Friday, February 18, 2011

Um Certo Erico Verissimo


"Era uma noite fria de lua cheia..."


Erico Verissimo sempre me lembrou meu avô. Não só pela fisionomia mas também porque me lembro de ver a lombada do Solo de Clarineta na sua estante. Contudo, o único livro do autor de Clarissa que eu havia me debruçado foi Noite, nos tempos da faculdade.

Quando o lançamento de O Continente completou cinqüenta anos, em 1999, eu guardei um suplemento literário sobre O Tempo e o Vento. Esses dias, o velho jornal me caiu nas mãos.

Então eu pensei: está na hora de eu ler definitivamente toda a trilogia. Isso se deu pouco antes da última Feira do Livro. Fiz algo que eu não fazia há tempos, ir a um sebo.

Eu não frequentava sebos há muito tempo e não me sentia remotivado a ler um livro — exceto os de sempre, que eu tenho sempre à cabeceira.


Peguei uns morlacos, uns livros usados de minha coleção e troquei pelo Continente. — que vai de 1745 a 1845. O interessante é que é um misto de história e ficção e a relação com o local não faz do livro um romance regionalista, mas sim um romance regional. Ao mesmo tempo, não tem o mesmo caráter "socializante" dos autores do Romance de 30, como Jorge Amado, Franklin Távora e o Jorge Amado.

Uma curiosidade: O Erico escreveu boa parte do Continente no escritório dele nos fundos da Livraria do Globo, no Centro de Porto Alegre, e a janela — ele diz no Solo de Clarineta — dava quase para a cozinha do antigo restaurante D. Maria (que ficava na José Montaury defronte ao abrigo de bondes, e que não existe mais), o que fazia com que, todo dia a partir das onze da manhã, o blend de óleo de peixe frito lhe embrulhase o estômago...

O capítulo Ana Terra é lindíssimo, é mitológico como uma passagem do Gênese.

O Continente é entremeado pelo cerco dos federalistas ao sobrado dos Terra Cambará, em 1895. Eles estão sitiados. Daí começa a história, mostrando a vida nos Sete Povos na voz de um padre jesuíta, Pe. Alonso. Fala perfeitamente como era a cultura e a economia nas missões jesuíticas no século XVIII.

É a história do Rio Grande do Sul contada da forma mas incrível e sublime.

Ele tenta salvar uma índia perdida que morre ao dar a luz a um menino, Pedro, batizado por Alonso. O menino tem visões. A mais bela é a de que sua mãe era a encarnação da Virgem, a e a chama de Rosa Mística.

Daí vem as guerras após o tratato de Santo Idelfonso. Vão entregar Sacramento aos portugueses e surge a figura do capitão alferes Sepé Tiaraju. Pedro vê Sepé morrer em batalha e é o fim de A Fonte.

Corte cinematográfico para o cerco do Sobrado. Aí começa a saga da família Terra, perdida no meio de uma sesmaria. Seus irmãos encontram um índio que havia sido ferido em batalha — o índio é Pedro. A família Terra veio de Sorocaba, pois o patriarca deles era tropeiro e decidiu ficar no sul.

Eles salvam Pedro, que se torna agregado da família, ele e Ana se apaixonam, ela engravida dele, ele depois disse que teve a visão da morte dele. Aí começa a tragédia.

Em alguns trechos, o Erico mostra, pela boca dos personagens, a diferença entre o homem da campanha, ligado a gueras, ao nomadismo, a viver numa região ao mesmo tempo fronteiriça e sem fronteiras, a lida com as armas e com a linguagem e os hábitos platinos em confronto com o homem típico do litoral, mais ligado ao nomadismo, ao comércio, à paz, e de raiz açoriana. Isso ele compara na boca do amigo do Cap. Rodrigo, Pe. Lara.

A sutilileza em que o Erico consegue dividir ambiente, caracterização dos personagens e fazer uma sociologia do gaúcho e das lendas e históricas é de uma síntese perfeita.


II


Aliás, tem um ensaio do Antônio Hohlfeldt que demonstra o elemento dialético na relação tempo - vento.

O tempo parece ligado às mulheres, que solidificam as tradições familiares e a perpetuam, e estão ligadas, por exemplo, na imagam da tesoura da mãe de Ana Terra, que passa de geração em geração quando elas a usam para cortar o corão umbilical das crianças. Elas são o elemento agregador.

Isso é curioso: na última fala entre Sílvia e Rodrigo Cambará, ele pergunta à ela se existe algo entre ela e seu filho, Floriano. Ela encolhe os ombros, e diz que não. A despeito de todo o seu lado infiel, ele explica à moça que ela devia permanecer ao lado de Jango (irmão de Floriano, que também disputava o amor da menina) porque ele, Rodrigo, sabia que ela seria o tal elemento agregador.

Isso que ela já havia gerado um filho (de Jango) e naturalmente se tornara a mulher que iria perpetuar esse lado agregador dos Terra-Cambará e de todas as mães do Rio Grande que se resignavam à esse papel histórico-mitológico ou o que quer que seja.

O elemento masculino, o de conquista e derrota, expansão é o do vento, e é simbolizado pelo punhal do Pedro Missioneiro. Esse elemento conquistador é desagregador, é beligerante, e mostra a diferença entre Ana Terra e um certo Cap. Rodrigo e a sua aura trágica. Ele é um personagem trágico, sabe que deve morrer em combate.

Todos os Cambarás tinham o código de honra: morrer em combate. O maior deles, o Chantecler, Dr. Rodrigo Cambará, morre na cama, sozinho, vitima de um infarte fulminante.

Numa fala, Bibiana pensa em An Terra e diz: "o destibno das mulheres da família era fiar, chorar e esperar". Mas eu vejo que nisso reside não uma total resignação, mas sim uma espécie de fortaleza emocional, de destino maternal e familiar.

Maria Valéria — que com sua vela que nunca se apaga, atravessa todos os sete volumes do Tempo e o Vento, quando confronta Licurgo, por exemplo, é capaz de separar o espaço feminino do masculino na casa na visão machista, mas ela também é capaz de ver a hipocrisia no discurso de Licurgo.

Ela encontra esse espaço e acaba se tornando, tanto quando Bibiana, a mulher que dá a corda no relógio do Sobrado e que é a guardiã, é a matriarca, a guardiã da virtude do Sobrado, ela sabe tudo, é uma mulher forte e prática, é uma personagem admirável, é a deusa do lar, a Héstia, é a memória cultural da família na figura feminina. Isso mostra a força das personagens femininas do Erico e do elemento feminino na formação desse espaço.

Claro que Erico se coloca o tempo todo na defensiva em favor das mulheres: ele naturalmente entende a figura basilar delas na família, mas desmascara o machismo. Como na fala de Luzia: "Mas dr. Winter, nesta terra os homens não fazem muita diferença entre as mulheres e os cavalos (...) veja bem, doutor, a idéia dos gaúchos em geral é a de que o cavalo e a mulher foram feitos para servirem aos homens, e nós nem podemos ficar ofendidas, porque os rio-grandenses dão muito valor aos seus cavalos..."

III

Interessante no O Continente são citações ao surgimento do comércio de gado, a partir do começo do Século XVIII.

O sul tinha uma vacaria sem dono e São Paulo e Minas precisavam de animais de carga para o extrativismo. Aí surgiu a primeira BR 101, que passava por dentro do Morro dos Conventos, Campos de Cima da Serra e depois o Litoral e Viamão.

A ocupação portuguesa - depois dos Sete Povos se deu quando a Coroa achou que erapreciso fixar gente aqui (porque a fronteira era inexistente, e a rigor,ia até as margens do Ibicuí), e concedeu sesmarias. Porto Alegre era uma sesmaria, lotada em Viamão.

A sesmaria de viamão tinha uma invernada, quanto mais posses os tropeiros conseguiam aquinhoar, maior poderia ser a sesmaria.

Depois de Viamão viria Rio Grande, que era o único porto possível no mar do Rio Grande, em 37. A Igreja Matriz da cidade é dessa época e é a mais antiga do Estado.

Para mão de obra, chegam 400 casais de açorianos. No livro, o Erico descreve a desgraça que foi a viagem do arquipélago para Laguna. Porém, a descendência dos Terra é portuguesa de Sorocaba, na verdade, e Pedro não era sesmeiro.

Outra é que a família Terra é atacada por castelhanos por 1780, mais ou menos.

Interessante é ver que desde 1760, depois do fim das guerras guaraníticas, o Rio Grande foi confiado a um civil e sendo desprotegido, ele virou foco de interesse do governador de Buenos Aires, que atacou Sacramento e sitiou Rio Grande por 13 anos.

Pedro de Cevallos era um doido do tempo do tratado de Tordesilhas e queria todo o Continente de volta. Atacou Rio Grande e depois Rio Pardo.

Isso explica porque nessa época em que o território era tão desprotegido, e a família de Ana Terra foi covardemente dizimada.

Pior que os castelhanos de 63 a 76 invadiram tudo mesmo, exceto Rio Pardo, mas derrotaram Rio Grande, e depois partiram para Viamão. Houve uma diáspora para o norte, mas muitos portugueses presos pelos espanhóis foram mandados para San Carlos, no Uruguai. Rio Grande só seria retomada em 1776.

IV

As mulheres representam a figura importante na família — como no caso da do próprio Erico, que teve sua mãe, Dona Bega, como a pessoa que carregou sua prole nas costas, enquanto seu pai deixava o lar.

Mas nem todas as mulheres de O Tempo e o Vento pertencem a esse arquétipo: existem as outras, as que viram a cabeça dos homens, as não agregadoras. Como no caso Luzia-Teniaguá.

Bolívar, ao contrário do pai, não seduz: é seduzido. Ela era vista como uma espécie de ameaça, uma femme fatale, uma devoradora de homens. Ela teria levado o filho de Bibiana à ruína, ela provocou a cisão no Sobrado e a "guerra" a que o referido capítulo do Continente se refere não é bem a do Paraguai, mas a da filha de Pedro Terra e sua insigne norinha diabólica.

Nesse episódio, é de se pensar se realmente Luzia era tão má como parecia ser. Talvez apenas na cabeça da velha Bibiana que, de tanto odiá-la na conquista do Sobrado que ela, coitada, acabou ficando gagá...

Bolívar Terra Cambará é uma espécie de anti-herói: ele herdou os defeitos das duas famílias, o ímpeto e a estupidez do pai e a teimosia muar dos Terra. Um homem traumatizado de guerra, nervoso, e que casa com uma mulher de outra cultura. A morte dele é triste, deprimente e estúpida.

Curioso é que o Erico mostra o contraste entre o colono português continentino, que é tosco, ao passo que ocorre um curioso choque cultural quando Predro Missioneiro mostra que, a despeito de ser indígena, sabe ler, escrever e tocar um instrumento musical, e os filhos dos Terra e as gerações posteriores nunca viram nada de mais em ter algum tipo de erudição.

Para ver que a civilização dos Sete Povos estava realmente à frente do seu tempo.

E a Luzia era uma mulher da Corte, e foi parar por acidente em Santa Fé. O casamento é a ruína desde o começo. E Bibiana, depois de velha, vira uma espécie de matrona vingativa, ciumenta (não deixa que ninguém corteje Luzia) e obcecada em tomar o Sobrado e a guarda de Licurgo.


Capitão Rodrigo é arquétpico. É uma figuraça. Ele é o tipo de gaucho que não é nem patrão, nem peão, é soldado paisano que luta a soldo de caudilho. Ele era soldado do Bento Gonçalves e entrou na guerra do lado dele, quando Bento Amaral ficou do lado dos legalistas. O curioso é que depois os amarais ficam do lado dos maragatos e os Cambarás do lado dos chimangos.

Mas sua fanfarronice é quase inverossímil: funciona mais como um arquétipo dentro da mitologia particular dos Cambará: gosta de mulheres, jogo, bebida e de morrer peleando. Ele assombraria a saga no Retrato, com Toríbio e Rodrigo que, ao contrário de Ligurgo, a figura parental transitória, têm muitos traços do Capitão. Licurgo, por sinal, é de uma mulher só: Ismália Caré, da morte de Alice até sua morte, na revolução de 23.

Os obscuros Carés também têm o lado obscuro dos Cambará: campeiros, suas mulheres serviam à fúria sexual deles, que tinham elas como seus objetos pessoais no meio do mato.

Momentos inesquecíveis são os diálogos notívagos entre o Padre Lara e o Capitão Rodrigo e a forma como o Erico fala pelo Capitão ao questionar a ordem instituída em Santa Fé e de como o Padre Lara fica do lado do poder por conveniência e por falta de alternativa.


A morte do Capitão Rodrigo sempre me chamou a atenção depois que eu li a Canção dos Nibelungos. Vejo uma relação entre Siegfried e ele, e Kriemhilde e Bibiana, mas bem vago. Eu sei que o Erico conhecia a história, ele cita os Nibelungos pela boca do Dr. Winter.

Os dois morrem meio que num anti-clímax na história eo destino da mulher deles muda a partir dali. Mais ou menos da mesma forma.

A mulher dos dois - Bolivar e Pedro - são más. a de um é comparada pelo Erico com a bruxa da lenda da Salamanca do Jarau e a outra provoca uma tragédia na vida do Pedro da Maia porque trai ele com outro e foge para a Itália.


Bolívar, de temperamento fraco e nervoso por excelência, se deixa morrer num duelo estúpido em parte por conta da rixa dos Terra Cambará com os Amarais, e o outro se mata.

E é curioso traçar correspondência entre Bibiana e Afonso da Maia nas duas histórias, e a relação deles com o lugar onde eles vivem, Afonso o Ramalhete, e Bibiana o Sobrado de Santa Fé, que é um personagem meio prosopopeico no livro.

V


Engraçado que uma professora de semiótica da faculdade me disse, certa feita, que o Erico tinha lido centenas de vezes Os Maias, do Eça. Agora que terminou "A Guerra", eu fiquei pensando que existe alguma ligação entre a segunda parte do Continente com o livro do Eça.

Até porque Bibiana acaba sendo como o Dr Winter analisa (e ele é uma espécie de coro de tragédia grega ao analisar os personagens cinicamente) ela como uma mulher prática. Ela aceita o casamento do Bolivar com uma mulher, a teiniaguá, para retomar o terreno do Pedro Terra em Santa Fé, e depois que o Bolivar morre, ela finca o pé no sobrado e se prende ao neto, Licurgo, a fim de se ficar ao lugar.

Mas a relação com o Eça é que a Bibiana, assim como o Afonso de Maia, ambos têm um filho que morre tragicamente e jovem, e o avô/ó (Afonso e Bibiana) compensam nos netos (Licurgo e Carlos da Maia) a educação que não puderam dar para compensar a personalidade fraca dos filhos (Bolivar e Pedro da Maia).

Licurgo quando cresce depois da guerra do Paraguai vira abolicionista e republicano e naturalmente partidário do Júlio de Castilhos, ou seja, vira um Chimango. E os amarais, sempre legalistas desde os Farrapos, viram maragatos.



VI

O Retrato é a história do neto do Cap. Rodrigo, Dr. Rodrigo Cambará, filho de Licurgo, neto de Bibiana. Ele é o típico filho de estância formado na cidade, cosmopolita e culto, um dândi e playboy bon vivant de fraque numa terra de bugres, que vivem de chilenas, bombachas e mangas de camisa.

Narra o retorno dele à Santa Fé e a sua ascenção como intelectual e agitador cultural na região. Mas como acontece na maioria dos pernagens épicos, ele tem dois lados. O Erico não perdoa nenhum personagem. A Bibiana, coitada, de tão obstinada e calculista depois de velha, ficou gagá.

A história vai de 1910 a 1915, começa na campanha civilista onde o Rodrigo se coloca contra Hermes da Fonseca e Pinheiro Machado. Licurgo já se desiludiu com o governo. Rodrigo tenta combater o borgismo e Hermes na cidade, vira um herói, um príncipe, um apolo narsísico e sanguíneo mas é um homem controverso, não foge ao sangue totalmente passional e impetuoso do avô.

Termina na morte do Pinheiro Machado. Mas tem um outro evento paralelo no desfecho (relacionado à Rodrigo) que é chocante. Genial demais. Erico usa o recurso de fluxo de consciência para mostrar a confusão mental de nosso herói, flagrado de forma trágica em mais uma aventura donjuanesca...


A música tema do jovem Rodrigo: Loin Du Bal

O Retrato começa e o Arquipélago termina em 1945 no intermezzo Retrato de Família (onde o lado psicológico é plenamente explorado, junto com o histórico), quando Rodrigo, já velho, é apeado do poder com a queda de Vargas, e termina seus dias condenado num quarto do Sobrado, cercado de seus amigos Liroca, Tenente Prates e Tio Bicho, analisando a Era Vargas.

No fim aparece Floriano, que é um alterego do Erico, totalmente. O último capítulo, narrado no foco de Floriano, é o Erico autobiografado, falando sobre o problema do escritor intelectual naquele momento histórico, de ser ou não engajado politicamente. Ele se explica (Floriano-Erico) com a sua data venia neutra.

Floriano é o Erico pacifista e o Erico escritor, se confrontando com o seu papel como escritor, do exercício da escrita e da forma como o intelectual que, na sua época, se não tivesse opção política ou não escolhesse entre preto ou branco, acabava sendo marginalizado ou taxado de alienado.

Ou, ser escritor num momento histórico em que era preciso tomar partido de alguma causa, qualquer que ela fosse.


O diferencial é que, ao contrário do Continente, o Retrato (e, principalmente o Arquipélago) não tem a mesma linguagem. É livrescamente bem mais 'urbanizado', como eu devo ter dito antes, evoca o estilo do Eça. E é um romance histórico. E, ao mesmo tempo, a própria linguagem utilizada por Verissimo se "moderniza".

No Continente, em alguns momentos, o tempo é sugerido, como em Ana Terra, a passagem do tempo é vaga. E no primeiro livro se vão 200 anos. No Retrato e no Arquipélago, são apenas 50 anos.


VII

A técnica narrativa do Erico é convencional às vezes, mas é requintada. É de grifar (como eu faço) palavras, frases, descrições de ambiente.

O delírio final do Rodrigo Cambará no Angico (fim de A Sombra do Anjo) é genial, o Erico utiliza uma técnica de fluxo de consciência que não é nada convencional, pelo menos, não esperava isso do Erico.

Interessante traçar a diferença entre Rodrigo e Toríbio, um urbanizado e o outro, campeiro, e depois Floriano e Eduardo, um escritor e o outro, comunista ferrenho, e os embates ideológicos.

Aliás, o Erico mete política o tempo todo nos diálogos, recheia o livro com momentos desse tipo.

Tem uma hora em que o Pinheiro Machado chega à Santa Fé e tenta convencer o Rodrigo a voltar ao PRR para se candidatar à deputado. No fim, ele rompe com o senador, no mesmo momento em que ele é assassinado no Rio, em 1915. Dá para ter a noção da importância do senador (que era conterrâneo do Erico) na vida pública brasileira na República Velha.

O curioso é que, a despeito do Continente, a parte da triologia que eu queria chegar era justamente o Arquipélago.

Acho que o Dr. Rodrigo Cambará é o grande personagem do livro. O Retrato é uma preparação para a aventuira política dele no Arquipélago e eu estou abismado. É genial como o Erico mostra como era a vida político-boêmia-intelectual-cultural de Porto Alegre e do Estado nos anos 10, 20 e 30.

Tem uma cena no Clube dos Caçadores, um famoso cabaré que existia aqui no Centro, que é totalmente noir.

O estilo dele no Arquipélago é bem mais apurado e conciso, e ele cuida de colocar elementos relacionados aos livros anteriores.

Em parte tem a saga política do Rodrigo, de castilhista até a Reação Republicana (ele apoiava o civilismo do Rui no Retrato, depois entrou no PRR a pedido do Sen. Pinheiro Machado e depois, com a crise de 1922 (Cartas falsas, 18 do Forte), ela passa apoiar a Reação Republicana apoiando o Nilo Peçanha e depois naturalmente o Assis Brasil contra o Borges.

E o livro mostra bem o que eram aqueles anos políticos aqui no Estado: conturbados e violentos, ainda vivendo o racha de 93, que só acabaria quando pica-paus e maragatos se uniram contra Washington Luís, na Aliança Liberal.

VIII

Mas o Arquipélago valeria só pelo Caderno de Pauta Simples. O Erico recriou aquele interlúdio poético entre os capítulos como esboços do Floriano, que também são arroubos de literatura "moderna" em Erico, que enfeixa o romance de forma inteligente ao usar ou de uma linguagem poética e figurativa dentro do seu respectivo contexto ao capítulo temático quando o diário de Sílvia, um beethoviniano e fulgurante scherzo quase no fim da sinfonia monumental que é o Tempo e o Vento, e que se liga triunfalmente à coda, o capítulo Encruzilhada.

No Retrato, Rodrigo Cambará volta apeado do poder em 45 e todos comentam sobre ele, de forma dividida. Dali começa a saga dele, no primeiro arquipélago, ele sai do PRR para se bater contra os chimangos.

Assim como no Cointinente os intermezzi da história é a resistência contra os maragatos no Sobrado, no Arquipélago é a agonia do Rodrigo Cambará e a relação dele com os filhos e o sobrinho (filho do Toríbio). É um romance ostensivamente psicológico.

Rodrigo é acusado de defender um continuismo que ele criticava em Borges e achava natural em Getúlio Vargas, já que ele era seu comensal, e usou dessa posição para se tornar o Duque de Mântua do Estado Novo, em sua vida de pândego na Capital Federal do tempo dos cassinos.

O engraçado é que o filho do Toríbio virou padre; e o romance, à mediDa em que muda de tempo cronologicamente, muda a própria linguagem.

O arquipélago é uma tese do Floriano-Erico para explicar a relação entre solidão agregamento das pessoas; do ponto de vista metafórico, pois, o 'Continente' é o todo, é a consolidação, a planificação, a solidificação; o 'Arquipélago' é a fragmentação humana e a nostalgia do coletivo — tanto em sociedade quanto dentro do próprio núcleo familiar.

Floriano é uma ilha, tentando unir sua família que se fragmentara pela intempérie e a clivagem do tempo.


Floriano evoca sua amada Sílvia ao ouvir o quinteto para clarineta de Brahms


Nos debates, é possível ver a posição do Verissmo em Floriano e em como ele sofria com o fato de ser escritor e permanecer humanista neutro contra o sectarismo à gaúcha que ele acusa no livro. De você se vender por uma causa apenas por não ter uma causa e ter a nostalgia de estar agregado a alguma causa.

O capítulo do Caderno sobre a irmã morta dele é um dos momentos mais fantásticos/comoventes do livro. Tanto o fim do Arquipélago 1 quanto o do Retrato 2, quando Floriano faz a sua profissão-de-fé pela primeira vez na obra.

Curioso é que um Caré lutou na Força Expedicionária Brasileira e vitrou mártir, neto do Cap. Licurgo. Só o Erico mesmo.

Eu queria que Santa Fé existisse. Nem que fosse para tomar uma cerveja gelada no Ponche Verde ou na Confeitaria Schintzler e ir a um baile no Municipal!

IX

No Solo de Clarineta o Erico diz que o Fandango é inspirado num tio dele que quebrou um disco dele santando em cima sem querer.

O Erico teve um insight. De que aquela gente, depois de 200 anos peleando pela formação do Rio Grande NÃO TEVE TEMPO PARA SE CIVILIZAR.

Luiza Silva é um exemplo: ela foi transformada em louca, mas ela não fez NADA. Era uma mulher cosmopolita diante de um bando de retacos.

O mote do Tempo e o Vento é isso: o choque cultural entre o regionalismo tacanho e o cosmopolitismo. Mesmo político, o Licurgo defendeu as teses republicanas mas era um tosco. Rodrigo Cambará é o primeiro intelectual da família, letrado mas com o ATAVISMO de ser um Cambará. Rodrigo, que mesmo detestando Sigmund Freud e "aquele pessoal de Viena", diz ao seu filho mais velho: "deixe o Cambará sair de dentro de você!". E ele sai, para surpresa de seu pai, que tanto o subestimou.

Floriano é outra pessoa, sofre pelo fato de ser intelectual sem ser engajado, mas é o Erico, o homem que lutou para transformar seu ofício não apenas em profissão, mas como meio de sustento. E nas críticas aos livros de Floriano em O Tempo e o Vento, transparece um reflexo no espelho de Erico, que era também subestimado ou acusado de superficialóide ou de pequeno burguês em alguns romances de formação.

O curioso são os personagens que são antítéticos. Dr Winter questiona o status quo de Santa Fé. Tio Bicho também, em sua verrina cáustica e quase sempre certeira, o castelhano que pintou o Retrato, Don Pepe; é o olhar estrangeiro naquela horda de castiços.

O Erico, em 61, mostra exatamente isso que tu disseste, aqui sempre foi um preto contra o branco, mesmo sem convicção, mas de forma compulsória. E eles nem defendiam o RS, cumpriam ordens de um caudilho. E Erico demonstra isso nos embates platônico-ideológicos ao longo do Arquipélago. O Gaúcho tem suas virtudes, seus mitos, mas tem os seus defeitos.

Voltando ao Continente, apesar de ser mulher e de não er "importância" na família de então, Ana Terra mais forte do que todos os homens so porque viu a hipocrisia em que ela e a sua mãe se submetiam, sobreviveu ao massacre dos Terra por amor ao seu filho com Pedro Missioneiro e agiu de forma brilhantemente agregadora ao se sacrificar por ele e pela cunhada, nem o Velho Testamento imaginaria algo assim. Ela foi muito mais forte e sábia (e lúcida) do que seus irmãos em perpetuar a sua linhagem. Mas nenhum deles poderia fugir ao seu destino trágico.

Por isso, prá mim, é uma das personagens maisa geniais de toda a literatura brasieira. Ela treve a lucidez, o insight que eles nãoi teriam, a despeito de serem os homens, eram personagens inferiores.

Aliás, o Erico salienta isso — de que quem agrega são as mulheres, os honens desagragam, não inconstantes.

A fortaleza da forma como o lado feminino é "continente" na história no sentido de agregação, de prudência, de paciência, nós vemos em Ana Terra, Bibiana, Maria Valéria, de certa forma em Flora (que não é durona como elas) e finalmente Sílivia, que aceita o papel depois de consultar sua consciência — não sem a ajuda do Irmão Toríbio, filho do velho Toríbio que, ao invés de sair putanheiro, virou um discreto padre marista.

X

No começo de O Retrato, a história começa com o retorno de Rodrigo apeado do poder central, em 45. Todos se dividem em atacá-lo ou defendê-lo, mas ele não aparece. É o prelúdio...

Passa todo o Retrato contando a sua hisrória depois de cirar doutor até a morte do Pinheiro Machado, em 1915. E toda a sua repercussão, de como ele era influente, amado ou temido. Aliás, eventos históticos permeiam Santa Fé. O assassinato do homem forte da República Velha se alastra como um câncer pela cidade. E a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial provoca uma pancadaria no Ponche Verde, bar então gerenciado por alemães durante aquele interregno.

O Arquipélago começa e é entremeado em 45, com Rodrigo agora como personagem principal, como num acerto de contas com a família e suas divergências com os filhos, Jango, Eduardo e Floriano.

Esse trecho equivaleria no Continente como O Sobrado, e os trechos de poesia em prosa reaparecem como o Caderno de Pauta Simples.

Num debate entre pai e filhos, vem a tese do Floriano que explica as expressões Continente e Arquipélago. O primeiro é a consolidação e o segundo a fragmentação e a nostalgia inconsciente psicologico-sociológico do sentido de solificação: individual, social.

Termina em 23, quando Borges vence a eleição fraudando-a e começa a Revolução (que vai até 28).

XI

Tia Maria Valéria é muito engraçada, ela rouba a cena, ele singra todo o Tempo eo Vento, ele conquista o leitor — mesmo sem ser a personagem preferida nem deles, nem especificamente de Verissimo. Ela chama o Dr. Bandeira de Tio Bicho e o Arão Stein, o folclórico amigo comunista do Rodrigo de "João Felpudo", porque ele tem ares de janota. Eu morro de rir quando ela chama eles desse jeito.

E o sogro do Rodrigo, Babalo, também é uma figuraça, é mais pachorrento do que eu. Mas é o homem mais virtuoso de todos, em sua calma e discernimento, também sabe roubar a cena à sua maneira. É um homem preso à terra, dado seu passado de tropeiro, mas não é um sujeito obcecado pelo campo, como Toríbio ou Jango, ele tem uma visão menos patriarcalista e mais ligada ao afeto à família e aos seus.

Tio Bicho, sobre a Dinda: "lá vai a Pucela de Santa Fé com a sua vela na mão como um farol ambulante".

Um dia, Flora flagrou a velha falando sozinha enquanto dava corda no relógio do Sobrado. Perguntou: Ué, Dinda, falando sozinha?". Sem se virar, D. Maria Valéria: "estou conversando com os meus mortos". A Dinda fala que existe tempo prá tudo: tempo de plantar, tempo de colher, tempo de guerra, tempo de fazer pessegada...

Um dia, já cega pela catarata, ela disse à Sílvia: "acho que o relógio esqueceu do meu tempo de morrer".

O fascinante é que ela não "morre": Percorre todos os livros com sua vela na mão, vendo se todas as janelas do Sobrado estão bem fechadas, antes de dormir.

Liroca também: ele é eterno no Tempo e o Vento. E ela é o seu amor não correspondido. Curioso, não? Prá mim, são personagens subestimados, porque todos se lembram apenas dos do Continente...

XII

Li Lenço Encarnado (O Arquipélago 2) com uma paixão que nem quando eu tinha quinze e lia Mark Twain e Walter Scott eu me emocionava.

As cenas de combate da Revolução de 23, com a quixotesca coluna revolucionária do Cel. Licurgo são geniais, exceto a heróica, quixotesca e malograda tomada de Santa Fé.

O Erico foi de uma crueza de detalhes de morte, sangue e violência que ele sublimou em todo o Continente, em 35 e 93. A guerra sempre passa longe na primeira parte da trilogia.

Mas 23 virou um épico. Lia no ônibus a tentativa de invasão da Intendência, fiquei o dia todo com as cenas na mente.

No cap 33, que narrativa genial, o ginete do Angico que o Rodrigo sempre4 detestou salva ele de uma emboscada onbde 10 cavalarianos estavam atraindo a coluna para uma tropa de 500 provisórios para matá-los, o Rodrigo cai do cavalo morto (o cavalo), Pedro Vacariano chega, salva ele, põe o homem no seu cavalo e apeia, quando Rodrigo chama-o, o ginete esporeia o cavalo e faz cobertura para a fuga.

Depois eles se deparam com o cadáver do homem, varado de balas.

A Revolução de 23 era estranha, os assisistas queriam derrubar o Borges de Medeiros com lanças do tempo dos Farrapos. Muitos não tinham experiência militar e o Exército estava neutro.

Restavam piquetes de caudilhos, como Honório Lemes, que sobrevivia sem munição comparado com a Brigada do governo, que tinha a famosa Hotkiss, uma matraca. Era a guerra da metralhadora contra a lança. Chimangada dava tiro e os maragatos se escondiam em matas e capões, como se fugissem da Mboitatá.

A tomada frustrada de Santa Fé foi provavelmente inspirada na de Uruguaiana, na fronteira oeste, onde houve a famosa briga de gato e rato do Flores da Cunha com o Honório Lemes.

O sogro do Rodrigo (Aderbal Quadros, o velho e poético Babalo) lia os jornais oposicionistas louvando os feitos do Leão do Caverá como se o homem fosse um Aquiles dos pampas. E até hoje ele é.

O lado romance histórico dessa parte é fantástica, não se compara ao Continente. E o Erico descreve o Flores e o Honório de forma fiel, descreve até a moprte do Adão Latorre, o degolador maragato de 83, que pegou em armas ali com mais de 80 anos e morreu naquele combate na ponte sobre o Ibirapuitã.

Ali que nasceria o mito dos então caudilhos "provisórios" (lenços verdes) Flores e o Oswaldo Aranha. O primeiro depois ficaria contra Getúlio Vargas e o segundo seria o antípoda de Rodrigo Cambará como o homem de República (segundo Floriano).


XIII


Um Certo Capitão Toríbio é genial, boa parte pega a Coluna Prestes e o Toríbio marcha com o Prestes e o João Alberto, o Siqueira Campos e todos aqueles que itriam virar tenentes interventores depois de 30.

Mas o interessante é que o Toríbio é inspirado no tio do Erico, o Nestor Verissimo, que realmente marchou pelo Brasil com a Coluna que foi a única que resistiu às sublevações militares de 24. E descreve como foi a refrega épica de subir até o topo do Nordeste e depois o Nestor de fato escapou milagrosamente de ser morto num pelotão quando foram presos (eles foram presos porque eram do piquete de vanguarda, mas, como se sabe, a Coluna nunca caiu e fugiu pela Bolívia).


Mas, na história, o Toríbio escapa porque um milico reconhece ele como irmão do Rodrigo Cambará, que havia lhe salvo a vida em Santa Fé quando ele sentou praça lá anos antes. É um final de Júlio Verne de surpreendente, porque em parte vai de relatos externos, depois vira uma narrativa epistolar, e depois o Toríbio já no Sobrado conta as histórias de combate, em situações de total miséria e famelidade em que eles sobreviveram.

E a Coluna não era diferente das que os maragatos faziam para fugir da chimangada do Borges em 23, só que ela era muito maior e sem destino pelo Brasil.



Terminei hoje: História termina como começa: o autor é o Floriano, ele se reconcilia com o pai dele, que morre logo depois, e com Sílvia, com quem ele descobre que ela, assim como todas as 'grandes' mulheres da história, resignam ao seu papel de entidades que representam a manutenção do lar, quando ela finalmente se descobre grávida.

Aliás, é a cena mais triste quando Floriano se dá conta que é tarde demais para ele e Sílvia. Ele chega de noite no Sobrado e ouve os passos de Maria Valéria, e diz: "O Sobrado está vivo!". É o finale do Gotterdamerung do Verissimo.

Menção honrosa ao machadiano Tio Bicho, o Falstaff do livro. A cena do velório do Arão onde todo mundo vela o corpo bebendo cachaça é antológica.


Meu avô ia se orgulhar do meu feito: sete livros do Erico em três meses! No fim, eu olho para a pilha de livros ao meu lado como se a história fosse um pouco minha, e um pouco nossa: de todos nós que nascemos aqui. É a nossa bíblia secular.

Vou sentir saudades do tempo em que atravessei os sete volumes da trilogia. Principalmente de trechos como:

"Vassuncê se lembra do Monarca, o meu bragado? Pois tive a noite passada um sonho esquisito com ele. Sonhei que ele estava num potreiro muito grande e de repente vi o Monarca saindo do meio duma cerração. Estava bem aperado e faceiro, sacudindo a cabeça, fazendo sinais prá mim assim como querando dizer: "vim te buscar. Vamos embora". E vassuncê sabe duma coisa? Fiquei contente quando comprendi que o bragado ia me levar pro outro mundo. De repente não senti mais dor nesse peito nem frio nem tristeza nem nada. Tudo era como nos tempos de dantes. Montei no animal e entramos a trote na cerração..."

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