Wednesday, March 30, 2011

Os enredos mentais de Josué Guimarães


Josué


Josué Guimarães foi um escritor singular: antes, porém, foi jornalista por meio século e, assim como sucedeu ao compositor belga Cesar Franck, floresceu a plena madureza de sua arte já em idade avançada. O debut literário viria apenas em 1972. Ou seja, sua fase como autor durou apenas quatorze dos seus sessenta e cinco anos.


É como se todo o período em que Josué militou na imprensa fosse uma espécie de preparação para a literatura. E o mais peculiar nisso é que o jornalismo lhe franqueou o engenho e a arte necessários para a sua técnica de criação literária.

Segundo Nídia Guimarães, sua companheira de muitos anos, ele tinha a obsessão em escrever enredos mentais: se por acaso ele tivesse uma história na cabeça, descrevia tudo aos seus amigos mais chegados.

Enquanto ele contava, ia resolvendo a trama a cada bate-papo; e a cada vez que ele discursava seu fluxo de consciência, mais elaborada a prosa ia ficando. Ao mesmo tempo, ia resolvendo questões de tempo e espaço na história ou criava novos personagens.

De acordo com Nídia, só depois que ele maturava a coisa toda é que ele sentava diante a máquina de escrever e se punha a passar tudo para o papel.

Um exemplo é Camilo Mortágua. A obra, que compreende mais de 300 páginas fora escrito em apenas dois meses; Os Tambores Silenciosos, por sua vez, Guimarães o completou em apenas 28 dias. Já o excepcional e emocionante É Tarde para Saber, uma semana.

Por conta disso, ao contrário da maioria dos escritores, Josué não fazia anotações, originais ou rascunhos. Ao tocante ao seu estilo, com efeito, não há nada e tão anormal nisso: apenas e justamente fruto de seu vício de jornalista.

A celeridade de ser instantâneo ao escrever com um deadline pendendo sobre sua cabeça como a espada de Damocles o fazia metralhar a máquina, sem tempo para voltar atrás. O texto, mesmo assim e por conta disso mesmo, saia escorreito; ao contrário se seu amigo, Erico Verissimo, que trabalhava em cima de originais, sempre em espço três - a fim de correções ou ilustrações, Josué entregava o texto pronto direto para o prelo.

Aliás, por conta de seu trabalho como redator vocacional (ele também trabalho em rádio) e pelo fato de se lançar como autor já em idade provecta, Guimarães nunca se considerou um escritor de verdade. Muito menos de se sustentar como tal, assim como aconteceu a Verissimo, que foi certamente o primeiro a viver estritamente de ganhos com vendas de livros.

Além disso, havia a falta de tempo e a militância política desde o começo. É aquela história: todo jornalista deve ter um livro cravado dentro de si, como o menino dentro do adulto. Por essas e outras, e mais a falsa modéstia, ele levou muito tempo até se convencer de que era realmente um homem de letras.


Um episódio que ilustra bem o processo de criação de Josué foi contado, certa feita, pelo idealizador da LPM, Ivan Pinheiro Machado. Ivan disse que, num domingo de verão de 79, o autor de Dona Anja o convidou para jantar na Churrascaria Santo Antônio, na Dr. Timóteo.

Então Josué disse: "estou com uma história na cabeça, queres ouvir?". Dada a largada, ele começou a desenrolar o enredo a partir da história de um curioso sobrado que ficava na esquina da 24 de Outubro com a Nova Iorque, na Auxiliadora (perto dali).

Ia do geral (o sobrado) para o particular (os personagens). O garçom trouxe o jantar, clientes entravam e saíam, e Josué desembuchava. Pagaram a ceia, saírama caminhar, e a payada seguia. Subiram a Dr. Timóteo, ganharam a 24 e chegaram até o Parcão. Horas depois a catarse terminou: era Camilo Mortágua.

Ivan disse que, com exceção de A Ferro e Fogo, ele foi testemunha dos enredos mentais de Josué, inclusive alguns que não chegaram ao prelo. Um deles se chamaria Fresta na Janela, e seria a história de uma matricarca que morre às vésperas do casamento da filha e retornaria em segredo ao mundo dos vivos para presenciar as bodas.

Pinheiro Machado porém não ouviu o que seria o terceiro volume de A Ferro e Fogo, Tempo de Angústia. Contudo, Dona Nídia, guardou por anos o começo da história, que restou inacabada na quadragésima lauda. Seria a saga dos Muckers. A história dos santarrões do Ferrabrás o fascinava. Com a morte do autor, coube a Luiz Antônio Assis Brasil a tarefa e contá-la, no Videiras de Cristal — aliás, dedicado à Josué.

Lendo o Josué escritor, havia também o Josué político, sendo que o segundo positivamente habitava no segundo. Afinal de contas, sua obra literária é uma reflexão de todo o contexto político dos anos 70. Sua luta e seu combate acabariam justificando a perseguição da ditadura contra ele, que era trabalhista dos tempos de Jango e Brizola e opositor ao governo revolucionário de 64, ele foi perseguido e preso pelo regime, até que optou pelo exílio em Portugal, one escreveu o excelente livro-reportagem, chamado Lisboa Urgente, sobre a Revolução dos Cravos, de 1975.


Existe uma história curiosa dos seus tempos de clandestino, que Nídia contava. Depois do Golpe, Guimarães vendia apólices do Montepio da Família Militar, (MPM) sob o falso nome de Samuel Ortiz (um nome que ele usava como pseudônimo desde a Legalidade).

Um dia, estava ele em Santos como Samuel, o vendedor de apólices, explicando o plano a um grupo de oficiai quando um deles, de repente, ficou a observá-lo de soslaio. Quando o "subversivo" ia saindo, o milico disse: "eu sei quem é você" (Josué era conhecido como diretor da Agência Nacional antes de 64 e amigo pessoal de Jango). Sem saída, nosso herói apenas disse: "bem, então estou em suas mãos". O coronel, de maneira surpreendente, respondeu: "eu não irei denunciá-lo. Estou vendo que o senhor está lutando e trabalhando para sobreviver". E não o entregou.

O episódio foi contado ao Otto Lara Resende, mais tarde seu colega de redação da Folha de São Paulo, que foi quem reproduziu essa passagem, numa de suas últimas colunas antes de morrer, em 1990.

Por conta do contexto da repressão, foi dentro do Realismo Fantástico, subproduto típico daqueles anos políticos, que mostrava de forma arquétpica e singular as cordilheiras desabando sobre as flores (como diz a música da Simone) e a esperança do povo sob a repressão instiucionalizada e a violência policial como norma vigente.

Isso era algo tão explícito, pulsante e evidente em sua obra, mergulhada naquela conjuntura adversa, que É Tarde Para Saber foi recusada pela José Olympio, a sua editora. Coube então à LPM, então nascente (foi o primeiro romance da editora), lançá-lo, com grande sucesso, em meados dos 70...

Porém, ao contrário do outro Josué, o do Velho Testamento (e mais como um Moisés), ele não foi escolhido de Deus para destruir Jericó e chegar à Terra Prometida da democracia brasileira. Josué Guimarães morreu de câncer, em 23 de março de 1986 — há 25 anos atrás.

Saturday, March 26, 2011

É hoje!

Essa música com a Elis Regina é bem rara, saiu por uma coleção de canções do sul lançada pela Marcus Pereira, nos anos 70.



Mas a gente sabe que muitos asçorianos estavam locados no Desterro, e vieram a duras penas para cá, e acabaram ficando num lugar que era considerado a parte mais inóspita da sesmaria do tropeiro Joerônimo de Ornellas, que era então o todo poderoso senhor dos Campos de Viamão.

Os portugueses acabaram se fixando num lugar adverso: era pantanoso e cheio de bugres. Pior, havia aqui tiranossauros, dinossauros eoutros bichos primitivos, além dos Slistacks. Mas como os açorianos chegaram aqui munidos de armas laser, todos os dinossauros foram exterminados, e enfim eles puderam se fixar no Centro. Então construíram o Edifício da GBOEX, o Rua da Praia Shopping e depois eles inventaram o charque, a chimarrita, o Gauchinho Neugbauer, o Esporte Clube São José, a Feira do Livro, o engarrafamento na Ipiranga às seis da tarde e o Studio Pampa.


Parabéns, Porto Alegre!

Thursday, March 24, 2011

Que fim levou Trini Lopez?




Tava sem Internet e sem meus Mp3 nesses dias por conta de um computador queimado, aí comecei a cavocar a minha discoteca, e achei o Trini Lopez no PJ, que eu achei que nem o tivesse mais.

Trini Lopez foi descoberto pelo Don Costa, arranjador do Sinatra na Reprise. Costa tinha assissito a uma performance dele num inferninho em Los Angeles chamado PJ's. Ele quis que o Trini gravasse em disco o pocket show dele, que era composto de covers de canções tradicionais, medleys e versões de músicas de protesto que faziam sucesso na época, como This Land Is Your Land e If I Had a Hammer.

If I Had a Hammer foi um sucesso extraordiário, chegou ao primeiro lugar nas paradas de sucesso de 36 países. Ao mesmo tempo, ele retomaria uma linha que iria desaguar no latin rockpop (depois junto com Herb Alpert, que também valeria um post), muito embora o Trini tenha largado a imagem de crooner de boate para tentar uma carreira de cantor romântico pop.

Por sua veia latina, ele fez muito sucesso no Brasil, especialmente com o Latin album, de 1964, certamente o seu disco mais conhecido, e que eu achei aqui em casa também. Tanto o PJ's quanto o Latin ganharam sequências respectivamente em disco, mas sem o mesmo sucesso dos originais.



Trini ainda vive, recentemente lançou um disco.

Monday, March 21, 2011

O Outono chegou



A gente sempre morre um pouquinho quando o Outono chega.

Thursday, March 17, 2011

A Cadeira de Chico Viola


O Gambrinus (crédito da imagem: Jana Jan's Fotolog)


Esses dias eu estava relendo a biografia definitiva do Noel Rosa, escrita pelo Carlos Didier e o João Máximo pela UNB, há algum tempo. E me lembrei da famosa passagem dos Ases do Samba por Porto Alegre, em 1932.

Um ano antes, Francisco Alves fazia enorme sucesso com Mário Reis (que rivalizaram com outra dupla, Castro Barbosa e Jonjoca). Com a parceria do Poeta da Vila, eles emplacaram Fita Amarela, e com Ismael Silva e Nílton Bastos, se Você Jurar.


Em 32, eles decidiram formar um escrete de bambas: com Ismael, Nonô, Mário, Chico e Noel e Peri Cunha, eles fundaram os Ases do Samba. O sucesso no Rio de janeiro foi gigantesco: juntos, o conjunto fazia uma espécie de teatro de revista em formato pocket, amalgamando números musicais com números falados.

Naquele mesmo ano, Chico Viola, um capitão de indústria da música brasileira avant la lettre, resolveu fazer uma turnê pelo sul do Brasil. Os Ases iam se apresentar em Porto Alegre.

Na capital gaúcha, Chico Alves ficou no antigo Grande Hotel, hoje o edifício do Imperial. a temporada, prevista para durar uma semana, acabou chegando a quase um mês, principalmente pelo lado pândego da turma. Fazendo canjas em bares, os ases descobriram o jovem Lupicínio Rodrigues, então soldado no antigo quartel da André da Rocha (então o Beco do Oitavo): noitadas, bebedeiras e certamente infidelidade...

Lupi apresentou-lhes a boemia da Ilhota e alguns sambas que ele compôs. Mais tarde, o autor de Vingança iria firmar parceria com Chico Viola (na verdade, alves encampou-o, assim como fizara com Ismael e Noel), e despontaria para o estrelato na Capital Federal.

Chico Viola costumava descer o Centro e almoçar no Mercado Público. Ia no Treviso, no fim da Siqueira Campos, ou no Gambrinus que, naquele tempo, ainda era um estabelecimento voltado para a culinária alemã (como o Chalé da Praça XV).

O Treviso fechou nos anos 70, e a cadeira cativa que Francisco Alves (ou a réplica) costumava usar foi doada aos donos do Gambrinus, que fica defronte ao Paço dos Açorianos, mais conhecida como a Prefeitura Velha.

O Gambrinus existe até hoje, e a cadeira está hoje suspensa na entrada, como recordação da passagem do Rei da Voz por Porto Alegre.

Chico e Mário ficavam no Grande Hotel e o Poeta da Vila, por sua vez, ficou numa pensão famélica na Sete de Setembro, próxima à Praça da Alfândega. em pouco tempo, enrabichou-se de uma menina que morava logo em frente.

O idílio não durou muito. No último encontro, debaixo de uma bruta chuva, Noel teria pedido á ela para que partisse de vapor com ele para o Rio. Alguém a chamou para dentro de casa. Ela apenas disse: "até amanhã...". E sumiu na escuridão do longo corredor do cortiço.

E a saudade fez um samba (como diria o Carlinhos Lyra): Até Amanhã, que seria sucesso no Carnaval de 1933, interpretada por João Petra de Barros:

Wednesday, March 16, 2011

Uma Fábula


O Coelho Branco




De repente alguém soltou a notícia:

— Acharam o Compadre Coelho!

Encontraram, porém, o seu cadáver; seu corpo virado de borco, lambido mansamente pelas ondas do mar, em mangas de camisa e de ceroulas. Alguém reparou que os seus olhos estavam brancos, como se tivessem sido acometidos de catarata; e de seu olhar esgazeado parecia vazar luz.

No escritório onde o Compadre Coelho trabalhava, todos se perguntavam, perplexos: "Mas como pode, logo o Compadre Coelho, um sujeito tão cheio de vida, tão engraçado e mulherengo incorrígível...".

Então o Compadre Castor desembuchou: "e ele estava noivo. Noivo! Ia casar!". Isso ninguém ali sabia. sabiam apenas de sua vida pregressa de solteiro: parecia ter uma amásia em cada rua, em cada esquina, em cada janela. Era o conquistador inveterado, um donjuanesco caixeiro-viajante.

Diz-se que foi quando o Compadre Coelho caiu de arrufos por uma linda coelha. Disse o Compadre Castor: "ele me disse, em choque, meu Deus meu Deus, eu estou amando de verdade. Pela primeira vez na vida, eu estou amando! Pela primeira e derradeira vez, amo".

E dizia isso sem dissimulação alguma. Era, pela primeira e única vez na sua vida, sincero da palheta às alparcas. E revelava isso sem medo nenhum. Falava isso como se tal sentimento o libertasse e o jogasse num inefável turbilhão de sensações.
então veio o inevitável. Teve que pedir a mão da moça.

Sustentava aquele pudico namoro como pôde, durante meses, e aquilo era um novo mundo para ele. Compadre Coelho flanava por entre mesas e cadeiras, perdido como uma criança numa loja de departamentos, fulminado de amor.

Foi quando o sogro quis forçar o noivado a todo o custo. E ele, que sequer havia cogitado qualquer compromisso sério, de tão perdido e confuso, agora estava num brete. Seu amor de ópera virou a Noiva de Lammermoor.

Um dia, num bar, estavam ele eo Compadre Castor. Depois de várias garrafas de cerveja, ele contou o seu dilema ao amigo e confidente:

— Compadre, eu amo ela como se ela fosse uma Santa Tereza. Só que quando eu amo uma mulher, esse amor é para sempre, entrendeu? Para sempre! quando eu amo-la, eu sou incapaz de desejá-la.

— Peraí — interpelou o Compadre Castor. — Nem beijá-la você beijou ela?
— Nunca.

Então o Compadre Coelho pegou o amigo pela gravata (ao fundo, um pianeiro desafinava o Duas Contas, do Garoto, em versão de beguine, dando um ar diáfano àquela cena patética) e falou:

- O negócio é o seguinte: eu posso deflorar qualquer uma, posso querer possuir todas as vadias dessa cidade, menos ela. Ela, não!

Preocupoado com seu amigo, o Copmpadre castor mandou ele procurar assistência médica. Sugeriu que ele fosse se consultar com o famoso Dr. Texugo.

O Dr. Texugo ouviu toda a desesperada explanação do paciente. No fim, Compadre Coelho, dispinéico, pediu um diagnóstico.

— E então, Dr. Texugo? É grave? O que eu tenho? O que eu faço? Qual é a cura? Me diga, por favor!

Dr. Texugo olhou longamente para a cara do Compadre Coelho. O silêncio do médico o exasperava. Compadre Coelho estava esperando certamente que o psicólogo fosse diagnosticar uma grave moléstia, talvez a própria lepra, receitar-lhe o degredo em Moçambique, as masmorras, o Inferno pintado pelo Gustave Doré, o diabo!

— Me salve, doutor! — gemia o paciente. — Eu não sei mais o que fazer, doutor! Eu não sei, doutor!!!

E começar a chorar grosso, sem ter pudor sequer de esconder o rosto e as lágrimas. Era o choro dos embriagados das inconfessáveis confissões de botoco de três da manhã. E como é triste o choro de paus d'água de botecos de três da manhã.

— Não tenho nada prá lhe receitar, compadre Coelho. — respondeu o Dr. Texugo, meio chocado. — Você está apenas apaixonado. É assim mesmo, o senhor precisa ter coragem e esperar. O tempo vai lhe dar as respostas, viva agora apenas as perguntas. Não existe nenhuma panacéia que possa servir-lhe de lenitivo. Não existe mágica. Isso pode ser passageiro, só provoca esse tipo de confusão no começo. Com o tempo, op senhor vai aprender com a experiência.


Compadre Coelho saiu doi consultório, aturdido. Chegou à conclusão de que devia amá-la eternamente como um devoto a uma santa, um relicário, um jardim misterioso, uma rosa dentro de uma redoma.

Na última vez em que beberam juntos, Compadre Coelho disse ao Compadre Castor:

— O velho me pôs no cadafalso. É o fim. Terei agora que oficializar o noivado.
O amigo sorriu:
— Você vai casar? Meus parabéns!

Compadre Coleho não disse nada. encheu um copo de Parati e sorveu a bebida como se fosse groselha, numa sede brutal. Suspirou fundo enquanto assimilava a massiva quantidade de destilado no estômago e disse:

— Compadre Castor, me diga: o que eu vou dizer á ela na Lua de Mel? Como vou explicar meu pudor para ela? O que a família dela vai pensar? E a minha? É o fim.

Compadre Castor passou a madrugada tentando consolá-lo, mas foi em vão. Viu no relógio que era tarde e despediu-se do amigo. Compadre Coelho ficou bebendo até amanhecer.

Foi à beira da praia e se sentou. Viu um pescador solitário e distante, ao longe. Quando a barra vermelha do primeiro sol despontou no horizonte, ele tirou o terno, os sapatos e as meias.

Em mangas de camisa e ceroulas, entrou no mar. Deu dois mergulhos para se acostumar com a água gelada. Marchou em direção ao nascente até desaparecer na espuma das águas.



MORAL DA HISTÓRIA: Todo amor é eterno e todo desejo é vil.

Monday, March 14, 2011

As 100 Músicas gaúchas de todos os tempos (2)


Leopoldo Rassier

Aqui vai a minha vista das 100 músicas gaúchas de todos os tempos. A ordem das canções não é arbitrária mas fiz questão de colocar Veterano no topo. O Paulo Coelho compositor de Alto da Bronze foi um pianista e arranjador que trabalhou durante anos nas rádios Farroupilha e Difusora, em Porto Alegre. Pedro Raymundo, todos sabem, era catarinense, mas como Santa Catarina é a nossa eterna República Juliana, então está tudo em casa. O Nando D'Ávila foi um compositor de São Leopoldo, muito talentoso e que morreu muito jovem. Cenair Maicá também desaparercido, foi um excelente cantor e compositor nativista.


Veterano - Leopoldo Rassier
Sopa de Letrinhas - Engenheiros do Hawaii
Prá Viajar no Cosmos - Nei Lisboa
Loucos de Cara - Vitor Ramil
Vitor Ramil - Sapatos em Copacabana
Impressões Digitais - Liverpool
Festa Punk - Replicantes
Vento Negro - José Fogaça
Eu Já Sei - Garotos da Rua



Tão Longe de Mim - Liverpool
Quando o Amor Bater na Porta - Os Brasas
Estrela, Estrela - Vitor Ramil
Coração de Luto - Teixeirinha
Pára Pedro - José Mendes
Por Favor Sucesso - Liverpool
A Marchinha Psicótica de Dr. Soup - Júpiter Maçã
Rockinho - Taranatiriça
Adeus Mariana - Pedro Raymundo
Águias - Nelson Coelho de Castro
Alto da Bronze - Paulo Coelho
Ultramen - Dívida
Xote da Amizade - Saracura
Canto Alegretense - Antônio Augusto e Bagre Fagundes
Não me mande Flores - De Falla
Lobo da Estepe - Cascavelletes
Um Lugar do Caralho - Flávio Basso
Menstruada - Cascavelettes



Bebendo Vinho - Wander Wildner
Não Aperta Aparício - José Mendes
Desgarrados - Leopoldo Rassier
Beatle George - Júpiter Maçã
Oh de Casa - Os Serranos
Obrigado Patrão Velho - Garotos de Ouro
Gauchinha Bem Querer - Conjunto Farroupilha
Eu Sei - Papas da Língua
Blue Haway - Liverpool
Os Homens de Preto - Tradicional
Tango da Independência - Vitor Ramil e Paulo Seben
Mais Uma Canção - Bebeto Alves
Campo Minado - Taranatiriça
Sabe Moço - Leopoldo Rassier
Canto dos Livres - Cenair Maicá
Romance do Pala Velho - Noel Guarany
Payador, Pampa, Guitarra Jayme Caetano Braun e Noel Guarany
Guri - Cesar Passarinho
Olhai os Lirios do Campo - Liverpool
Baile de Candeeiro - Albino Manque
Nuvem Passageira - Hermes Aquino
Jornais - Nenhum de Nós
Bochinchando - Cenair Maicá
Júlio Reny - Não Chores Lola
Oh Deby - TNT


Vingança - Lupicínio Rodrigues
Fronteiras - Raul Elwanger
Que se Pasa - Bebeto Alves
Água Benta - Nando D' Ávila
Deu Prá Ti - Kleiton e Kledir
Gavião - Os Serranos
Pelos - José Cláudio Machado e Porca Véia
Prece ao Negrinho - Gaúcho da Fronteira
Batando Água - Luiz Marenco
Nicotina - Replicantes
Você é tudo o que eu Quero - Garotos da Rua
Maria da Paz - Carlinhos Hartlieb
A Irmã do Dr. Robert - TNT
Roda de Chimarrão - Os Mirins
Chofer de Taxi - Teixirinha
Milonga para as Missões - Renato Borghetti
A Revolta dos Dândis - Engenheiros do Havaii
Purpurina - Jerônimo Jardim
Céu, Sol, Sul - Leonardo
Baiaozinho - Geraldo Flach
Camila, Camila - Nenhum de Nós
Meu Coração Já não Suporta Mais - Garotos da Rua
Nunca mais Voltar - TNT
Gaúcho de Passo Fundo - Teixeirinha
Ela disse-me Assim - Lupicínio Rodrigues
Tordilho Negro - Os Serranos
Esses Moços - Lupicínio Rodrigues
Me Leva prá Casa - Taranatiriça
Amigo Punk - Graforréia Xilarmônica
Felicidade - Lupicínio Rodrigues
Tertúlia - Leonardo



Um Abraço em Brian Jones - Bixo da Seda
Nervos de Aço - Lupicínio Rodrigues
Querência Amada - Teixeirinha
Infinita Highway - Engenheiros do Havaii
Canção da Meia-Noite - Os Almôndegas
Vira Virou - Kleitor e Kledir
Não me Mandem Flores - De Falla
Cachorro Louco - TNT
Surfista Calhorda - Replicantes
Não Podemo se Entregar pros home - Leopoldo Rassier
Bixo da Seda - Bixo da Seda
Aves Daninhas - Lupicínio Rodrigues
Campo Minado - Fughetti Luz
Quando eu Chegar - Bebeto Alves
Quem Há de Dizer - Lupicínio Rodrigues
Sem Rei - Cláudio Vera Cruz
Rasa Calamidade - Nelson Coelho de Castro
Carecas da Jamaica - Nei Lisboa
Piquete do Caveira - Os Almôndegas
Navega Coração - Kleiton e Kledir
Princípio do Nada - Replicantes
Fonte da Saudade - Kleiton e Kledir

O Homerm Nu


Figueroa parou o Gauchão de 73


Abril de 1973. Causa escândalo de proporções consideráveis uma foto publicada na coluna diária do chargista Marco Aurélio, do jornal Zero Hora. Na imagem, o jogador Elias Figueroa, do Internacional, aparecia num vestiário do clube se pesando. Em outra, o zagueiro chileno aparecia passeando pelo recinto só de toalha, nu da cintura para cima. Imagens que reportavem um incidente semelhante, ocorrido com Jaqueline Kennedy, que foi flagrada por paparazzi tomando bano de sol numa ilha grega como veio ao mundo, nuinha, nuinha.

O escândalo ganhou as ruas, numa progressão fulminante. A diretoria colorada decidiu divulgar nota cendenando veementemente a atitude dos editores do jornal em publicar as fotos clandestinas, tiradas (inexplicavelmente) através de alguma basculante da concentração dos Eucaliptos. Pior: o então presidente da Federação Gaúcha de Futebol, (FGF) mandou cancelar todas as rodadas dos campeonatos da entidade no fim de semana seguinte. Ao parar o Gauchão, Hoffmeister conseguiu colocar mais fogo na fogueira. O episódio agora ganhara proporções continentais.

A Loteria Esportiva repudiou o ato da Federação. O jogo Internacional e Aimoré constava na loteca. A entidade também decidiu excluir os clubes gaúchos das próximas apostas. A história agora repercutia nos prtincipais órgãos de imprensa de todo o país. Até a revista Veja pautou entrevista com Marco Aurélio. Em poucos dias, as nádegas de Figueroa se tornaram as mais famosas do Brasil. E a partida foi à sorteio.

O ex-centroavante Claudiomiro, que integrava a equipe do Internacional naquele tempo, se recorda da história. "O cara tava se fardando para o treinamento, e claro que tava todo mundo no vestiário, era muito acanhado, e todo mundo tirava foto, e o cara foi lá e tirou", relembra. "É o tipo de coisa que mudou depois do Beira-Rio, porque aqui não teria esse tipo de coisa". Ele também condena a ousadia do fotógrafo: "eu achei aquela coisa meio ridícula, porque a pessoa tem que ser preservada, hoje tá tudo liberado, mas naquela época não, e até o campeonato parou. O cara tava se vestindo para ir trabalhar, e aí acontece uma coisa dessas...".

Já outro ex-companheiro de Figueroa e hoje treinador Cláudio Duarte, entende que tudo não passou de "armação" e que contaria com a conivência do próprio zagueiro colorado. "Na época que ele chegou, ele era considerado bonito, galã, e todos sabiam que a gente treinava não no Beira-Rio,mas os Eucaliptos. E a janelinha do vestiário tinha vista para tudo¿, diz. Claudião afirma que era tudo "armação do gringo". "O gringo era bom de mídia, declamava Neruda, metido a bonitão, tudo, e na cabeça da gente, ninguém deu bola". Duarte diz que eles conheciam vários fotografos da imprensa de Porto Alegre, e o trânsito livre facilitava esse tipo de "assédio". "Só estava ele, e ele saiu antes. Então, acho que deixaram que deixaram a janela aberta, foi combinado que um ia entrar, e todos nós desconfiávamos disso, não se sabe disso, mas na nossa cabeça, o parecer era esse".

O artífice da brincadeira, Marco Aurélio, explica a história. "A Jacqueline Kennedy Onassis havia sido flagrada nua por paparazzi em uma ilha grega. O escândalo foi total. Eu resolvi tentar o mesmo estardalhaço por aqui", diz. "Combinei com o então fotógrafo de ZH Hipólito Pereira: vamos fazer o mesmo com o Figueroa. Fomos os dois para o Beira-Rio, mas eles estavam nos Eucaliptos. O segurança não nos deixou entrar. Esperamos o final do treino e nos esgueiramos até uma janela basculante do vestiário. Eu dei o pé para o Hipólito subir. E ainda assim ele foi obrigado a erguer a máquina e disparar, nem viu direito o que estava acontecendo no vestiário".

Marco Aurélio revela que Porto Alegre inteira se solidarizou com Figueroa: "Ele ligou para contar que estava recebendo ligações de autoridades, de dirigentes da dupla Gre-Nal, de gente da Igreja, enfim, não houve quem não lhe prestasse apoio naquele momento. Para todos eles, o Figueroa se mostrava indignado com a situação", conta. Porém, o chargista salienta que era amigo do zagueiro chieleno e que ele não o criticou pelas fotos e nunca exigiu os negativos.

- Ele era meu amigo. Nunca se queixou com rancor.

O jornalista explica que a repercussão foi gigantesca: "Concedi dezenas de entrevistas. O Flávio Cavalcanti, a revista Veja e as agências nacionais e internacionais me ligaram, queriam saber como foi possível fazer a foto nua de um dos zagueiros mais famosos do mundo". Contudo, revela que foi ameaçado pelos torcedores do Inter. Ele conta que, em desagravo, o jogador cogitou deixar o clube. "Para eles, eu era o culpado pela decisão do Figueroa de deixar o Inter. Os caras me ameaçaram bater em restaurantes, no trânsito e na rua". Marco também diz que, apesar dos inúmeros pedidos de agências de notícias, o jornal decidiu não ceder o material".

- O Maurício Sirotsky (fundador da RBS) não permitiu a venda. Como prova de que a foto havia sido apenas uma iniciativa jornalística, mandou que entregássemos o filme ao Figueroa.

Se todos condenaram as fotos, houve quem gostasse da interdição do Campeonato Gaúcho. O seu nome era Dino Sani, treinador do Internacional. Disse que a paralisação do certame permitiu que o tempo permitiu que o Departamento Médico recuperasse o exército de jogadores lesionados. O Colorado retomou o Gauchão voando em campo,e conquistou naquele ano o Pentacampeonato. Depois do título, Sani foi procurar Marco Aurélio. Em segredo, lhe confessou:

- Você venceu o campeonato para nós - disse.

E o zagueiro, que quase saiu do clube, começou a gostar da coisa. Para fugir do bulício do episódio do ¿jogador pelado", ele convidou sua esposa, Marcela, para almoçar longe de Porto Alegre, mais precisamente em Novo Hamburgo. Não conseguiu. Todos lhe apontavam o dedo e vinham falar com ele, dizendo: "é o jogador pelado! É o jogador pelado! É o jogador pelado!".

As 100 Músicas gaúchas de todos os tempos


Lupicínio Rodrigues


Nildo Machado, nosso intrépido e valoroso contínuo aqui da redação do Pato Macho e também jornalista nas horas vagas, propôs o seguinte desafio: que listássemos as 100 maiores canções gaúchas de todos os tempos. Aí me mandou a lista dele por correio eletrônico, a fim que nosso linotipista a publicase no jornal.

Só que Carmela é uma ópera, Nildo. Te explica aí cara.

Ainda estou na tarefa de chegar a cem; no entanto, como o nosso contínuo Nildo já nos mandou a lista dele, vejam vacês como ficou.

Quem tiver mais sugestões, que poste nos comentários. Ou não poste nada.

Araújo Viana - Carmela
Bebeto Alves: Notícia Urgente
Lupicinio Rodrigues - Castigo
Felicidade
Nervos de Aço

Esses Moços
Cadeira Vazia
Judiaria
Se Acaso Você Chegasse
Volta
Cevando o Amargo
Teixeirinha - Coração de Luto
Querência Amada
Tordilho Negro
Gaúcho de Passo Fundo
Gildo de Freitas - Eu reconheço que sou um grosso

Antônio e Bagre Fagundes - Canto Alegretense
José Mendes - Não aperta, Aparício
Para, Pedro
Leonardo - Céu, sol, sul, terra e cor
Tertúlia
Mário Barbará - Desgarrados
Barbosa Lessa - Negrinho do Pastoreio
Me dá um mate
Edson Otto - Esquilador
João Batista Machado e Júlio Machado da Silva Filho - Guri
Zé Caradípia - Asa Morena
Engenheiros do Havaí - Infinita Highway
Pra ser sincero
Kleyton e Kledir - Deu pra ti
Maria Fumaça
Vira Virou
Vitor Ramil - Estrela estrela
Joquim
Loucos de Cara
Semeadura
Nenhum de Nós - Camila Camila
Austronauta de Mármore
De Falla - Não me mande flores
It's Fucking Boring to Death


Repelente
TNT - Cachorro Louco
Ana Banana
Entra Nessa
Replicantes - Surfista Calhorda
Boy do subterrâneo
Festa Punk
Hippie-punk-rajneesh
Nicotina
Nei Lisboa - Pra Viajar No Cosmos Não Precisa Gasolina
Berlim, Bonfim
Deixa o bicho
Paisagem Campestre
Verdes Anos
Taranatiriça - Rockinho
Fazê um bolo
Liverpool - Por Favor Sucesso
Os Eles - Silicone
Cinema Mudo
Bandaliera - Campo Minado
Banda de Banda - Xis Galinha
Hermes Aquino - Nuvem Passageira
Bidê ou Balde - Melissa
Garotos da Rua - Tô de saco Cheio
Você é tudo o que eu quero
Sabe o que acontece comigo?
Julio Reny - Amor e morte
Maomé
Não chores, Lola
Graforreia Xilarmônica - Amigo Punk
Jimi Joe - Sandina
Ultramen - Dívida
Peleia
Bico de Luz
Cascaveletes - Banana Split
Sob um céu de blues
Minissaia sem calcinha
Antonio Villeroy - Garganta
Bebeto Aleves - Pegadas
Flávio Bicca Rocha - Horizontes
Armando Amorim Albuquerque e Athos Damasceno Ferreira - Alto da Bronze
Papas da Língua - Blusinha Branca
Garotas do Brasil
Eu sei
Lua Cheia
Luis Vagner - Camisa 10
Guitarreiro
Comunidade Ninjitsu - Detetive
Merda de Bar
Cachorro Grande - Lunático
Sexperienced
Dia Perfeito
Almondegas - Sombra Fresca e Rock no Quintal
Canção da meia-noite

Daisy, My Love
Vento Negro
Haragana
Saracura - Xote da Amizade
Gaúcho da Fronteira - A utilidade do dedo
Nheco Vari Nheco Fum
Gildo Campos e Berenice Azambuja - É Disso Que O Velho Gosta

Saturday, March 12, 2011

O Aragano


Flores da Cunha

Setembro de 1930. A Aliança Liberal, capitaneada pelo intrépido Oswaldo Aranha (e Getúlio Vargas), conspirava subterraneamente contra o Governo Federal que, com a eleição de Júlio Prestes, queria manter a velha política café com leite no Brasil.

Junto com ele, havia também um certo senador Flores da Cunha, seu colega dos tempos de provisórios, em 1923. Pois Flores estava jogando põquer no então afamado Club dos Caçadores (que ficava na Rua Nova, hoje a Andrade Neves). Reza a lenda que, numa daquelas noites de primavera, sentou-se também à mesa de jogo um paulista.

O sujeito, lá de seus trinta anos, no entanto, era matreiro: só entrava nas boas. e vivia reclamando das regras do carteado. Em meia hora, ele já havia granjeado toda a antipatia dos participantes. O mais impaciente de todos era, justamente, o General.

Num ponto do jogo, quem mais apostava às ganhas mesmo eram Flores e o jovem paulista. Foi quando o altaneiro visitante conseguiu uma sequência de cartas. Viu que nenhuma das que o General mostrava combinavam entre si.

Fez menção de pegar as fichas quando Flores o interpelou:

- Quem ganhou fui eu. eu tenho um Aragano.

O paulista fez cara de desentendido. O senador então completou:

- O Aragano acontece justamente quando nenhuma das cartas combina, entendeu? Aqui no Rio Grande do Sul, o aragano mata sequência e perde para full hand.

Mesmo demonstrando contrariedade, o paulista deixou passar - afinal de contas, ele era o forasteiro e ninguém contestou a afirmação do general.

Quatro rodadas depois, eis que ocorre o inverso: o paulista conseguiu um "Aragano", percebeu que o maior jogo dos demais era trinca, e puxou as apostas. Flores novamente o interpelou:

- A trinca venceu.

O forasteiro se exasperou:

- Mas como, se eu tenho um Aragano?

- Fica vacê sabendo - respondeu Flores, de maneira enfática, com o charuto entredentes - acontece que o Aragano vale apenas uma vez por jogo. E ficou olhando nos olhos do paulista, seríssimo.

Silêncio total. Os dois se olhavam fixamente. então Flores explode numa gargalhada. entre baforadas de charuto, larga as cartas na mesa e diz:

- Meu amigo, o Aragano não existe. Esse jogo aqui já foi para o brejo, ninguém perde nem ganha, acabou, melou. Isso aqui é só para lembrar para vocês que, aqui no Brasil, daqui a pouco, quem vai cagar regras nesse país vai ser gaúcho.


E não era chiste. Dia 3 de outubro eclodia a Revolução de 30.

Friday, March 11, 2011

Dois braços

Então caminhávamos juntos; perdidos entre nogueiras e flamboyants no campus da PUC, mas tão próximos dos céus.

Confesso que esperei tanto por aquele dia. Foi um dia qualquer, era apenas o nosso encontro.

Você me arrastou até o Mercado. Tirou fotos de artistas mambembes como uma turista desvairada que via Porto Alegre pela primeira vez e devorava a paisagem com teus olhos de criança.

No ônibus, disse que não imaginava que fosse se apaixonar de novo. Eu dei um suspiro. Eu estava pensando nisso noites a fio. E nos calamos.

De repente, conversávamos como se só existissem duas pessoas: você e eu. Você me perguntou eu estava me atrapalhando com aquela correria toda pela cidade.
Eu encolhi os ombros. Não tinha palavras para descrever o que se desfilava diante dos meus olhos. Você parecia diferente a cada momento. Encantadora como sempre.

Olhamos livros; me lembro de quando você me parou diante de uma vitrine com costumes crianças, e disse que queria ter um filho. E depois me perguntou:"você não gostaria de ter um filho, Marcelo?" Nem me lembro o que eu respondi, fiquei meio perplexo com a pergunta. Mas não era positivamente uma indireta. Não me lembro: disse que sim.

Depois tomamos café no Rodobar antes de você partir. Eu escrevia dedicatórias surrealistas nos livros que você comprou. Tua reação era indescritível. Você lia minhas garatujas, cobria o rosto com o livro aberto e caía na gargalhada. E eu, que estava profundidíssimamente comovido, queria pensar em algo bonito para escrever mas resolvi fazer chiste com a situação, que nem era lá muito formal...

Então você pegou o ônibus e se foi. Peguei um táxi para casa. Cheguei em casa e não sabia o que fazer. supliquei, em tom de brincadeira: "não vá!". Ela disse: "Não posso".

Fiquei uns três dias meio perplexo num quarto escuro procurando o que fazer da vida. queria guardar comigo todas aquelas momentos.

Às vezes, eu acabo tendo de passar por todos aqueles lugares em que estivemos. sinto um misto de alegria e de tristeza; tristeza de tantas saudades. E alegria porque é como eu sentisse a tua presença comigo novamente enquanto o vento passa.

Me lembrei daquele derradeiro abraço de adeus, de dois braços que abraçam como se protegessem. Braços que cruzaram a elevada da rodoviária e a esquina daquela nostálgica quinta-feira, e se foram pela estrada afora, apenas indo para outros braços.

Thursday, March 10, 2011

Cara e Coroa

Cara: Rossini era o maior operista do seu tempo, mas largou o trabalho aos 38 anos porque opera era algo maçante demais..
Coroa: Espiritismo
Cara: Oito minutos de acréscimo, isso é um escândalo!
Coroa: Gauchão Coca-Cola.
Cara: A praia de Capão estava lotada de veranistas hoje, tinha gente até no lustre
Coroa: Milho a cinco reais.
Cara: Vou pendurar o casaco na cadeira no serviço e a gente se encontra no Haiti prá tomar um chope, até lá!
Coroa: Sinecura.
Cara: Meu tio saiu prá veranear e levou tudo: malas, barraca, guarda-sol, isopor,cadeiras, papagaio, mas esqueceu a vovó em casa!
Coroa: Mal de Alzheimer.
Cara: Comprei uma mistura de pinga com limão mas, pelo que eu vi, era apenas uma cachaça ordinária aguada envasada numa garrafa de plástico!
Coroa: Suco prá pedreiro.
Cara: Alô, Ester, sou eu, o Eustáquio. Quero apenas avisar que eu vou chegar um pouco mais tarde porque chegaram uns executivos de fora aqui na empresa e eles vão apresentar um projeto revolucionário para o nosso produto!
Coroa: La Rosa.
Cara: Meu Deus, olha essa coitada dessa Ísis Valverde, que farsesca! Não passa de uma guria comum sem nenhum talento, enfim, totalmente comum.
Coroa: Lambisgóia despeitada.
Cara: Com a derrota napoleônica de 1814, as forças coligadas se reuniram em Viena a fim de reorganizar o mapa político da Europa, alteradoo pelas campanhas francesas.
Coroa: Fisiologismo.
Cara: Minha vida era um palco iluminado, eu vivia vestido de dourado, palhaço das perdidas ilusões...
Coroa: Sílvio Caldas.
Cara: Eu não tenho nenhum vício, mas sou capaz de atravessar sete bairros em plena madrugada para encontrar uma barra de chocolate...
Coroa: Gorda.
Cara: Depois de lançar três discos mais experimentais, nós agora resolvemos voltar às raízes e destilar o puro rock dos velhos tempos.
Coroa: Jabá
Cara: O maluco se impacientou e varreu os ciclistas rua abaixo, como se fossem pinos de boliche...
Coroa: Pateta no trânsito.
Cara: Porto Alegre é uma cidade linda, limpa, hospitaleira e tem o pôr-do-sol mais bonito do mundo.
Coroa: Cidade Viva
Cara: Quero ser casto, mas ainda não
Coroa: Santo Agostinho
Cara: Meu personagem é bem parecido comigo; é forte, impetuosa, sabe o que quer, vai em busca dos seus sonhos e ama muito a vida e a família.
Coroa: Vídeo Show.
Cara: Sábado vamos honrar a camisa colorada e garantir o terceiro lugar nesta importante competição! Todos sabemos qual é o devido lugar do Inter!
Coroa: Celso Roth.

Friday, March 04, 2011

O Homem que Inventou a Marchinha *


Lamartine Babo

Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 1931, nove horas da noite. Músicos e cantores tropeçam entre si, todos apertados dentro do estúdio da RCA Victor. O diretor musical havia marcado a gravação de dois discos. Na ordem, gravariam primeiro Carmen Miranda e Murilo Caldas. O acompanhamento seria feito pelo grupo da Guarda Velha, sob a batuta de Pixinguinha. Todos tomam seus lugares diante do microfone. Em dupla, Carmen e Murilo gravam “Isola, Isola” e, sozinho com a Guarda Velha, Murilo Caldas interpreta “Doquinha”, de André Filho.

Após breve pausa, o diretor combina com a Pequena Notável e Caldas a gravação seguinte, que seria interpretada por Castro Barbosa — famoso por ter voz parecida com a de Francisco Alves e por fazer dupla com Jonjoca naquela época. Nesta gravação eles deveriam entrar no coro, juntamente com o compositor, um rapaz magro, feio e engraçado, além de mais três cantores de estúdio, que estavam no local.

Músicos e cantores se posicionam na frente do captador (um cone parecido com o do gramofone, porém maior, para captar todo o som ambiente). Como a gravação era registrada toda ao vivo, sem edição, num acetato em cera, nada poderia sair errado. A função do diretor, por sua vez, era evidenciar as vozes na frente do cone e colocar instrumentos de sopro no fundo do estúdio, para não se sobreporem aos vocais. Cantores na frente, orquestra atrás, o diretor dá o sinal para a técnica, que acena para um atento Pixinginha, que levanta os braços e dá a introdução que o autor havia concebido para “O Teu Cabelo Não Nega”, cuja fanfarra foi criada pelo próprio maestro. Castro Barbosa, com sua voz característica, junto com o coro, entoa, pela primeira vez:

O teu cabelo
Não nega, mulata,
Porque és mulata na cor
Mas como a cor
Não pega, mulata,
Mulata eu quero o teu amor...

Assim nasceu o maior sucesso carnavalesco de todos os tempos, e uma das dez gravações mais importantes de todos os tempos, na história da música popular brasileira. O disco seria lançado no suplemento de janeiro de 1932 da RCA, e se tornaria desde então tema característico das festas de Momo em terras brasileiras. Porém, esta seria apenas uma gota dentro do oceano musical daquele que seria imortalizado pelo inventor da marchinha carnavalesca, o carioca Lamartine Babo (1904-1963).

Contudo, Lamartine levou anos para fazer sucesso da noite para o dia. Nasceu em um ambiente musical, mas teve que sustentar a família na juventude, após a morte do pai, em 1917. Foi office-boy da Light e da Companhia Internacional de Seguros. Sua facilidade em fazer versos e seu desregrado bom-humor lhe abriram as portas da revista Dom Quixote, onde colaborava com poemas e sátiras aos costumes da época. Em 1924, largou o trabalho e descobriu o teatro musicado, que então vivia o seu auge, com paródias e quadros carnavalescos. Em um ano, já era um assíduo colaborador das chamadas revistas musicais.

Mas não seria o teatro de revista o seu caminho. Eduardo Souto, proprietário da Casa Carlos Gomes, financiava batalhas de confetes que antecediam o Carnaval, divulgando assim suas músicas. Entusiasmado, Lamartine quis compor também. A partir de então, criou temas para os ranchos carnavalescos da época, entre eles o Ameno Resedá (exato, aquele mesmo, da música do Ernesto Nazaré). Em 1927, encontramos Lamartine no bloco do Careca, que era tricampeão dos carnavais de 1920, 22 e 24. Ali, ele criou seu primeiro êxito carnavalesco, Os Calças-Largas, que seria a coqueluche do Carnaval de 1928.

As coisas só mudariam na década de 30. Agora o cinema era falado e a música migrou para o espaço das emissoras de rádio, que se expandiam de forma vertiginosa. Não era mais preciso divulgar blocos para lançar música, como os pregoeiros do começo do século, ou vender partitura de porta em porta. A coisa toda nascia com a divulgação de discos. Mais do que isso, havia também a revolução do rádio, que era capaz de criar conceitos e mudar opiniões. O sucesso nascia nos estúdios, e ganhava as ruas numa progressão fulminante. Aqui, cantores e compositores se tornavam notórios da noite para o dia, de uma forma nunca vista até então. A música carnavalesca mantinha um padrão, e compositores que estavam habituados a lançar canções nessa época do ano, desde os tempos do “Abre Alas”, de Chiquinha Gonzaga, agora descobriam o imenso filão.

Antes de “O Teu Cabelo Não Nega”, Lamartine Babo já havia ganhado um concurso da revista O Cruzeiro com a marcha “Bota o Feijão No Fogo”. Em 1931, ganhou outro certame, desta vez, promovido pela Casa Edson (a antiga EMI), com “Bonde Errado” e fez sucesso com “Lua Cor-de-Prata”, “Minha Cabrocha” e “O Barbado foi-se”. A partir de 1932, Lamartine orientava o Carnaval com a citada “O Teu Cabelo Não Nega”, “Só Dando Com Uma Pedra Nela” e AEIOU, em parceria com Noel Rosa:

A-E-I-O-U
Dabliú
Dabliú
Na Cartilha da Juju
Juju


Mas a verdade é que o compositor carioca teve que repartir a taça com “O Teu Cabelo Não Nega”. Na verdade, se tratava de uma composição original dos irmãos Valença. Eles eram pernambucanos,e haviam enviado a canção para a Victor, com o nome de “Mulata”. Lamartine apenas adaptou a cantiga regional, deu-lhe a introdução, mudou-lhe o ritmo, e não teve responsabilidade quando o selo dizia “motivo do norte, adaptado por L. Babo”. Os compositores ganharam a questão na Justiça e, desde então, aparecem com seus nomes mencionados ao lado de Lamartine...

Com o tempo, Lamartine Babo se transformava em motivo de expectativa. Quando o Carnaval ia chegar, todos se entreolhavam em bares, cafés, gravadoras e rádios: que será que ele vai apresentar este ano? As respostas eram várias, mudavam no título e no tema, mas eram sempre os mesmos com relação ao acolhimento do público. Por exemplo, em 1933, os foliões cantavam e gritavam:

Linda Morena
Morena
Morena que me faz penar
A lua cheia
Que tanto brilha
Não brilha tanto como o teu olhar


Ou então:

A tua vida
É um segredo
É um romance
E tem enredo!


Lamartine tinha já os seus intérpretes característicos, como a jovem Carmen Miranda, que quanto mais desafinava, mais engraçada deixava a música, e Mário Reis, que ia na contramão dos cantores de dó maior e fazia arrelia com as letras picarescas do compositor. Muitas vezes, dividia o microfone com o próprio Lamartine Babo que, assim como Noel Rosa, tinha um fiapo de voz mas era capaz de compensar com uma interpretação hilária e bastante sua, tanto em gravações próprias ou em companhia de Mário ou Carmen, como em “Moleque Indigesto”:

Esse moleque
É bom rapaz
Tem um defeito
Come demais
Como, come, não deixa resto
Oh, que moleque indigesto!


No mesmo ano, Lamartine aparecia com “Aí, Hein?”

Pensas que eu não sei?
Toma cuidado
Pois um dia
Eu fiz o mesmo
E me estrepei!


Em parceria com Paulo Valença, ele fazia todo mundo rir com “Boa Bola”

Queria bordar teu nome
Na própria gola da camisola
Ao som da Traviata
Numa vitrola
Que boa bola!


Em 1934, fazendo troça com a ópera “Paliacci”, de Leoncavallo, fez a marchinha “Ride Palhaço”, na dupla Mário Reis-Francisco Alves:

Ride, palhaço, lá, lá, lá, lá, lá, lá!
Ah, ah, ah, ah!
Eu sou
O teu pierrô
Colombina
Colombina
Reparte esse amor
Metade pra mim
Metade pro teu arlequim!


Com Ari Barroso, fez “Grau Dez”

A vitória de ser tua, tua, tua
Moreninha prosa
Lá no Céu a própria Lua, Lua, Lua
Não é mais formosa
Rainha da cabeça aos pés
Morena, eu te dou grau dez!


Em contraste, Lamartine quis mostrar o lado melancólico e efêmero do Carnaval, em “Rasguei a Minha Fantasia”, interpretada por Mário Reis:

Rasguei a minha fantasia
O meu palhaço
Cheio de laço e balão
Rasguei a minha fantasia
Guardei os guizos no meu coração


“TUDO CHEIRA A CARNAVAL ” — Em 1935, a coisa não estava muito boa. Sem promoção e sem dinheiro, Lamartine conseguiu um polpudo financiamento de uma fábrica de sabonetes. A forma de fazer propaganda sem ferir as regras da arte foi vender o produto de forma subliminar. Assim nasceu “Senhorita Carnaval”, cuja fanfarra de abertura se tornaria característica nos bailes, a partir de então. O refrão era todo feito em superlativos, e cantada, com todo o acinte, pelo próprio Lamartine, para chorar de rir:

Carioquíssima!
Animadíssima!
Renovadíssima!
Nacionalíssima!
Amabilíssima!
Valiosíssima!
Assanhadíssima!
Luxuosíssima! Há!


Oh, que dama divinal,
Ela se chama senhorita Carnaval!

O sabonete se chamava Carnaval, e cada letra inicial dos superlativos, se somada, uma a uma, dá exatamente “Carnaval”. Talvez tenha sido a primeira propaganda subliminar na história...

Em 1936, Lamartine aparecia com “Marchinha do Grande Galo”

Cocococococoricó
Cocococococoricó
O galo
Tem saudades
Da galinha Carijó


Prolífico, ele fazia paródia com o nonsense e o lúdico da poesia modernista em “AB Surdo”. Na marchinha, completamente sem sentido, o compositor dizia:

Nasci na praia do Zumbi 86
Vai fazer um mês
Vai fazer um mês
Que a minha tia me emprestou Cinco mil Réis
Pra comprar pastéis
Pra comprar pastéis
É futurismo, menina, É futurismo
Isso não é marcha,
Nem aqui, nem lá na China


Noutra feita, Lamartine fez uma versão bem sua para o conhecido tango Yira Yira, de Enrique Discépolo, que passou a se chamar “A Família Orangotango”. O refrão ficou mais ou menos assim:

Um rapagão de traquejo,
Queijo! Queijo!

Lamartine Babo ia além, a cada Carnaval. As marchinhas se acumulavam, muitas delas reapareciam com mais intensidade a cada festa de Momo, outras já nasciam clássicas, e caiam na boca do povo. Muitas restariam na memória, outras, porém, são lembradas por poucos.“Vou cantar a noite inteira/Rancheira/ Vou dançar pela fonética/Estética” (“Babo...seira”); “Só danço valsa nos salões/Tango com bandoneões/Yo me rompo todo assim/ Arlequim, arlequim (De...cadência de pierrô”); “Teus braços/Meu bem/Com tanto sinal/Fazem lembrar a Central/ E lá na Central/Tem teu namorado, menina/ Fugiu com a Leopoldina”.

No Carnaval de 1934, nasceu da impagável pena de Lamartine a sua versão da “História do Brasil” e que, como sempre, era uma janela aberta a prospecções filosóficas sobre o pensamento antropológico do brasileiro sem-culotes que, como dizia aquela epígrafe de um conhecido jornal carioca, questionava que não queria saber quem descobriu o Brasil mas, sim, “quem põe água no leite”. Nesse sentido, e mais tropicalista do que nunca, “Lalá” entendia que Cabral descobriu o Brasil dois meses “depois do Carnaval”. Nada mais sugestivo. De qualquer maneira, tudo começa depois da festa. Inclusive, segundo consta, essa marchinha também fez muito galego sambar lá na terra de Camões:

Quem foi que
inventou o Brasil?
Foi seu Cabral
Foi seu Cabral!
No dia 21 de abril
Dois meses depois
Do Carnaval!

Depois
Ceci amou Peri
Peri beijou Ceci
Ao som
Ao som do Guarani...



Em 1936, a vencedora foi “Mamãe eu Quero”, de Vicente Paiva e Jararaca. No ano seguinte, a ameaça do fascismo e a ditadura do Estado Novo enfraqueceram o espírito carnavalesco, que sempre foi crítico, cáustico e irreverente. Os tempos estavam mudando. Por outro lado, a disputa se tornara desleal, com o advento do “jabá” e a censura do recém-instituído Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). A folia estava perdendo para a censura. O destino de Lamartine foi o rádio, onde trabalhou em programas de humor até 1955, com a morte de seu grande amigo, Héber de Bôscoli.

Claro que, durante todo esse tempo, Lamartine não seria apenas um compositor carnavalesco: fez sucesso com pérolas como a lírica “Serra da Boa Esperança” (que foi grande sucesso cna voz de Francisco Alves), a inesquecível “Eu Sonhei que Tu Estavas Tão Linda”, a junina “Chegou a Hora da Fogueira” e a antológica “No Rancho Fundo”, em parceria com Ari Barroso. Mesmo com a qualidade das suas composições de “meio da ano”, Lamartine ficou conhecido pelo seu lado folião. Também se tornou conhecido por ser o autor de quase todos os hinos de times do futebol carioca, entre eles, o do Flamengo, do Fluminense e do seu time do coração, o América.

RESSURREIÇÃO — O seu ostracismo foi inversamente proporcional à profissionalização do Carnaval. Lamartine não podia competir com a crescente indústria da folia, que era capaz de eleger sucessos em detrimento da saudável competição dos tempos da Era do Rádio. Agora, por mais perfeitas que fossem as canções, elas não estavam livres do trabalho de caitituagem, que sempre impediu a divulgação de autores não comprometidos com a indústria carnavalesca ou acostumados com os fins e os meios dos meios de comunicação. Definitivamente afastado das festas de Momo, Lamartine virou membro da União Brasileira dos Compositores (UBC). Voltou em 1959, com uma criação especialmente composta para um rancho carnavalesco. Nostálgico, viria às cargas dois anos depois, com “Ressurreição dos Velhos Carnavais”, que se caracteriza pelo tocante saudosismo de seu poeta: “vem arlequim, que a tua sina/ Era adorar a Colombina/Dos carnavais que não voltam mais”.

Em 1963, o produtor musical Carlos Machado montava um espetáculo no Copacabana Palace com as marchinhas de Lamartine Babo. O compositor chegou a assistir aos ensaios. Estava frustrado porque sua última canção, “Seja lá o que Deus Quiser”, foi abafado pelo jabá das escolas de samba. Agora ele tinha um show completamente seu, em sua homenagem. Ao assistir aos primeiros ensaios, Lamartine se comoveu profundamente. Reviver daquela forma seus velhos sucessos foi demais para ele. Lamartine recém havia se recuperado de um enfarte, em fevereiro daquele ano. Faleceu dia 16 de junho daquele mesmo ano. Um mês depois, as portas do “Copa” exibiam cartazes anunciando o grande show “O Teu Cabelo Não Nega”, que se tornou numa justa homenagem (póstuma) ao homem que inventou a marchinha.

E, neste Carnaval, foliões e orquestras certamente irão relembrar a alegria da música de Lamartine Babo.



* Texto publicado originalmente por este escriba no extinto site Rabisco, em 2004.

Monday, February 28, 2011

O Discurso do Rei

Prá quem ainda não viu:



Toda criança tem que ler e escrever.

Sunday, February 27, 2011

O Exército de um Homem Só


Capa do livro

Conheci o Moacyr Scliar duas vezes. A primeira foi quando um primo, que não é muito afeito a literatura (na época, estudava Engenharia e tinha na estante de casa um monte de livros daqueles com as lombadas todas expostas como enfeite, naquelas edições de capa dura típicas de quem não lê) me veio, esbaforido: "cara, leia o Exército de um Homem Só!".

Na época eu não entendi o livro. Não sabia ainda o que era Realismo Fantástico. Fui obrigado a ler a obra novamente já mais velho. Então entendi a genialidade da coisa. Antes, contudo, havia lido Max e os Felinos e o Ciclo das Águas. Meu primo vivia me dizendo: "leia Moacyr Scliar! Leia Moacyr Scliar, leia Moacyr Scliar!".

Ou então, ele me achava semanas depois e a primeira coisa que ele perguntava era: "você tá lendo o Moacyr Scliar?".

Ele nem deve se lembrar disso. Eu não sei o que o motivou a se tornar fanático mais pelo Moacyr do que pelo Internacional. Mas a cômica ameaça me fez ler pelo menos uns sete livros do escritor porto-alegrense.


A segunda vez que eu conheci Moacyr Scliar foi na faculdade, em 1996. Eu me inscrevi num concurso literário do Diretório Acadêmico Manuel Bandeira, o DAMB, da PUCRS.

Me inscrevi de raiva, porque eu escrevi um texto em fluxo de consciência parodiando a Canção do Exílio do Casimiro de Abreu (sim, ele também escreveu uma Canção do Exílio, caro hipócrita lecteur).

Minha raiva se explica: eu bati pé para publicar o meu texto como crônica no jornal de bairro onde eu trabalhava na época. O editor era meu amigo mas ele não queria porque achava inviável publicar um texto em fluxo de consciência num jornal onde, lógico, possui uma linguagem peculiar e não deve ser utilizada para se publicar iconoclastias literárias (foi o que ele me disse, meio sem graça).

Fiquei profundamente magoado com a desfeita. Claro que eu sei hoje que ele tinha toda a razão e eu era realmente um pequeno irresponsável.

Mas eis que me caiu a oportunidade de enviar meu refugado texto para um concurso. Resolvi defende-lo mesmo porque um professor de Português Aplicado à Comunicação havia gostado muito dele.

Só que como ele foi escrito em “fluxo de consciência”, não tive escolha: fui obrigado a concorrer em Poesia. Estava meio desacreditado mas, é aquela coisa. Depois que a gente envia, começa a fazer figa, e achar que vai ganhar de verdade.

Não ganhei. O prêmio era um Aurelião. Não me importei. Afinal de contas, eu já tinha um, que quase não usava. Todos os concorrentes, com suas respectivas caras patibulares, foram participar da cerimônia de entrega e receber um exemplar da antologia de textos que ganharam (respectivamente os três primeiros lugares em Crônica, Prosa e Poesia).

O primeiro lugar era um soneto meio bizarro. Mas era um soneto. Folheando o livro, na última página, estava eu, com meu fluxo de consciência, em terceiro lugar!

Mas qual foi a minha surpresa ao ver que, entre os jurados, estava ninguém mais, ninguém menos que o Moacyr Scliar! Há muito que eu não lia seus livros, muito embora sempre lesse suas crônicas na Zero Hora. Mas fiquei absolutamente surpreso em descobrir que o grande escritor Moacyr Scliar estava participando de uma banca de um concurso de diretório acadêmico das Letras da PUCRS.

Depois descobri que, a despeito de ser médico, ele tinha essa doença crônica: era incapaz de render fogo, e teria feito (se não fez) isso um milhão de vezes. O exército de um homem só era ele que era capaz de comparecer a mil eventos literários e ainda arranjar tempo para escrever mil coisas ao mesmo tempo. Era o típico exemplo de que escrever não é, necessariamente, uma questão de falta de tempo.

Era o Jacó da literatura, serviria a ela sete mais sete, mais sete, mais sete anos tamanha fosse a sua capacidade de resignação. E, de repente, eu descobri que aquele homem que meu primo me atormentava para ler estava ali, diante de meus olhos.


A morte dele me veio menos pela surpresa do fato de que eu sabia que estava internado há pelo menos um mês no Clínicas, vítima de um AVC decorrente de seqüelas de uma operação.

Mas mais porque, um dia antes, eu havia tropeçado num vídeo do Youtube que falava sobre o Erico Veríssimo. No fim do tal vídeo, aparece o seu filho, Luís Fernando, contando os últimos momentos do autor de Clarissa. Disse que ele sentou numa cadeira, encolheu os ombros, fechou os olhos e morreu. Depois apareceram cenas do seu velório e enterro e a manchete garrafal da Zero Hora: MORRE ERICO VERISSIMO

Eu fiquei pensando qual era a pátria do escritor depois da morte. O Erico vivia filosofando sobre vida e morte no O Tempo e o Vento. Vendo as cenas do enterro do autor de Música ao Longe e misturando com as do velório do Scliar na Assembléia, me lembrei de uma fala do Tio Bicho no final do Arquipélago:

— É a idéia mágica de que, se não houvesse todo esse cerimonial macabro, o terror da morte perderia o seu ferrão. Estou convencido de que os mortos nada têm a ver com a morte. A morte é assunto exclusivo dos vivos.



Bom, fica a dica do meu primo: leia Moacyr Scliar!

Saturday, February 26, 2011

Pirulito & Sabonete



— Fim-de-semana sem futebol é tão sem graça...

— E, mas, fim-de-semana sem Gauchão é uma dádiva.

Selvageria


O acidente. Foto: Tarsila Pereira



Imaginem um ciclista descendo a Silva Só, em Porto Alegre, mochila às costas, em direção à Ipiranga, para ir até a PUC, numa tarde de sexta.

Quando ele passa pelo shopping de fábricas e está prestes a passar pela ruela da quadra do Mc Donald's, percebe que tem um taxista fazendo václo atrás dele.

O cilcista segue a marcha, porque logo ambos vão ababar chegando no semáforo. No entanto, o taxista não pretende chegar à Ipiranga, mas dobrar a tal ruela. Ao invés de esperar o ciclista passar e dobrar ele, como um piloto de carros, mete o pá na tábua e ultrapassa o ciclista para podá-lo de maneira triunfal e heróica e ganhar a rua.

Seu plano falha, no entanto. Ao vencer o ciclista, ele esbarra o pára-lamas traseiro no guidom (com espelhinho) da bicicleta; o ciclista perde o equilíbrio e rola rua abaixo, até parar no meio-fio da famosa lanchonete.

O ciclista era eu.


Me levantei e vi que o taxista parou o carro. Atordoado, ele percebe que havia um brigadeano na calçada que, fazendo ronda na quadra, foi testemunha da podada e do meu albaroamento.

Não podia ser pior para ele — e para mim que, por milagre, saí ileso do acidente. Foi uma briga para eu explicar ao BM que eu estava bem e queria retomar a marcha até a universidade. E fui embora. O taxista, parado diante de nós, não ousava nos fitar: foi pego em absoluto flagrante. Vi que a bicicleta estava intacta, levantei polvadeira e bati em retirada. Como não morri, tinha que continuar meu curso no planeta Terra. Pior: não podia ganhar falta.

Meu acidente aconteceu novamente na minha memória quando eu li, ainda na sexta (via o Correio do Povo do Twitter) que um grupo de ciclistas foi atropelado por volta das 19h na esquina das ruas José do Patrocínio e Luiz Afonso, na Cidade Baixa. A notícia dava conta que pelo menos 15 pessoas ficaram feridas.

Á princípio, achei que fosse algo fortuito; um motorista colhe por acidente dois ou três em alguma rua movimentada de Porto Alegre. Qual foi a minha surpresa ao saber que o grupo era de vários ciclistas e o pior, o tal motorista teria feito questão de abrir caminho impiedosamente através das bicicletas, passando por cima de 150 ciclistas como se todos fossem peças de boliche.

O homem se impacientou e, como o Pateta do famoso desenho do Walt Disney, deve ter achado que, como ele paga impostos, a rua é dele. E resolveu passar por cima de todo mundo para chegar mais cedo em casa.

A truculência foi adiante: tentaram linchar o motorista (que tem um Gol com a sugestiva cor preta); mais tarde, achar o homem em casa, caçá-lo e dependurá-lo num galho de árvore como se fosse um ladrão de cavalos de filme de Western.

É a bárbarie contra a barbárie. Não sei se é de se esperar em Porto Alegre. Uma cidade que tem um dos — senão o mais caótico trânsito do país. Não apenas contando a negligência por parte do municipalidade em diversos aspectos, que vão desde engenharia de tráfego até o próprio transporte urbano (cuja discussão não vão ao caso nesse post).

Mas o pior mesmo é constatar o seguinte: Porto Alegre é uma cidade que odeia ciclistas. A Prefeitura não os quer, os motoristas, em geral, os odeiam. Não existe espaço para o ciclista na capital. Senão, tente subir a Av. Sertório em drive time em direção ao Sarandi, por exemplo. O espaço mal calculado a que foram destinados as paradas de ônibus e o corredor diminuiram o espaço da pista.

Fora o fato de que, em muitos trechos, a pista é recapeada e, por conta disso, possui vários desvíveis, impedindo que se possa andar com considerável velocidade. Aí alguém irá dizer: "por que não ir pela calçada, então"?

Primeiro porque o Código de 1998 proíbe (no papel, claro) o trânsito de bicicletas em calçadas. Segundo porque cadê calçadas?

Outra é o famoso Caminho dos Parques. Ninguém sabe (e nem quer saber) mas existe uma ciclovia que une três parques de Porto Alegre — o Moinhos, a Redenção e o da Harmonia. E a trilha passa por algumas ruas de Porto Alegre, como a Vasco da Gama e a rua da República. Pois bem. Alguém sabe que o lado esquerdo da República é uma ciclova. Quem bebe ali todo dia e estaciona nas redondezas não.

Prá quê uma ciclovia em Porto Alegre, não é mesmo? Porto Alegre também passa por cima dos seus ciclistas.

Prá que? Mas isso é só um detalhe. O pior mesmo é o descaso dos motoristas. Peguei meu caso do particular para o geral porque meu caso é simples comparado à tragédia da José do Patrocínio.

Mas o motorista que bota a mão no volante, dá a partida e vira o Barão Vermelho das quatro rodas, ele não se resume ao meu amigo taxista, nem ao facínora do gol preto. Eles são muitos. Aí, quem sabe, só alguém da linha freudiana possa explicar a doença do trânsito de Porto Alegre.

Pego o caso das dezenas de carros que vivem caindo no Arroio Dilúvio. Seria folclórico se não fosse tragicamente patológico. Vai ver que eles vivem caindo no Arroio Dilúvio expiando a sua neurose como uma forma inconsciente de autopunição, o ato falho da culpa de não terem limites na hora de dar a partida em seus respectivos automóveis, como o criminoso que deixa a pista do crime. E que vai meter seus bofes, sua culpa incubada e seus radiadores no esgoto...

Por fim, tomem cuidado: o taxista que me atropelou na Silva Só deve estar à solta.

Friday, February 25, 2011

O violão de 3 libras


O jovem Harrison

George era o único dos quatro irmãos que não teve problemas de comportamento no colégio. Quando ele terminou seus primeiros estudos, seus pais, ela uma balconista e ele, motorista de ônibus desempregado, viam no garoto um futuro promissor nos livros. Ou por outra, ele seria o escolhido da prole para, quem sabe, salvar a reputação dos Harrison?

Foi quando George conheceu o skiffle de Lonnie Donegan e enlouqueceu. Ao invés de prestar atenção na classe, agora ele ficava desenhando guitarras na mesa à lápis enquanto o professor escrevia garatujas na lousa.

Os pais de George, no entanto, poderiam achar aquilo algo discrepante e ofrçar o pobre rapaz a desistir da música. Mas não foi assim que aconteceu: sua mãe, que não ganhava um grande salário numa quitanda das redondezas, não só arranjou três libras para o seu primeiro violão como também acompanhava de perto a evolução do garoto no instrumento.

Foi uma questão de tempo: ele queria uma guitarra e conseguiu; depois, passava o dia inteiro esfolando a ponta dos dedos para aprender novos acordes. Não fosse por amor, talvez seus pais tivessem certeza de que era um investimento a fundo perdido.

Isso foi em 1958. Sobre essa época, George disse, certa feita: "no começo era bom, nós éramos garotos, queríamos tocar e, quem sabe, gravar um disco", diz. "Achávamos que se pudéssemos chegar até Londres e começar a gravar, nós até conseguiríamos fazer sucesso. Essa foi a parte mais difícil — dois anos tentando todas as gravadoras, e nada. Nosso primeiro sucesso foi Love Me Do. Depois todos foram números 1. Até que aquilo cvomeçou a ficar ridículo, nós nunca podíamos imaginar que íamos chegar onde chegamos (...) o que aconteceu de fato foi quando nós demos o primeiro passo".

Na biografia dos Beatles, Geofrey Strokes fala que poderia haver dúvidas de que George se encaixaria nos Quarrymen. "John estava explorando la vie bohème do Liverpool Art College, e George era um Ted mal-ajambrado e de dentes tortos, com quinze anos. Mas ele sabia tocar — talvez melhor do que Paul — e, com a guitarra nas mãos, se superava. Ao aceitá-lo no grupoPaul e John assumiam que tocar bem significava mais do que falar bem. Com ele, três quartos dos Beatles já estavam formados".

George falou que o primeiro passo foi chegar a Londres e gravar. Na verdade, se formos olhar em retrospectiva, o primeiro passo mesmo foi aquele Dutch Egmond de 3 libras que ele pôde comprar com o dinheiro de sua mãe.

A intuição feminina de Louise estava certa. O seu futuro promissor era a música.

Thursday, February 24, 2011

A Carta


Chopin, "Minha Dor"


Esses dias eu fui pegar uma caixa de papelão no topo do meu armário de discos e caiu um livro com um cartão dentro. Era um cartão com um marca-páginas e uma dedicatória de um ex-rabicho. De repente eu esqueci a caixa e fiquei contemplando o envelope, abri e reli. Ela diz coisas como "seja feliz", "estou sempre pronta", coisa assim (não vou pegá-la de novo, óbvio).

Aquilo me causou um fluxo de consciência de ter sido raptado por uma memória involuntária. E de repente eu estava com ela enquanto eu lia a sua letrinha miúda e o neu nome do envelope.

Eu não sei porque tudo acabou mas era mais forte do que eu. Eu me apaixonei de uma forma catártica. Quando eu me dei conta, eu estava totalmente enfeitiçado. Mesmo que permenecêssemos apenas amigos, era como se aquela dedicação com que eu me oferercia para ela era como se me fizesse sair de dentro de meu egoísmo e conhecer alguém, como se ela houvesse se tornado uma depositária de todo o meu afeto.

E ficava pensando como era bom estar enamorado. E como era bom eu ficar quieto no meu canto no catre sonhando com ela. Então eu me dei conta de que eu não era assim e, de uma hora para outra, eu ficava triste e suspirando de saudades. Era pura mágica. Eu leio coisas gentis que eu escrevi para ela, coisas que eu também nem mandei. E fiquei com saudade de quando éramos quase jovens e saudade de estar apaixonado. Era algo idílico e sublime como o primeiro ato do La Bohème: talor dal mio forziere...

Falando nisso, Chopin se correspondeu com a mãe de uma garota, Maria Wodzinska, com quem ele estava enamorado. A família, no entanto, foi contra o casamento, talvez devido ao estado de saúde do compositor polonês (ele era tísico), e ele sabia que fora discriminado.


Então recebeu toda a sua correspondência de volta. Pôs tudo num envelope e escreveu, Moja Bieda (Minha Dor).

A carta dela foi quando nos encontramos pela última vez. Me lembro que eu tinha pensado milhões de vezes em por essa carta fora, mas não consegui. E guardei uma foto juntos. Não gosto da foto. Não ficou bem batida.

Barthes quando escreveu sobre fotografia falava do lado suybjetivo de quem vê. Retratos guardados são mais do que registros do real, falam a quem ficou sozinho num tempo posterior. Fala de um passado como o marco de algo que existiu e acaba criando uma nova realidade perdida no tempo e no espaço.


A foto é um registro do que não estpa. Agora, quanto mais leio, mais ela se parece real. Imagino ela se ruborizando, me olhando com seus olhos chineses de repente e pegando em minha mão, enquanto o ar era límpido de um céu muito lavado e longínquo de uma tarde antiga na faculdade...

Tentei esquecê-la; inútil. Mas é um amor que se cristalizou e faz parte apenas de algo que interessa apenas e tão somente a mim. E que, tão mágico e inesquecível, eu prefiro deixar morrer comigo. Já me odiei por sentir isso depois de tanto tempo. Mas deveria agradecê-la por tudo e por nada. Ela fez eu querer ser uma pessoa melhor. Mais: ela me libertou. Fez isso e me deixou, e me fez cativo do seu amor.

Inexplicável como as pessoas mudam. Como disse alguém, mesmo em casos fadados ao desenlace, existe sempre uma ambivalência no rompimento definitivo.

Se alguém quer estar certo de romper numa relação e não voltar de forma alguma a ela, é sempre levada a uma sensação de crueldade que, no fim, mostra sempre que, a despeito de qualquer ódio superficial, o amor ainda existe.

Peguei o envelope e joguei com estrépito para o topo do velho armário, de onde ele não deveria ter saído.

Friday, February 18, 2011

Um Certo Erico Verissimo


"Era uma noite fria de lua cheia..."


Erico Verissimo sempre me lembrou meu avô. Não só pela fisionomia mas também porque me lembro de ver a lombada do Solo de Clarineta na sua estante. Contudo, o único livro do autor de Clarissa que eu havia me debruçado foi Noite, nos tempos da faculdade.

Quando o lançamento de O Continente completou cinqüenta anos, em 1999, eu guardei um suplemento literário sobre O Tempo e o Vento. Esses dias, o velho jornal me caiu nas mãos.

Então eu pensei: está na hora de eu ler definitivamente toda a trilogia. Isso se deu pouco antes da última Feira do Livro. Fiz algo que eu não fazia há tempos, ir a um sebo.

Eu não frequentava sebos há muito tempo e não me sentia remotivado a ler um livro — exceto os de sempre, que eu tenho sempre à cabeceira.


Peguei uns morlacos, uns livros usados de minha coleção e troquei pelo Continente. — que vai de 1745 a 1845. O interessante é que é um misto de história e ficção e a relação com o local não faz do livro um romance regionalista, mas sim um romance regional. Ao mesmo tempo, não tem o mesmo caráter "socializante" dos autores do Romance de 30, como Jorge Amado, Franklin Távora e o Jorge Amado.

Uma curiosidade: O Erico escreveu boa parte do Continente no escritório dele nos fundos da Livraria do Globo, no Centro de Porto Alegre, e a janela — ele diz no Solo de Clarineta — dava quase para a cozinha do antigo restaurante D. Maria (que ficava na José Montaury defronte ao abrigo de bondes, e que não existe mais), o que fazia com que, todo dia a partir das onze da manhã, o blend de óleo de peixe frito lhe embrulhase o estômago...

O capítulo Ana Terra é lindíssimo, é mitológico como uma passagem do Gênese.

O Continente é entremeado pelo cerco dos federalistas ao sobrado dos Terra Cambará, em 1895. Eles estão sitiados. Daí começa a história, mostrando a vida nos Sete Povos na voz de um padre jesuíta, Pe. Alonso. Fala perfeitamente como era a cultura e a economia nas missões jesuíticas no século XVIII.

É a história do Rio Grande do Sul contada da forma mas incrível e sublime.

Ele tenta salvar uma índia perdida que morre ao dar a luz a um menino, Pedro, batizado por Alonso. O menino tem visões. A mais bela é a de que sua mãe era a encarnação da Virgem, a e a chama de Rosa Mística.

Daí vem as guerras após o tratato de Santo Idelfonso. Vão entregar Sacramento aos portugueses e surge a figura do capitão alferes Sepé Tiaraju. Pedro vê Sepé morrer em batalha e é o fim de A Fonte.

Corte cinematográfico para o cerco do Sobrado. Aí começa a saga da família Terra, perdida no meio de uma sesmaria. Seus irmãos encontram um índio que havia sido ferido em batalha — o índio é Pedro. A família Terra veio de Sorocaba, pois o patriarca deles era tropeiro e decidiu ficar no sul.

Eles salvam Pedro, que se torna agregado da família, ele e Ana se apaixonam, ela engravida dele, ele depois disse que teve a visão da morte dele. Aí começa a tragédia.

Em alguns trechos, o Erico mostra, pela boca dos personagens, a diferença entre o homem da campanha, ligado a gueras, ao nomadismo, a viver numa região ao mesmo tempo fronteiriça e sem fronteiras, a lida com as armas e com a linguagem e os hábitos platinos em confronto com o homem típico do litoral, mais ligado ao nomadismo, ao comércio, à paz, e de raiz açoriana. Isso ele compara na boca do amigo do Cap. Rodrigo, Pe. Lara.

A sutilileza em que o Erico consegue dividir ambiente, caracterização dos personagens e fazer uma sociologia do gaúcho e das lendas e históricas é de uma síntese perfeita.


II


Aliás, tem um ensaio do Antônio Hohlfeldt que demonstra o elemento dialético na relação tempo - vento.

O tempo parece ligado às mulheres, que solidificam as tradições familiares e a perpetuam, e estão ligadas, por exemplo, na imagam da tesoura da mãe de Ana Terra, que passa de geração em geração quando elas a usam para cortar o corão umbilical das crianças. Elas são o elemento agregador.

Isso é curioso: na última fala entre Sílvia e Rodrigo Cambará, ele pergunta à ela se existe algo entre ela e seu filho, Floriano. Ela encolhe os ombros, e diz que não. A despeito de todo o seu lado infiel, ele explica à moça que ela devia permanecer ao lado de Jango (irmão de Floriano, que também disputava o amor da menina) porque ele, Rodrigo, sabia que ela seria o tal elemento agregador.

Isso que ela já havia gerado um filho (de Jango) e naturalmente se tornara a mulher que iria perpetuar esse lado agregador dos Terra-Cambará e de todas as mães do Rio Grande que se resignavam à esse papel histórico-mitológico ou o que quer que seja.

O elemento masculino, o de conquista e derrota, expansão é o do vento, e é simbolizado pelo punhal do Pedro Missioneiro. Esse elemento conquistador é desagregador, é beligerante, e mostra a diferença entre Ana Terra e um certo Cap. Rodrigo e a sua aura trágica. Ele é um personagem trágico, sabe que deve morrer em combate.

Todos os Cambarás tinham o código de honra: morrer em combate. O maior deles, o Chantecler, Dr. Rodrigo Cambará, morre na cama, sozinho, vitima de um infarte fulminante.

Numa fala, Bibiana pensa em An Terra e diz: "o destibno das mulheres da família era fiar, chorar e esperar". Mas eu vejo que nisso reside não uma total resignação, mas sim uma espécie de fortaleza emocional, de destino maternal e familiar.

Maria Valéria — que com sua vela que nunca se apaga, atravessa todos os sete volumes do Tempo e o Vento, quando confronta Licurgo, por exemplo, é capaz de separar o espaço feminino do masculino na casa na visão machista, mas ela também é capaz de ver a hipocrisia no discurso de Licurgo.

Ela encontra esse espaço e acaba se tornando, tanto quando Bibiana, a mulher que dá a corda no relógio do Sobrado e que é a guardiã, é a matriarca, a guardiã da virtude do Sobrado, ela sabe tudo, é uma mulher forte e prática, é uma personagem admirável, é a deusa do lar, a Héstia, é a memória cultural da família na figura feminina. Isso mostra a força das personagens femininas do Erico e do elemento feminino na formação desse espaço.

Claro que Erico se coloca o tempo todo na defensiva em favor das mulheres: ele naturalmente entende a figura basilar delas na família, mas desmascara o machismo. Como na fala de Luzia: "Mas dr. Winter, nesta terra os homens não fazem muita diferença entre as mulheres e os cavalos (...) veja bem, doutor, a idéia dos gaúchos em geral é a de que o cavalo e a mulher foram feitos para servirem aos homens, e nós nem podemos ficar ofendidas, porque os rio-grandenses dão muito valor aos seus cavalos..."

III

Interessante no O Continente são citações ao surgimento do comércio de gado, a partir do começo do Século XVIII.

O sul tinha uma vacaria sem dono e São Paulo e Minas precisavam de animais de carga para o extrativismo. Aí surgiu a primeira BR 101, que passava por dentro do Morro dos Conventos, Campos de Cima da Serra e depois o Litoral e Viamão.

A ocupação portuguesa - depois dos Sete Povos se deu quando a Coroa achou que erapreciso fixar gente aqui (porque a fronteira era inexistente, e a rigor,ia até as margens do Ibicuí), e concedeu sesmarias. Porto Alegre era uma sesmaria, lotada em Viamão.

A sesmaria de viamão tinha uma invernada, quanto mais posses os tropeiros conseguiam aquinhoar, maior poderia ser a sesmaria.

Depois de Viamão viria Rio Grande, que era o único porto possível no mar do Rio Grande, em 37. A Igreja Matriz da cidade é dessa época e é a mais antiga do Estado.

Para mão de obra, chegam 400 casais de açorianos. No livro, o Erico descreve a desgraça que foi a viagem do arquipélago para Laguna. Porém, a descendência dos Terra é portuguesa de Sorocaba, na verdade, e Pedro não era sesmeiro.

Outra é que a família Terra é atacada por castelhanos por 1780, mais ou menos.

Interessante é ver que desde 1760, depois do fim das guerras guaraníticas, o Rio Grande foi confiado a um civil e sendo desprotegido, ele virou foco de interesse do governador de Buenos Aires, que atacou Sacramento e sitiou Rio Grande por 13 anos.

Pedro de Cevallos era um doido do tempo do tratado de Tordesilhas e queria todo o Continente de volta. Atacou Rio Grande e depois Rio Pardo.

Isso explica porque nessa época em que o território era tão desprotegido, e a família de Ana Terra foi covardemente dizimada.

Pior que os castelhanos de 63 a 76 invadiram tudo mesmo, exceto Rio Pardo, mas derrotaram Rio Grande, e depois partiram para Viamão. Houve uma diáspora para o norte, mas muitos portugueses presos pelos espanhóis foram mandados para San Carlos, no Uruguai. Rio Grande só seria retomada em 1776.

IV

As mulheres representam a figura importante na família — como no caso da do próprio Erico, que teve sua mãe, Dona Bega, como a pessoa que carregou sua prole nas costas, enquanto seu pai deixava o lar.

Mas nem todas as mulheres de O Tempo e o Vento pertencem a esse arquétipo: existem as outras, as que viram a cabeça dos homens, as não agregadoras. Como no caso Luzia-Teniaguá.

Bolívar, ao contrário do pai, não seduz: é seduzido. Ela era vista como uma espécie de ameaça, uma femme fatale, uma devoradora de homens. Ela teria levado o filho de Bibiana à ruína, ela provocou a cisão no Sobrado e a "guerra" a que o referido capítulo do Continente se refere não é bem a do Paraguai, mas a da filha de Pedro Terra e sua insigne norinha diabólica.

Nesse episódio, é de se pensar se realmente Luzia era tão má como parecia ser. Talvez apenas na cabeça da velha Bibiana que, de tanto odiá-la na conquista do Sobrado que ela, coitada, acabou ficando gagá...

Bolívar Terra Cambará é uma espécie de anti-herói: ele herdou os defeitos das duas famílias, o ímpeto e a estupidez do pai e a teimosia muar dos Terra. Um homem traumatizado de guerra, nervoso, e que casa com uma mulher de outra cultura. A morte dele é triste, deprimente e estúpida.

Curioso é que o Erico mostra o contraste entre o colono português continentino, que é tosco, ao passo que ocorre um curioso choque cultural quando Predro Missioneiro mostra que, a despeito de ser indígena, sabe ler, escrever e tocar um instrumento musical, e os filhos dos Terra e as gerações posteriores nunca viram nada de mais em ter algum tipo de erudição.

Para ver que a civilização dos Sete Povos estava realmente à frente do seu tempo.

E a Luzia era uma mulher da Corte, e foi parar por acidente em Santa Fé. O casamento é a ruína desde o começo. E Bibiana, depois de velha, vira uma espécie de matrona vingativa, ciumenta (não deixa que ninguém corteje Luzia) e obcecada em tomar o Sobrado e a guarda de Licurgo.


Capitão Rodrigo é arquétpico. É uma figuraça. Ele é o tipo de gaucho que não é nem patrão, nem peão, é soldado paisano que luta a soldo de caudilho. Ele era soldado do Bento Gonçalves e entrou na guerra do lado dele, quando Bento Amaral ficou do lado dos legalistas. O curioso é que depois os amarais ficam do lado dos maragatos e os Cambarás do lado dos chimangos.

Mas sua fanfarronice é quase inverossímil: funciona mais como um arquétipo dentro da mitologia particular dos Cambará: gosta de mulheres, jogo, bebida e de morrer peleando. Ele assombraria a saga no Retrato, com Toríbio e Rodrigo que, ao contrário de Ligurgo, a figura parental transitória, têm muitos traços do Capitão. Licurgo, por sinal, é de uma mulher só: Ismália Caré, da morte de Alice até sua morte, na revolução de 23.

Os obscuros Carés também têm o lado obscuro dos Cambará: campeiros, suas mulheres serviam à fúria sexual deles, que tinham elas como seus objetos pessoais no meio do mato.

Momentos inesquecíveis são os diálogos notívagos entre o Padre Lara e o Capitão Rodrigo e a forma como o Erico fala pelo Capitão ao questionar a ordem instituída em Santa Fé e de como o Padre Lara fica do lado do poder por conveniência e por falta de alternativa.


A morte do Capitão Rodrigo sempre me chamou a atenção depois que eu li a Canção dos Nibelungos. Vejo uma relação entre Siegfried e ele, e Kriemhilde e Bibiana, mas bem vago. Eu sei que o Erico conhecia a história, ele cita os Nibelungos pela boca do Dr. Winter.

Os dois morrem meio que num anti-clímax na história eo destino da mulher deles muda a partir dali. Mais ou menos da mesma forma.

A mulher dos dois - Bolivar e Pedro - são más. a de um é comparada pelo Erico com a bruxa da lenda da Salamanca do Jarau e a outra provoca uma tragédia na vida do Pedro da Maia porque trai ele com outro e foge para a Itália.


Bolívar, de temperamento fraco e nervoso por excelência, se deixa morrer num duelo estúpido em parte por conta da rixa dos Terra Cambará com os Amarais, e o outro se mata.

E é curioso traçar correspondência entre Bibiana e Afonso da Maia nas duas histórias, e a relação deles com o lugar onde eles vivem, Afonso o Ramalhete, e Bibiana o Sobrado de Santa Fé, que é um personagem meio prosopopeico no livro.

V


Engraçado que uma professora de semiótica da faculdade me disse, certa feita, que o Erico tinha lido centenas de vezes Os Maias, do Eça. Agora que terminou "A Guerra", eu fiquei pensando que existe alguma ligação entre a segunda parte do Continente com o livro do Eça.

Até porque Bibiana acaba sendo como o Dr Winter analisa (e ele é uma espécie de coro de tragédia grega ao analisar os personagens cinicamente) ela como uma mulher prática. Ela aceita o casamento do Bolivar com uma mulher, a teiniaguá, para retomar o terreno do Pedro Terra em Santa Fé, e depois que o Bolivar morre, ela finca o pé no sobrado e se prende ao neto, Licurgo, a fim de se ficar ao lugar.

Mas a relação com o Eça é que a Bibiana, assim como o Afonso de Maia, ambos têm um filho que morre tragicamente e jovem, e o avô/ó (Afonso e Bibiana) compensam nos netos (Licurgo e Carlos da Maia) a educação que não puderam dar para compensar a personalidade fraca dos filhos (Bolivar e Pedro da Maia).

Licurgo quando cresce depois da guerra do Paraguai vira abolicionista e republicano e naturalmente partidário do Júlio de Castilhos, ou seja, vira um Chimango. E os amarais, sempre legalistas desde os Farrapos, viram maragatos.



VI

O Retrato é a história do neto do Cap. Rodrigo, Dr. Rodrigo Cambará, filho de Licurgo, neto de Bibiana. Ele é o típico filho de estância formado na cidade, cosmopolita e culto, um dândi e playboy bon vivant de fraque numa terra de bugres, que vivem de chilenas, bombachas e mangas de camisa.

Narra o retorno dele à Santa Fé e a sua ascenção como intelectual e agitador cultural na região. Mas como acontece na maioria dos pernagens épicos, ele tem dois lados. O Erico não perdoa nenhum personagem. A Bibiana, coitada, de tão obstinada e calculista depois de velha, ficou gagá.

A história vai de 1910 a 1915, começa na campanha civilista onde o Rodrigo se coloca contra Hermes da Fonseca e Pinheiro Machado. Licurgo já se desiludiu com o governo. Rodrigo tenta combater o borgismo e Hermes na cidade, vira um herói, um príncipe, um apolo narsísico e sanguíneo mas é um homem controverso, não foge ao sangue totalmente passional e impetuoso do avô.

Termina na morte do Pinheiro Machado. Mas tem um outro evento paralelo no desfecho (relacionado à Rodrigo) que é chocante. Genial demais. Erico usa o recurso de fluxo de consciência para mostrar a confusão mental de nosso herói, flagrado de forma trágica em mais uma aventura donjuanesca...


A música tema do jovem Rodrigo: Loin Du Bal

O Retrato começa e o Arquipélago termina em 1945 no intermezzo Retrato de Família (onde o lado psicológico é plenamente explorado, junto com o histórico), quando Rodrigo, já velho, é apeado do poder com a queda de Vargas, e termina seus dias condenado num quarto do Sobrado, cercado de seus amigos Liroca, Tenente Prates e Tio Bicho, analisando a Era Vargas.

No fim aparece Floriano, que é um alterego do Erico, totalmente. O último capítulo, narrado no foco de Floriano, é o Erico autobiografado, falando sobre o problema do escritor intelectual naquele momento histórico, de ser ou não engajado politicamente. Ele se explica (Floriano-Erico) com a sua data venia neutra.

Floriano é o Erico pacifista e o Erico escritor, se confrontando com o seu papel como escritor, do exercício da escrita e da forma como o intelectual que, na sua época, se não tivesse opção política ou não escolhesse entre preto ou branco, acabava sendo marginalizado ou taxado de alienado.

Ou, ser escritor num momento histórico em que era preciso tomar partido de alguma causa, qualquer que ela fosse.


O diferencial é que, ao contrário do Continente, o Retrato (e, principalmente o Arquipélago) não tem a mesma linguagem. É livrescamente bem mais 'urbanizado', como eu devo ter dito antes, evoca o estilo do Eça. E é um romance histórico. E, ao mesmo tempo, a própria linguagem utilizada por Verissimo se "moderniza".

No Continente, em alguns momentos, o tempo é sugerido, como em Ana Terra, a passagem do tempo é vaga. E no primeiro livro se vão 200 anos. No Retrato e no Arquipélago, são apenas 50 anos.


VII

A técnica narrativa do Erico é convencional às vezes, mas é requintada. É de grifar (como eu faço) palavras, frases, descrições de ambiente.

O delírio final do Rodrigo Cambará no Angico (fim de A Sombra do Anjo) é genial, o Erico utiliza uma técnica de fluxo de consciência que não é nada convencional, pelo menos, não esperava isso do Erico.

Interessante traçar a diferença entre Rodrigo e Toríbio, um urbanizado e o outro, campeiro, e depois Floriano e Eduardo, um escritor e o outro, comunista ferrenho, e os embates ideológicos.

Aliás, o Erico mete política o tempo todo nos diálogos, recheia o livro com momentos desse tipo.

Tem uma hora em que o Pinheiro Machado chega à Santa Fé e tenta convencer o Rodrigo a voltar ao PRR para se candidatar à deputado. No fim, ele rompe com o senador, no mesmo momento em que ele é assassinado no Rio, em 1915. Dá para ter a noção da importância do senador (que era conterrâneo do Erico) na vida pública brasileira na República Velha.

O curioso é que, a despeito do Continente, a parte da triologia que eu queria chegar era justamente o Arquipélago.

Acho que o Dr. Rodrigo Cambará é o grande personagem do livro. O Retrato é uma preparação para a aventuira política dele no Arquipélago e eu estou abismado. É genial como o Erico mostra como era a vida político-boêmia-intelectual-cultural de Porto Alegre e do Estado nos anos 10, 20 e 30.

Tem uma cena no Clube dos Caçadores, um famoso cabaré que existia aqui no Centro, que é totalmente noir.

O estilo dele no Arquipélago é bem mais apurado e conciso, e ele cuida de colocar elementos relacionados aos livros anteriores.

Em parte tem a saga política do Rodrigo, de castilhista até a Reação Republicana (ele apoiava o civilismo do Rui no Retrato, depois entrou no PRR a pedido do Sen. Pinheiro Machado e depois, com a crise de 1922 (Cartas falsas, 18 do Forte), ela passa apoiar a Reação Republicana apoiando o Nilo Peçanha e depois naturalmente o Assis Brasil contra o Borges.

E o livro mostra bem o que eram aqueles anos políticos aqui no Estado: conturbados e violentos, ainda vivendo o racha de 93, que só acabaria quando pica-paus e maragatos se uniram contra Washington Luís, na Aliança Liberal.

VIII

Mas o Arquipélago valeria só pelo Caderno de Pauta Simples. O Erico recriou aquele interlúdio poético entre os capítulos como esboços do Floriano, que também são arroubos de literatura "moderna" em Erico, que enfeixa o romance de forma inteligente ao usar ou de uma linguagem poética e figurativa dentro do seu respectivo contexto ao capítulo temático quando o diário de Sílvia, um beethoviniano e fulgurante scherzo quase no fim da sinfonia monumental que é o Tempo e o Vento, e que se liga triunfalmente à coda, o capítulo Encruzilhada.

No Retrato, Rodrigo Cambará volta apeado do poder em 45 e todos comentam sobre ele, de forma dividida. Dali começa a saga dele, no primeiro arquipélago, ele sai do PRR para se bater contra os chimangos.

Assim como no Cointinente os intermezzi da história é a resistência contra os maragatos no Sobrado, no Arquipélago é a agonia do Rodrigo Cambará e a relação dele com os filhos e o sobrinho (filho do Toríbio). É um romance ostensivamente psicológico.

Rodrigo é acusado de defender um continuismo que ele criticava em Borges e achava natural em Getúlio Vargas, já que ele era seu comensal, e usou dessa posição para se tornar o Duque de Mântua do Estado Novo, em sua vida de pândego na Capital Federal do tempo dos cassinos.

O engraçado é que o filho do Toríbio virou padre; e o romance, à mediDa em que muda de tempo cronologicamente, muda a própria linguagem.

O arquipélago é uma tese do Floriano-Erico para explicar a relação entre solidão agregamento das pessoas; do ponto de vista metafórico, pois, o 'Continente' é o todo, é a consolidação, a planificação, a solidificação; o 'Arquipélago' é a fragmentação humana e a nostalgia do coletivo — tanto em sociedade quanto dentro do próprio núcleo familiar.

Floriano é uma ilha, tentando unir sua família que se fragmentara pela intempérie e a clivagem do tempo.


Floriano evoca sua amada Sílvia ao ouvir o quinteto para clarineta de Brahms


Nos debates, é possível ver a posição do Verissmo em Floriano e em como ele sofria com o fato de ser escritor e permanecer humanista neutro contra o sectarismo à gaúcha que ele acusa no livro. De você se vender por uma causa apenas por não ter uma causa e ter a nostalgia de estar agregado a alguma causa.

O capítulo do Caderno sobre a irmã morta dele é um dos momentos mais fantásticos/comoventes do livro. Tanto o fim do Arquipélago 1 quanto o do Retrato 2, quando Floriano faz a sua profissão-de-fé pela primeira vez na obra.

Curioso é que um Caré lutou na Força Expedicionária Brasileira e vitrou mártir, neto do Cap. Licurgo. Só o Erico mesmo.

Eu queria que Santa Fé existisse. Nem que fosse para tomar uma cerveja gelada no Ponche Verde ou na Confeitaria Schintzler e ir a um baile no Municipal!

IX

No Solo de Clarineta o Erico diz que o Fandango é inspirado num tio dele que quebrou um disco dele santando em cima sem querer.

O Erico teve um insight. De que aquela gente, depois de 200 anos peleando pela formação do Rio Grande NÃO TEVE TEMPO PARA SE CIVILIZAR.

Luiza Silva é um exemplo: ela foi transformada em louca, mas ela não fez NADA. Era uma mulher cosmopolita diante de um bando de retacos.

O mote do Tempo e o Vento é isso: o choque cultural entre o regionalismo tacanho e o cosmopolitismo. Mesmo político, o Licurgo defendeu as teses republicanas mas era um tosco. Rodrigo Cambará é o primeiro intelectual da família, letrado mas com o ATAVISMO de ser um Cambará. Rodrigo, que mesmo detestando Sigmund Freud e "aquele pessoal de Viena", diz ao seu filho mais velho: "deixe o Cambará sair de dentro de você!". E ele sai, para surpresa de seu pai, que tanto o subestimou.

Floriano é outra pessoa, sofre pelo fato de ser intelectual sem ser engajado, mas é o Erico, o homem que lutou para transformar seu ofício não apenas em profissão, mas como meio de sustento. E nas críticas aos livros de Floriano em O Tempo e o Vento, transparece um reflexo no espelho de Erico, que era também subestimado ou acusado de superficialóide ou de pequeno burguês em alguns romances de formação.

O curioso são os personagens que são antítéticos. Dr Winter questiona o status quo de Santa Fé. Tio Bicho também, em sua verrina cáustica e quase sempre certeira, o castelhano que pintou o Retrato, Don Pepe; é o olhar estrangeiro naquela horda de castiços.

O Erico, em 61, mostra exatamente isso que tu disseste, aqui sempre foi um preto contra o branco, mesmo sem convicção, mas de forma compulsória. E eles nem defendiam o RS, cumpriam ordens de um caudilho. E Erico demonstra isso nos embates platônico-ideológicos ao longo do Arquipélago. O Gaúcho tem suas virtudes, seus mitos, mas tem os seus defeitos.

Voltando ao Continente, apesar de ser mulher e de não er "importância" na família de então, Ana Terra mais forte do que todos os homens so porque viu a hipocrisia em que ela e a sua mãe se submetiam, sobreviveu ao massacre dos Terra por amor ao seu filho com Pedro Missioneiro e agiu de forma brilhantemente agregadora ao se sacrificar por ele e pela cunhada, nem o Velho Testamento imaginaria algo assim. Ela foi muito mais forte e sábia (e lúcida) do que seus irmãos em perpetuar a sua linhagem. Mas nenhum deles poderia fugir ao seu destino trágico.

Por isso, prá mim, é uma das personagens maisa geniais de toda a literatura brasieira. Ela treve a lucidez, o insight que eles nãoi teriam, a despeito de serem os homens, eram personagens inferiores.

Aliás, o Erico salienta isso — de que quem agrega são as mulheres, os honens desagragam, não inconstantes.

A fortaleza da forma como o lado feminino é "continente" na história no sentido de agregação, de prudência, de paciência, nós vemos em Ana Terra, Bibiana, Maria Valéria, de certa forma em Flora (que não é durona como elas) e finalmente Sílivia, que aceita o papel depois de consultar sua consciência — não sem a ajuda do Irmão Toríbio, filho do velho Toríbio que, ao invés de sair putanheiro, virou um discreto padre marista.

X

No começo de O Retrato, a história começa com o retorno de Rodrigo apeado do poder central, em 45. Todos se dividem em atacá-lo ou defendê-lo, mas ele não aparece. É o prelúdio...

Passa todo o Retrato contando a sua hisrória depois de cirar doutor até a morte do Pinheiro Machado, em 1915. E toda a sua repercussão, de como ele era influente, amado ou temido. Aliás, eventos históticos permeiam Santa Fé. O assassinato do homem forte da República Velha se alastra como um câncer pela cidade. E a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial provoca uma pancadaria no Ponche Verde, bar então gerenciado por alemães durante aquele interregno.

O Arquipélago começa e é entremeado em 45, com Rodrigo agora como personagem principal, como num acerto de contas com a família e suas divergências com os filhos, Jango, Eduardo e Floriano.

Esse trecho equivaleria no Continente como O Sobrado, e os trechos de poesia em prosa reaparecem como o Caderno de Pauta Simples.

Num debate entre pai e filhos, vem a tese do Floriano que explica as expressões Continente e Arquipélago. O primeiro é a consolidação e o segundo a fragmentação e a nostalgia inconsciente psicologico-sociológico do sentido de solificação: individual, social.

Termina em 23, quando Borges vence a eleição fraudando-a e começa a Revolução (que vai até 28).

XI

Tia Maria Valéria é muito engraçada, ela rouba a cena, ele singra todo o Tempo eo Vento, ele conquista o leitor — mesmo sem ser a personagem preferida nem deles, nem especificamente de Verissimo. Ela chama o Dr. Bandeira de Tio Bicho e o Arão Stein, o folclórico amigo comunista do Rodrigo de "João Felpudo", porque ele tem ares de janota. Eu morro de rir quando ela chama eles desse jeito.

E o sogro do Rodrigo, Babalo, também é uma figuraça, é mais pachorrento do que eu. Mas é o homem mais virtuoso de todos, em sua calma e discernimento, também sabe roubar a cena à sua maneira. É um homem preso à terra, dado seu passado de tropeiro, mas não é um sujeito obcecado pelo campo, como Toríbio ou Jango, ele tem uma visão menos patriarcalista e mais ligada ao afeto à família e aos seus.

Tio Bicho, sobre a Dinda: "lá vai a Pucela de Santa Fé com a sua vela na mão como um farol ambulante".

Um dia, Flora flagrou a velha falando sozinha enquanto dava corda no relógio do Sobrado. Perguntou: Ué, Dinda, falando sozinha?". Sem se virar, D. Maria Valéria: "estou conversando com os meus mortos". A Dinda fala que existe tempo prá tudo: tempo de plantar, tempo de colher, tempo de guerra, tempo de fazer pessegada...

Um dia, já cega pela catarata, ela disse à Sílvia: "acho que o relógio esqueceu do meu tempo de morrer".

O fascinante é que ela não "morre": Percorre todos os livros com sua vela na mão, vendo se todas as janelas do Sobrado estão bem fechadas, antes de dormir.

Liroca também: ele é eterno no Tempo e o Vento. E ela é o seu amor não correspondido. Curioso, não? Prá mim, são personagens subestimados, porque todos se lembram apenas dos do Continente...

XII

Li Lenço Encarnado (O Arquipélago 2) com uma paixão que nem quando eu tinha quinze e lia Mark Twain e Walter Scott eu me emocionava.

As cenas de combate da Revolução de 23, com a quixotesca coluna revolucionária do Cel. Licurgo são geniais, exceto a heróica, quixotesca e malograda tomada de Santa Fé.

O Erico foi de uma crueza de detalhes de morte, sangue e violência que ele sublimou em todo o Continente, em 35 e 93. A guerra sempre passa longe na primeira parte da trilogia.

Mas 23 virou um épico. Lia no ônibus a tentativa de invasão da Intendência, fiquei o dia todo com as cenas na mente.

No cap 33, que narrativa genial, o ginete do Angico que o Rodrigo sempre4 detestou salva ele de uma emboscada onbde 10 cavalarianos estavam atraindo a coluna para uma tropa de 500 provisórios para matá-los, o Rodrigo cai do cavalo morto (o cavalo), Pedro Vacariano chega, salva ele, põe o homem no seu cavalo e apeia, quando Rodrigo chama-o, o ginete esporeia o cavalo e faz cobertura para a fuga.

Depois eles se deparam com o cadáver do homem, varado de balas.

A Revolução de 23 era estranha, os assisistas queriam derrubar o Borges de Medeiros com lanças do tempo dos Farrapos. Muitos não tinham experiência militar e o Exército estava neutro.

Restavam piquetes de caudilhos, como Honório Lemes, que sobrevivia sem munição comparado com a Brigada do governo, que tinha a famosa Hotkiss, uma matraca. Era a guerra da metralhadora contra a lança. Chimangada dava tiro e os maragatos se escondiam em matas e capões, como se fugissem da Mboitatá.

A tomada frustrada de Santa Fé foi provavelmente inspirada na de Uruguaiana, na fronteira oeste, onde houve a famosa briga de gato e rato do Flores da Cunha com o Honório Lemes.

O sogro do Rodrigo (Aderbal Quadros, o velho e poético Babalo) lia os jornais oposicionistas louvando os feitos do Leão do Caverá como se o homem fosse um Aquiles dos pampas. E até hoje ele é.

O lado romance histórico dessa parte é fantástica, não se compara ao Continente. E o Erico descreve o Flores e o Honório de forma fiel, descreve até a moprte do Adão Latorre, o degolador maragato de 83, que pegou em armas ali com mais de 80 anos e morreu naquele combate na ponte sobre o Ibirapuitã.

Ali que nasceria o mito dos então caudilhos "provisórios" (lenços verdes) Flores e o Oswaldo Aranha. O primeiro depois ficaria contra Getúlio Vargas e o segundo seria o antípoda de Rodrigo Cambará como o homem de República (segundo Floriano).


XIII


Um Certo Capitão Toríbio é genial, boa parte pega a Coluna Prestes e o Toríbio marcha com o Prestes e o João Alberto, o Siqueira Campos e todos aqueles que itriam virar tenentes interventores depois de 30.

Mas o interessante é que o Toríbio é inspirado no tio do Erico, o Nestor Verissimo, que realmente marchou pelo Brasil com a Coluna que foi a única que resistiu às sublevações militares de 24. E descreve como foi a refrega épica de subir até o topo do Nordeste e depois o Nestor de fato escapou milagrosamente de ser morto num pelotão quando foram presos (eles foram presos porque eram do piquete de vanguarda, mas, como se sabe, a Coluna nunca caiu e fugiu pela Bolívia).


Mas, na história, o Toríbio escapa porque um milico reconhece ele como irmão do Rodrigo Cambará, que havia lhe salvo a vida em Santa Fé quando ele sentou praça lá anos antes. É um final de Júlio Verne de surpreendente, porque em parte vai de relatos externos, depois vira uma narrativa epistolar, e depois o Toríbio já no Sobrado conta as histórias de combate, em situações de total miséria e famelidade em que eles sobreviveram.

E a Coluna não era diferente das que os maragatos faziam para fugir da chimangada do Borges em 23, só que ela era muito maior e sem destino pelo Brasil.



Terminei hoje: História termina como começa: o autor é o Floriano, ele se reconcilia com o pai dele, que morre logo depois, e com Sílvia, com quem ele descobre que ela, assim como todas as 'grandes' mulheres da história, resignam ao seu papel de entidades que representam a manutenção do lar, quando ela finalmente se descobre grávida.

Aliás, é a cena mais triste quando Floriano se dá conta que é tarde demais para ele e Sílvia. Ele chega de noite no Sobrado e ouve os passos de Maria Valéria, e diz: "O Sobrado está vivo!". É o finale do Gotterdamerung do Verissimo.

Menção honrosa ao machadiano Tio Bicho, o Falstaff do livro. A cena do velório do Arão onde todo mundo vela o corpo bebendo cachaça é antológica.


Meu avô ia se orgulhar do meu feito: sete livros do Erico em três meses! No fim, eu olho para a pilha de livros ao meu lado como se a história fosse um pouco minha, e um pouco nossa: de todos nós que nascemos aqui. É a nossa bíblia secular.

Vou sentir saudades do tempo em que atravessei os sete volumes da trilogia. Principalmente de trechos como:

"Vassuncê se lembra do Monarca, o meu bragado? Pois tive a noite passada um sonho esquisito com ele. Sonhei que ele estava num potreiro muito grande e de repente vi o Monarca saindo do meio duma cerração. Estava bem aperado e faceiro, sacudindo a cabeça, fazendo sinais prá mim assim como querando dizer: "vim te buscar. Vamos embora". E vassuncê sabe duma coisa? Fiquei contente quando comprendi que o bragado ia me levar pro outro mundo. De repente não senti mais dor nesse peito nem frio nem tristeza nem nada. Tudo era como nos tempos de dantes. Montei no animal e entramos a trote na cerração..."