Saturday, February 26, 2011

Selvageria


O acidente. Foto: Tarsila Pereira



Imaginem um ciclista descendo a Silva Só, em Porto Alegre, mochila às costas, em direção à Ipiranga, para ir até a PUC, numa tarde de sexta.

Quando ele passa pelo shopping de fábricas e está prestes a passar pela ruela da quadra do Mc Donald's, percebe que tem um taxista fazendo václo atrás dele.

O cilcista segue a marcha, porque logo ambos vão ababar chegando no semáforo. No entanto, o taxista não pretende chegar à Ipiranga, mas dobrar a tal ruela. Ao invés de esperar o ciclista passar e dobrar ele, como um piloto de carros, mete o pá na tábua e ultrapassa o ciclista para podá-lo de maneira triunfal e heróica e ganhar a rua.

Seu plano falha, no entanto. Ao vencer o ciclista, ele esbarra o pára-lamas traseiro no guidom (com espelhinho) da bicicleta; o ciclista perde o equilíbrio e rola rua abaixo, até parar no meio-fio da famosa lanchonete.

O ciclista era eu.


Me levantei e vi que o taxista parou o carro. Atordoado, ele percebe que havia um brigadeano na calçada que, fazendo ronda na quadra, foi testemunha da podada e do meu albaroamento.

Não podia ser pior para ele — e para mim que, por milagre, saí ileso do acidente. Foi uma briga para eu explicar ao BM que eu estava bem e queria retomar a marcha até a universidade. E fui embora. O taxista, parado diante de nós, não ousava nos fitar: foi pego em absoluto flagrante. Vi que a bicicleta estava intacta, levantei polvadeira e bati em retirada. Como não morri, tinha que continuar meu curso no planeta Terra. Pior: não podia ganhar falta.

Meu acidente aconteceu novamente na minha memória quando eu li, ainda na sexta (via o Correio do Povo do Twitter) que um grupo de ciclistas foi atropelado por volta das 19h na esquina das ruas José do Patrocínio e Luiz Afonso, na Cidade Baixa. A notícia dava conta que pelo menos 15 pessoas ficaram feridas.

Á princípio, achei que fosse algo fortuito; um motorista colhe por acidente dois ou três em alguma rua movimentada de Porto Alegre. Qual foi a minha surpresa ao saber que o grupo era de vários ciclistas e o pior, o tal motorista teria feito questão de abrir caminho impiedosamente através das bicicletas, passando por cima de 150 ciclistas como se todos fossem peças de boliche.

O homem se impacientou e, como o Pateta do famoso desenho do Walt Disney, deve ter achado que, como ele paga impostos, a rua é dele. E resolveu passar por cima de todo mundo para chegar mais cedo em casa.

A truculência foi adiante: tentaram linchar o motorista (que tem um Gol com a sugestiva cor preta); mais tarde, achar o homem em casa, caçá-lo e dependurá-lo num galho de árvore como se fosse um ladrão de cavalos de filme de Western.

É a bárbarie contra a barbárie. Não sei se é de se esperar em Porto Alegre. Uma cidade que tem um dos — senão o mais caótico trânsito do país. Não apenas contando a negligência por parte do municipalidade em diversos aspectos, que vão desde engenharia de tráfego até o próprio transporte urbano (cuja discussão não vão ao caso nesse post).

Mas o pior mesmo é constatar o seguinte: Porto Alegre é uma cidade que odeia ciclistas. A Prefeitura não os quer, os motoristas, em geral, os odeiam. Não existe espaço para o ciclista na capital. Senão, tente subir a Av. Sertório em drive time em direção ao Sarandi, por exemplo. O espaço mal calculado a que foram destinados as paradas de ônibus e o corredor diminuiram o espaço da pista.

Fora o fato de que, em muitos trechos, a pista é recapeada e, por conta disso, possui vários desvíveis, impedindo que se possa andar com considerável velocidade. Aí alguém irá dizer: "por que não ir pela calçada, então"?

Primeiro porque o Código de 1998 proíbe (no papel, claro) o trânsito de bicicletas em calçadas. Segundo porque cadê calçadas?

Outra é o famoso Caminho dos Parques. Ninguém sabe (e nem quer saber) mas existe uma ciclovia que une três parques de Porto Alegre — o Moinhos, a Redenção e o da Harmonia. E a trilha passa por algumas ruas de Porto Alegre, como a Vasco da Gama e a rua da República. Pois bem. Alguém sabe que o lado esquerdo da República é uma ciclova. Quem bebe ali todo dia e estaciona nas redondezas não.

Prá quê uma ciclovia em Porto Alegre, não é mesmo? Porto Alegre também passa por cima dos seus ciclistas.

Prá que? Mas isso é só um detalhe. O pior mesmo é o descaso dos motoristas. Peguei meu caso do particular para o geral porque meu caso é simples comparado à tragédia da José do Patrocínio.

Mas o motorista que bota a mão no volante, dá a partida e vira o Barão Vermelho das quatro rodas, ele não se resume ao meu amigo taxista, nem ao facínora do gol preto. Eles são muitos. Aí, quem sabe, só alguém da linha freudiana possa explicar a doença do trânsito de Porto Alegre.

Pego o caso das dezenas de carros que vivem caindo no Arroio Dilúvio. Seria folclórico se não fosse tragicamente patológico. Vai ver que eles vivem caindo no Arroio Dilúvio expiando a sua neurose como uma forma inconsciente de autopunição, o ato falho da culpa de não terem limites na hora de dar a partida em seus respectivos automóveis, como o criminoso que deixa a pista do crime. E que vai meter seus bofes, sua culpa incubada e seus radiadores no esgoto...

Por fim, tomem cuidado: o taxista que me atropelou na Silva Só deve estar à solta.

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