Wednesday, March 16, 2011

Uma Fábula


O Coelho Branco




De repente alguém soltou a notícia:

— Acharam o Compadre Coelho!

Encontraram, porém, o seu cadáver; seu corpo virado de borco, lambido mansamente pelas ondas do mar, em mangas de camisa e de ceroulas. Alguém reparou que os seus olhos estavam brancos, como se tivessem sido acometidos de catarata; e de seu olhar esgazeado parecia vazar luz.

No escritório onde o Compadre Coelho trabalhava, todos se perguntavam, perplexos: "Mas como pode, logo o Compadre Coelho, um sujeito tão cheio de vida, tão engraçado e mulherengo incorrígível...".

Então o Compadre Castor desembuchou: "e ele estava noivo. Noivo! Ia casar!". Isso ninguém ali sabia. sabiam apenas de sua vida pregressa de solteiro: parecia ter uma amásia em cada rua, em cada esquina, em cada janela. Era o conquistador inveterado, um donjuanesco caixeiro-viajante.

Diz-se que foi quando o Compadre Coelho caiu de arrufos por uma linda coelha. Disse o Compadre Castor: "ele me disse, em choque, meu Deus meu Deus, eu estou amando de verdade. Pela primeira vez na vida, eu estou amando! Pela primeira e derradeira vez, amo".

E dizia isso sem dissimulação alguma. Era, pela primeira e única vez na sua vida, sincero da palheta às alparcas. E revelava isso sem medo nenhum. Falava isso como se tal sentimento o libertasse e o jogasse num inefável turbilhão de sensações.
então veio o inevitável. Teve que pedir a mão da moça.

Sustentava aquele pudico namoro como pôde, durante meses, e aquilo era um novo mundo para ele. Compadre Coelho flanava por entre mesas e cadeiras, perdido como uma criança numa loja de departamentos, fulminado de amor.

Foi quando o sogro quis forçar o noivado a todo o custo. E ele, que sequer havia cogitado qualquer compromisso sério, de tão perdido e confuso, agora estava num brete. Seu amor de ópera virou a Noiva de Lammermoor.

Um dia, num bar, estavam ele eo Compadre Castor. Depois de várias garrafas de cerveja, ele contou o seu dilema ao amigo e confidente:

— Compadre, eu amo ela como se ela fosse uma Santa Tereza. Só que quando eu amo uma mulher, esse amor é para sempre, entrendeu? Para sempre! quando eu amo-la, eu sou incapaz de desejá-la.

— Peraí — interpelou o Compadre Castor. — Nem beijá-la você beijou ela?
— Nunca.

Então o Compadre Coelho pegou o amigo pela gravata (ao fundo, um pianeiro desafinava o Duas Contas, do Garoto, em versão de beguine, dando um ar diáfano àquela cena patética) e falou:

- O negócio é o seguinte: eu posso deflorar qualquer uma, posso querer possuir todas as vadias dessa cidade, menos ela. Ela, não!

Preocupoado com seu amigo, o Copmpadre castor mandou ele procurar assistência médica. Sugeriu que ele fosse se consultar com o famoso Dr. Texugo.

O Dr. Texugo ouviu toda a desesperada explanação do paciente. No fim, Compadre Coelho, dispinéico, pediu um diagnóstico.

— E então, Dr. Texugo? É grave? O que eu tenho? O que eu faço? Qual é a cura? Me diga, por favor!

Dr. Texugo olhou longamente para a cara do Compadre Coelho. O silêncio do médico o exasperava. Compadre Coelho estava esperando certamente que o psicólogo fosse diagnosticar uma grave moléstia, talvez a própria lepra, receitar-lhe o degredo em Moçambique, as masmorras, o Inferno pintado pelo Gustave Doré, o diabo!

— Me salve, doutor! — gemia o paciente. — Eu não sei mais o que fazer, doutor! Eu não sei, doutor!!!

E começar a chorar grosso, sem ter pudor sequer de esconder o rosto e as lágrimas. Era o choro dos embriagados das inconfessáveis confissões de botoco de três da manhã. E como é triste o choro de paus d'água de botecos de três da manhã.

— Não tenho nada prá lhe receitar, compadre Coelho. — respondeu o Dr. Texugo, meio chocado. — Você está apenas apaixonado. É assim mesmo, o senhor precisa ter coragem e esperar. O tempo vai lhe dar as respostas, viva agora apenas as perguntas. Não existe nenhuma panacéia que possa servir-lhe de lenitivo. Não existe mágica. Isso pode ser passageiro, só provoca esse tipo de confusão no começo. Com o tempo, op senhor vai aprender com a experiência.


Compadre Coelho saiu doi consultório, aturdido. Chegou à conclusão de que devia amá-la eternamente como um devoto a uma santa, um relicário, um jardim misterioso, uma rosa dentro de uma redoma.

Na última vez em que beberam juntos, Compadre Coelho disse ao Compadre Castor:

— O velho me pôs no cadafalso. É o fim. Terei agora que oficializar o noivado.
O amigo sorriu:
— Você vai casar? Meus parabéns!

Compadre Coleho não disse nada. encheu um copo de Parati e sorveu a bebida como se fosse groselha, numa sede brutal. Suspirou fundo enquanto assimilava a massiva quantidade de destilado no estômago e disse:

— Compadre Castor, me diga: o que eu vou dizer á ela na Lua de Mel? Como vou explicar meu pudor para ela? O que a família dela vai pensar? E a minha? É o fim.

Compadre Castor passou a madrugada tentando consolá-lo, mas foi em vão. Viu no relógio que era tarde e despediu-se do amigo. Compadre Coelho ficou bebendo até amanhecer.

Foi à beira da praia e se sentou. Viu um pescador solitário e distante, ao longe. Quando a barra vermelha do primeiro sol despontou no horizonte, ele tirou o terno, os sapatos e as meias.

Em mangas de camisa e ceroulas, entrou no mar. Deu dois mergulhos para se acostumar com a água gelada. Marchou em direção ao nascente até desaparecer na espuma das águas.



MORAL DA HISTÓRIA: Todo amor é eterno e todo desejo é vil.

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