Wednesday, March 30, 2011

Os enredos mentais de Josué Guimarães


Josué


Josué Guimarães foi um escritor singular: antes, porém, foi jornalista por meio século e, assim como sucedeu ao compositor belga Cesar Franck, floresceu a plena madureza de sua arte já em idade avançada. O debut literário viria apenas em 1972. Ou seja, sua fase como autor durou apenas quatorze dos seus sessenta e cinco anos.


É como se todo o período em que Josué militou na imprensa fosse uma espécie de preparação para a literatura. E o mais peculiar nisso é que o jornalismo lhe franqueou o engenho e a arte necessários para a sua técnica de criação literária.

Segundo Nídia Guimarães, sua companheira de muitos anos, ele tinha a obsessão em escrever enredos mentais: se por acaso ele tivesse uma história na cabeça, descrevia tudo aos seus amigos mais chegados.

Enquanto ele contava, ia resolvendo a trama a cada bate-papo; e a cada vez que ele discursava seu fluxo de consciência, mais elaborada a prosa ia ficando. Ao mesmo tempo, ia resolvendo questões de tempo e espaço na história ou criava novos personagens.

De acordo com Nídia, só depois que ele maturava a coisa toda é que ele sentava diante a máquina de escrever e se punha a passar tudo para o papel.

Um exemplo é Camilo Mortágua. A obra, que compreende mais de 300 páginas fora escrito em apenas dois meses; Os Tambores Silenciosos, por sua vez, Guimarães o completou em apenas 28 dias. Já o excepcional e emocionante É Tarde para Saber, uma semana.

Por conta disso, ao contrário da maioria dos escritores, Josué não fazia anotações, originais ou rascunhos. Ao tocante ao seu estilo, com efeito, não há nada e tão anormal nisso: apenas e justamente fruto de seu vício de jornalista.

A celeridade de ser instantâneo ao escrever com um deadline pendendo sobre sua cabeça como a espada de Damocles o fazia metralhar a máquina, sem tempo para voltar atrás. O texto, mesmo assim e por conta disso mesmo, saia escorreito; ao contrário se seu amigo, Erico Verissimo, que trabalhava em cima de originais, sempre em espço três - a fim de correções ou ilustrações, Josué entregava o texto pronto direto para o prelo.

Aliás, por conta de seu trabalho como redator vocacional (ele também trabalho em rádio) e pelo fato de se lançar como autor já em idade provecta, Guimarães nunca se considerou um escritor de verdade. Muito menos de se sustentar como tal, assim como aconteceu a Verissimo, que foi certamente o primeiro a viver estritamente de ganhos com vendas de livros.

Além disso, havia a falta de tempo e a militância política desde o começo. É aquela história: todo jornalista deve ter um livro cravado dentro de si, como o menino dentro do adulto. Por essas e outras, e mais a falsa modéstia, ele levou muito tempo até se convencer de que era realmente um homem de letras.


Um episódio que ilustra bem o processo de criação de Josué foi contado, certa feita, pelo idealizador da LPM, Ivan Pinheiro Machado. Ivan disse que, num domingo de verão de 79, o autor de Dona Anja o convidou para jantar na Churrascaria Santo Antônio, na Dr. Timóteo.

Então Josué disse: "estou com uma história na cabeça, queres ouvir?". Dada a largada, ele começou a desenrolar o enredo a partir da história de um curioso sobrado que ficava na esquina da 24 de Outubro com a Nova Iorque, na Auxiliadora (perto dali).

Ia do geral (o sobrado) para o particular (os personagens). O garçom trouxe o jantar, clientes entravam e saíam, e Josué desembuchava. Pagaram a ceia, saírama caminhar, e a payada seguia. Subiram a Dr. Timóteo, ganharam a 24 e chegaram até o Parcão. Horas depois a catarse terminou: era Camilo Mortágua.

Ivan disse que, com exceção de A Ferro e Fogo, ele foi testemunha dos enredos mentais de Josué, inclusive alguns que não chegaram ao prelo. Um deles se chamaria Fresta na Janela, e seria a história de uma matricarca que morre às vésperas do casamento da filha e retornaria em segredo ao mundo dos vivos para presenciar as bodas.

Pinheiro Machado porém não ouviu o que seria o terceiro volume de A Ferro e Fogo, Tempo de Angústia. Contudo, Dona Nídia, guardou por anos o começo da história, que restou inacabada na quadragésima lauda. Seria a saga dos Muckers. A história dos santarrões do Ferrabrás o fascinava. Com a morte do autor, coube a Luiz Antônio Assis Brasil a tarefa e contá-la, no Videiras de Cristal — aliás, dedicado à Josué.

Lendo o Josué escritor, havia também o Josué político, sendo que o segundo positivamente habitava no segundo. Afinal de contas, sua obra literária é uma reflexão de todo o contexto político dos anos 70. Sua luta e seu combate acabariam justificando a perseguição da ditadura contra ele, que era trabalhista dos tempos de Jango e Brizola e opositor ao governo revolucionário de 64, ele foi perseguido e preso pelo regime, até que optou pelo exílio em Portugal, one escreveu o excelente livro-reportagem, chamado Lisboa Urgente, sobre a Revolução dos Cravos, de 1975.


Existe uma história curiosa dos seus tempos de clandestino, que Nídia contava. Depois do Golpe, Guimarães vendia apólices do Montepio da Família Militar, (MPM) sob o falso nome de Samuel Ortiz (um nome que ele usava como pseudônimo desde a Legalidade).

Um dia, estava ele em Santos como Samuel, o vendedor de apólices, explicando o plano a um grupo de oficiai quando um deles, de repente, ficou a observá-lo de soslaio. Quando o "subversivo" ia saindo, o milico disse: "eu sei quem é você" (Josué era conhecido como diretor da Agência Nacional antes de 64 e amigo pessoal de Jango). Sem saída, nosso herói apenas disse: "bem, então estou em suas mãos". O coronel, de maneira surpreendente, respondeu: "eu não irei denunciá-lo. Estou vendo que o senhor está lutando e trabalhando para sobreviver". E não o entregou.

O episódio foi contado ao Otto Lara Resende, mais tarde seu colega de redação da Folha de São Paulo, que foi quem reproduziu essa passagem, numa de suas últimas colunas antes de morrer, em 1990.

Por conta do contexto da repressão, foi dentro do Realismo Fantástico, subproduto típico daqueles anos políticos, que mostrava de forma arquétpica e singular as cordilheiras desabando sobre as flores (como diz a música da Simone) e a esperança do povo sob a repressão instiucionalizada e a violência policial como norma vigente.

Isso era algo tão explícito, pulsante e evidente em sua obra, mergulhada naquela conjuntura adversa, que É Tarde Para Saber foi recusada pela José Olympio, a sua editora. Coube então à LPM, então nascente (foi o primeiro romance da editora), lançá-lo, com grande sucesso, em meados dos 70...

Porém, ao contrário do outro Josué, o do Velho Testamento (e mais como um Moisés), ele não foi escolhido de Deus para destruir Jericó e chegar à Terra Prometida da democracia brasileira. Josué Guimarães morreu de câncer, em 23 de março de 1986 — há 25 anos atrás.

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