade. A MPB se exilava. Era o começo da tempestade.

Um militar, o general Luís de Oliveira, então Secretário da Segurança do antigo Estado da Guanabara, chegou então a declarar ao falecido Correio da Manhã que os indecisos cordões de “Prá Não Dizer Que Não Falei de Flores” eram de uma música “ofensiva à soberania nacional e um achincalhe às Forças Armadas”. Talvez essa seja a melhor crítica à segunda colocada do FIC – dada a torpeza de sentimentos em tal afirmativa. Quem não gostaria de ouvir essa tal música que ameaçou a soberania de um país?

É de se pensar em como as canções têm esse poder – se não o de querer mudar o mundo ou as pessoas (Vandré, de forma enigmática, dizia que não era compositor de protesto), o de fazer muitos acreditarem que ela seja capaz de tal façanha.

Mas eles tinham medo de uma canção. e promoveram uma perseguição absurda, coisa de tiranos contra um mero artista, uma pessoa que estava apenas realizando seu pleno exercício de liberdade de criação. Como ele disse no palco: "a nossa função é de fazer canções" (enquanto o Maracanazinho, com gente até no lustre (como diria Nelson Rodrigues) gritava em coro "é marmelada, é marmelada").

Uma canção realmente tem o poder de mudar o mundo? Pelo menos a ponto de ser uma ameaça à soberania nacional? Por menos que isso, por exemplo, meses após o retorno de Vandré ao Brasil, Victor Jara seria eliminado fisicamente por causa de suas músicas. O ódio dos generais chilenos era tamanho que destruíram inclusive os masters de seus discos. Em suma: queriam apagá-lo da história.

Não conseguiram. E Vandré sobreviveu à censura - inclusive ao próprio ostracismo (e ao auto-ostracismo quando este declarou, no fim dos anos 70, que Vandré era um personagem de um certo Geraldo Pedroso de Araújo Dias) por causa de sua música.

O fascículo da História da Música Popular Brasileira dedicada a Vandré (publicada em 1978, pela Abril) não trazia “Prá Não Dizer Que Não Falei de Flores”. A música era proibida (o fascículo, se a contivesse, poderia atentar à soberania).

Muitos foram os casos de canções censuradas no Brasil. Muitas nasceram mortas na ditadura (o que dizer de canções que não puderam nascer?). “Prá Não Dizer Que Não Falei de Flores” sobreviveu ao exílio, à censura, à indiferença do seu próprio autor. É um caso de se estudar. E, de certa forma, a censura a fortaleceu. Renasceria na voz de Simone (numa versão em ritmo de chacarera) naquele disco ao vivo, dez anos depois da versão original.

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Mudando de assunto (e ficando no mesmo) me lembro de um episódio, que não me recordo de onde li ou ouvi: era um jovem casal. Ele, esquerdista roxo, enragé de primeira ordem, adepto da luta armada, queria “Prá Não Dizer Que Não Falei de Flores”. Sua namorada, no entanto, preferia “Sabiá”.

Ele brigou com ela porque ele achava o tema de Jobim e Chico “alienada”. Um dia, ele caiu na ilegalidade. Conseguiu fugir da perseguição política e exilou-se. Dez anos depois, ele voltou.

No saguão do aeroporto, eles se reencontram. Ele, mudado, com uma barba de vinte dias, a roupa amarfinhada, como de quem tivesse carregado o mundo nas costas durante todo aquele tempo.

Depois das juras de amor, ele olhou nos olhos dela e disse:

- Você tinha razão, Sábia é a mais bonita.

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Vandré nunca mais a promoveu. O tempo passou, mas ela nunca perdeu sua magia. Muitos reclamam que Vandé nunca mais gravou nada. Não precisaria. “Prá Não Dizer Que Não Falei de Flores” é mais expressiva que dez mil variações sobre “Aroeira” que, por sua vez, soava quase como uma variação de “Disparada”.

Sua discografia hoje se resume a alguns discos esgotados (quando ele ainda era o romântico cantor a la Sérgio Ricardo (quando este também era apenas um cantor romântico) e o emblemático elepê Canto Geral, e outro álbum, gravado na França, nos anos 70. “Prá Não Dizer Que Não Falei de Flores” estará sempre associada àquela metáfora das cordilheiras desabando sobre as flores, flores que todos acreditavam que podiam vencer o canhão.

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