Braguinha
Maracanã, Campeonato Mundial de Futebol, dia 13 de julho de 1950. Estádio lotado ou, como diria Nelson Rodrigues, com “gente até no lustre”. Naquela tarde, a Seleção enfrentava a Espanha. Quando Chico tinha acabado de meter o quarto gol na cidadela adversária (aos onze do 2º tempo), quem estava nas arquibancadas pôde assistir a uma cena inesquecível.
Alguém começou a puxar a marchinha “Touradas em Madri”. Numa progressão fulminante, todas as 200 mil almas começaram a cantar junto:
Eu fui às touradas em Madri
E quase não volto mais aqui
Pra ver Peri beijar Ceci.
Eu conheci uma espanhola
Natural da Catalunha;
Queria que eu tocasse castanhola
E pegasse touro à unha.
Caramba! Caracoles! Sou do samba,
Não me amoles.
Pro Brasil eu vou fugir!
Isto é conversa mole para boi dormir!
..........................................................
Lançada para o Carnaval de 1938, “Touradas Em Madri” foi injustiçada naquele ano. Na noite de sexta-feira, dia 25 de fevereiro, ou seja, na véspera dos festejos de Momo, a Prefeitura do então Distrito Federal realizou o tradicional concurso de marchinhas.
Gravada originalmente por Almirante na Odeon, no dia 28 de novembro de 1937, o disco foi lançado (junto com "Yes, Nós Temos Bananas") no suplemento de novidades carnavalescas do selo em janeiro do ano seguinte (como acontecia com todas as marchinhas concorrentes ao Carnaval).
O resultado perpretado pelo júri foi o seguinte: em primeiro lugar, “Touradas em Madri”, de autoria de Alberto Ribeiro e João de Barro. Em segundo, “As Pastorinhas”, também de Braguinha, porém em parceria com Noel Rosa, seguidos por “Sereia” (Alvarenga e Ranchinho). A vitória, contudo, durou até segunda, quando os jornais anunciaram a anulação do certame.
O motivo era o não comparecimento do presidente da Comissão anunciada no edital na data aprazada da apuração. Segundo Zuza Homem de Mello (1), a tal anulação não passou de pura marmelada: os demais perdedores haviam entrado com ação contra a escolha do júri.
A alegação era a de que “Touradas em Madri” na verdade não era “música brasileira” mas, sim, uma estilização de passodoble, ou seja, um ritmo não-autóctone. Para eles, de acordo com o edital, isso resultaria na virtual eliminação do tema.
Assim, na tarde do dia 28, ocorria nova eleição. As vitoriosas, desta vez, foram “As Pastorinhas”, “O Cantar do Galo” (Benedito Lacerda e Darcy de Oliveira) e “Ali Babá” ((Roberto Roberti e Arlindo Marques Júnior).
Em seu depoimento para o seu fascículo História da Música Popular Brasileira, da Abril, Braguinha comenta que inscrevera “As Pastorinhas” pela desfeita com “Touradas”. No entanto, a coisa foi mais longe: houve uma guerra, capitaneada por Mário Lago perante ao público, naturalmente pressionando o júri para que aquela vencesse.
Outro foi um entrevero entre Nássara e João de Barro. Por puro despeito — pelo fato da sua marchinha “Periquito Verde” ter sido desconsiderada pelos jurados — o autor de “A-la-la-ô” debochou de Braguinha, dizendo que quem havia vencido o certame era o espírito de Noel Rosa, o célebre co-autor de “As Pastorinhas”. Os dois se engalfinharam, no calor da hora, sendo apartados incontinente por Ari Barroso se a turma do deixa-disso.
Para ver como o tempo cuida de colocar tudo nos devidos lugares, “Touradas em Madri”, além de várias outras criações de Braguinha, seria eternizado pelos próximos carnavais.
.......................................................
Naquela tarde, todos no estádio cantavam “Touradas em Madri” — menos um sujeito, presente nas cadeiras cativas. Ao contrário, ele estava com a cara afundada nas mãos, imagem típica do desespero.
— Ensinem esse espanhol a cantar! — gritou um gaiato, ao ver o tal sujeito a chorar copiosamente.
O Maracanã continuava cantando. O torcedor se impacientou e gritou mais alto, para que o pobre diabo ouvisse:
— Olha como esse cara tá quieto, só pode ser espanhol...coitado.
Mais um gol, e o coro recomeça:
Eu fui às touradas em Madri — parará-tim-bum, bum, bum!
Quando o jogo termina e a torcida festeja a vitória final — um sonoro e inapelável seis a um, aquele homem inconsolável pôde, então, se recompor e se levantar. O nome do torcedor “espanhol” era Carlos Alberto Ferreira Braga, o Braguinha, vulgo João de Barro, o autor da execrada “Touradas em Madri”. E, doze anos depois, já entronizada como clássico, ela seria lembrada por um Maracanã lotado — e pelo resto do Brasil — para sempre.
(1) Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello. A Canção do Tempo, 85 anos de músicas brasileiras, Volume 1: 1910-1957
No comments:
Post a Comment