Monday, May 19, 2014

Touradas no Maracanã


Braguinha


Maracanã, Campeonato Mundial de Futebol, dia 13 de julho de 1950. Estádio lotado ou, como diria Nelson Rodrigues, com “gente até no lustre”. Naquela tarde, a Seleção enfrentava a Espanha. Quando Chico tinha acabado de meter o quarto gol na cidadela adversária (aos onze do 2º tempo), quem estava nas arquibancadas pôde assistir a uma cena inesquecível.

Alguém começou a puxar a marchinha “Touradas em Madri”. Numa progressão fulminante, todas as 200 mil almas começaram a cantar junto:

Eu fui às touradas em Madri
E quase não volto mais aqui
Pra ver Peri beijar Ceci.
Eu conheci uma espanhola
Natural da Catalunha;
Queria que eu tocasse castanhola
E pegasse touro à unha.
Caramba! Caracoles! Sou do samba,
Não me amoles.
Pro Brasil eu vou fugir!
Isto é conversa mole para boi dormir!



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Lançada para o Carnaval de 1938, “Touradas Em Madri” foi injustiçada naquele ano. Na noite de sexta-feira, dia 25 de fevereiro, ou seja, na véspera dos festejos de Momo, a Prefeitura do então Distrito Federal realizou o tradicional concurso de marchinhas.

Gravada originalmente por Almirante na Odeon, no dia 28 de novembro de 1937, o disco foi lançado (junto com "Yes, Nós Temos Bananas") no suplemento de novidades carnavalescas do selo em janeiro do ano seguinte (como acontecia com todas as marchinhas concorrentes ao Carnaval).



O resultado perpretado pelo júri foi o seguinte: em primeiro lugar, “Touradas em Madri”, de autoria de Alberto Ribeiro e João de Barro. Em segundo, “As Pastorinhas”, também de Braguinha, porém em parceria com Noel Rosa, seguidos por “Sereia” (Alvarenga e Ranchinho). A vitória, contudo, durou até segunda, quando os jornais anunciaram a anulação do certame.

O motivo era o não comparecimento do presidente da Comissão anunciada no edital na data aprazada da apuração. Segundo Zuza Homem de Mello (1), a tal anulação não passou de pura marmelada: os demais perdedores haviam entrado com ação contra a escolha do júri.

A alegação era a de que “Touradas em Madri” na verdade não era “música brasileira” mas, sim, uma estilização de passodoble, ou seja, um ritmo não-autóctone. Para eles, de acordo com o edital, isso resultaria na virtual eliminação do tema.

Assim, na tarde do dia 28, ocorria nova eleição. As vitoriosas, desta vez, foram “As Pastorinhas”, “O Cantar do Galo” (Benedito Lacerda e Darcy de Oliveira) e “Ali Babá” ((Roberto Roberti e Arlindo Marques Júnior).

Em seu depoimento para o seu fascículo História da Música Popular Brasileira, da Abril, Braguinha comenta que inscrevera “As Pastorinhas” pela desfeita com “Touradas”. No entanto, a coisa foi mais longe: houve uma guerra, capitaneada por Mário Lago perante ao público, naturalmente pressionando o júri para que aquela vencesse.

Outro foi um entrevero entre Nássara e João de Barro. Por puro despeito — pelo fato da sua marchinha “Periquito Verde” ter sido desconsiderada pelos jurados — o autor de “A-la-la-ô” debochou de Braguinha, dizendo que quem havia vencido o certame era o espírito de Noel Rosa, o célebre co-autor de “As Pastorinhas”. Os dois se engalfinharam, no calor da hora, sendo apartados incontinente por Ari Barroso se a turma do deixa-disso.

Para ver como o tempo cuida de colocar tudo nos devidos lugares, “Touradas em Madri”, além de várias outras criações de Braguinha, seria eternizado pelos próximos carnavais.
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Naquela tarde, todos no estádio cantavam “Touradas em Madri” — menos um sujeito, presente nas cadeiras cativas. Ao contrário, ele estava com a cara afundada nas mãos, imagem típica do desespero.

— Ensinem esse espanhol a cantar! — gritou um gaiato, ao ver o tal sujeito a chorar copiosamente.

O Maracanã continuava cantando. O torcedor se impacientou e gritou mais alto, para que o pobre diabo ouvisse:

— Olha como esse cara tá quieto, só pode ser espanhol...coitado.

Mais um gol, e o coro recomeça:

Eu fui às touradas em Madri — parará-tim-bum, bum, bum!

Quando o jogo termina e a torcida festeja a vitória final — um sonoro e inapelável seis a um, aquele homem inconsolável pôde, então, se recompor e se levantar. O nome do torcedor “espanhol” era Carlos Alberto Ferreira Braga, o Braguinha, vulgo João de Barro, o autor da execrada “Touradas em Madri”. E, doze anos depois, já entronizada como clássico, ela seria lembrada por um Maracanã lotado — e pelo resto do Brasil — para sempre.



(1) Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello. A Canção do Tempo, 85 anos de músicas brasileiras, Volume 1: 1910-1957


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