Sunday, February 27, 2011

O Exército de um Homem Só


Capa do livro

Conheci o Moacyr Scliar duas vezes. A primeira foi quando um primo, que não é muito afeito a literatura (na época, estudava Engenharia e tinha na estante de casa um monte de livros daqueles com as lombadas todas expostas como enfeite, naquelas edições de capa dura típicas de quem não lê) me veio, esbaforido: "cara, leia o Exército de um Homem Só!".

Na época eu não entendi o livro. Não sabia ainda o que era Realismo Fantástico. Fui obrigado a ler a obra novamente já mais velho. Então entendi a genialidade da coisa. Antes, contudo, havia lido Max e os Felinos e o Ciclo das Águas. Meu primo vivia me dizendo: "leia Moacyr Scliar! Leia Moacyr Scliar, leia Moacyr Scliar!".

Ou então, ele me achava semanas depois e a primeira coisa que ele perguntava era: "você tá lendo o Moacyr Scliar?".

Ele nem deve se lembrar disso. Eu não sei o que o motivou a se tornar fanático mais pelo Moacyr do que pelo Internacional. Mas a cômica ameaça me fez ler pelo menos uns sete livros do escritor porto-alegrense.


A segunda vez que eu conheci Moacyr Scliar foi na faculdade, em 1996. Eu me inscrevi num concurso literário do Diretório Acadêmico Manuel Bandeira, o DAMB, da PUCRS.

Me inscrevi de raiva, porque eu escrevi um texto em fluxo de consciência parodiando a Canção do Exílio do Casimiro de Abreu (sim, ele também escreveu uma Canção do Exílio, caro hipócrita lecteur).

Minha raiva se explica: eu bati pé para publicar o meu texto como crônica no jornal de bairro onde eu trabalhava na época. O editor era meu amigo mas ele não queria porque achava inviável publicar um texto em fluxo de consciência num jornal onde, lógico, possui uma linguagem peculiar e não deve ser utilizada para se publicar iconoclastias literárias (foi o que ele me disse, meio sem graça).

Fiquei profundamente magoado com a desfeita. Claro que eu sei hoje que ele tinha toda a razão e eu era realmente um pequeno irresponsável.

Mas eis que me caiu a oportunidade de enviar meu refugado texto para um concurso. Resolvi defende-lo mesmo porque um professor de Português Aplicado à Comunicação havia gostado muito dele.

Só que como ele foi escrito em “fluxo de consciência”, não tive escolha: fui obrigado a concorrer em Poesia. Estava meio desacreditado mas, é aquela coisa. Depois que a gente envia, começa a fazer figa, e achar que vai ganhar de verdade.

Não ganhei. O prêmio era um Aurelião. Não me importei. Afinal de contas, eu já tinha um, que quase não usava. Todos os concorrentes, com suas respectivas caras patibulares, foram participar da cerimônia de entrega e receber um exemplar da antologia de textos que ganharam (respectivamente os três primeiros lugares em Crônica, Prosa e Poesia).

O primeiro lugar era um soneto meio bizarro. Mas era um soneto. Folheando o livro, na última página, estava eu, com meu fluxo de consciência, em terceiro lugar!

Mas qual foi a minha surpresa ao ver que, entre os jurados, estava ninguém mais, ninguém menos que o Moacyr Scliar! Há muito que eu não lia seus livros, muito embora sempre lesse suas crônicas na Zero Hora. Mas fiquei absolutamente surpreso em descobrir que o grande escritor Moacyr Scliar estava participando de uma banca de um concurso de diretório acadêmico das Letras da PUCRS.

Depois descobri que, a despeito de ser médico, ele tinha essa doença crônica: era incapaz de render fogo, e teria feito (se não fez) isso um milhão de vezes. O exército de um homem só era ele que era capaz de comparecer a mil eventos literários e ainda arranjar tempo para escrever mil coisas ao mesmo tempo. Era o típico exemplo de que escrever não é, necessariamente, uma questão de falta de tempo.

Era o Jacó da literatura, serviria a ela sete mais sete, mais sete, mais sete anos tamanha fosse a sua capacidade de resignação. E, de repente, eu descobri que aquele homem que meu primo me atormentava para ler estava ali, diante de meus olhos.


A morte dele me veio menos pela surpresa do fato de que eu sabia que estava internado há pelo menos um mês no Clínicas, vítima de um AVC decorrente de seqüelas de uma operação.

Mas mais porque, um dia antes, eu havia tropeçado num vídeo do Youtube que falava sobre o Erico Veríssimo. No fim do tal vídeo, aparece o seu filho, Luís Fernando, contando os últimos momentos do autor de Clarissa. Disse que ele sentou numa cadeira, encolheu os ombros, fechou os olhos e morreu. Depois apareceram cenas do seu velório e enterro e a manchete garrafal da Zero Hora: MORRE ERICO VERISSIMO

Eu fiquei pensando qual era a pátria do escritor depois da morte. O Erico vivia filosofando sobre vida e morte no O Tempo e o Vento. Vendo as cenas do enterro do autor de Música ao Longe e misturando com as do velório do Scliar na Assembléia, me lembrei de uma fala do Tio Bicho no final do Arquipélago:

— É a idéia mágica de que, se não houvesse todo esse cerimonial macabro, o terror da morte perderia o seu ferrão. Estou convencido de que os mortos nada têm a ver com a morte. A morte é assunto exclusivo dos vivos.



Bom, fica a dica do meu primo: leia Moacyr Scliar!

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