Thursday, July 19, 2018

Vivaldi na esteira

Clemency Burton-Hill, apresentadora da BBC Radio 3 escreveu recentemente um artigo interessante a respeito de como ouvr música clássica hoje, na era do streaming. Ela fala que foi convidada a fazer um tipo de curadoria musical do gênero e foi indagada como um iniciante poderia aprender a ouvir esse tipo de estilo. O artigo dela está no site da BBC e vale muito a leitura.

Ela fala que, com essa coisa de curadoria musical, ela recebia pedidos específicos como: música para estudar ou trabalhar; música para ninar o recém-nascido ou dormir, para impressionar os pais do namorado/a, música para se exercitar, desacelerar, cuidar do jardim, deslocar-se ou oferecer um jantar. E por aí vai.

Isso é interessante no sentido que revela essa imagem que as pessoas têm a respeito de música clássica. Ela tem uma linguagem que está nela. As pessoas em geral, que têm o hábito de ouvir pop (por exemplo), parecem ter uma visão ao mesmo tempo particular e, por outro, muito próxima do que podíamos chamar de senso comum: o erudito é, em última análise, quase um cognato para música de elevador: aquele tipo de som que você coloca como ambiente. Ou, por outra; é música para "descansar".

Isso significaria dizer que, para a maioria das pessoas, clássico é quase um sinônimo de lenitivo musical. É a trilha sonora ideal para 'fazer outra coisa'. O problema é que isso, pelo menos para mim, parece fazer com que o ouvinte deixe de perceber o que existe de potencial desse tipo de música, que é justamente aquilo que, ao contrário da música de elevador, ela tem a falar.

Não quer dizer que não existisse música clássica para entretenimento. Sobre isso, teríamos exemplos, desde a mozartiana Pequena Serenata Noturna quanto a Música Aquática, do Haendel que, de certa forma, tinha esse caráter digestivo.

Ao contrário dessa concepção tributária do senso comum na era da cultura de massas, nem tudo que foi produzido em música clássica pode ser considerada "relaxante". Lembro do Paulo Francis que, no Waaal, escreveu que achava a Sinfonia em ré menor do Beethoven "barulhenta" - (muito embora ele fosse admirador confesso de Wagner que, por su vez, era tão beethoviniano quanto barulhento também). De fato, no erudito, tem coisas e coisas. Aí, se existe a necessidade de uma curadoria para música clássica relaxante, ela residiria no fato de selecionar o que é e o que não é.

Acho que é possível estudar oo som do Idílio de Siegfried. Mas escutando o Liebestod, aí é complicado. Barroco, então, ótimo para cozinhar. Mas a Patética do Tchaikowsky ou o Marcha Fúnebre da Terceira do Beethoven, aí o buraco é mais embaixo.

Por experiência própria, eu ouvia por tabela a rádio da Universidade e achava que, independente de qual fosse o compositor que estava tocando (muito diferente do pop ou do rock que eu conscientemente ouvia, isto é, aquilo que eu colocava na vitrola), eu estava diante de algo bem diferente.

Era algo inteligente ou, na pior das hipóteses, estava me falando de algo que eu não ainda não compreendia muito bem, mas eu precisava compreender, porque essa música, essa música, ela fala sobre algo de alguém de uma época quando as pessoas ouviam e entendiam perfeitamente o que ela queria dizer. Ela não convidava o ouvinte a distrair-se com a sua musicalidade.

Ao contrário, enquanto eu estou perdido no seu acento, muitas outras pessoas estariam fruindo aquilo de uma forma que eu ainda não conseguir entender de todo. Claro que isso também passa pela minha curiosidade de ouvinte, de querer ouvir de tudo, até daquilo que os outros escutam.

Então, num determinado momento, eu cheguei a conclusão não de que eu queria, digo, deveria ouvir aquilo, não por mera fruição, mas para entender o que eu não entendia. 

Lembro que eu comprei, aos poucos aqueles fascículos da Abril. O primeiro foi o do Chopin. Na verdade, meu primeiro disco foi um do Ernesto Nazaré (que eu sempre ouvia na rádio da Universidade, mas depois eu descobri que Nazaré não era bem erudito). Chopin é uma boa forma de começar.

Botei o disco na eletrola. fiquei impressionado comigo, de estar ouvindo um disco de música clássica. A primeira faixa era um estudo. Por que estudo? Esse era o nome. A peça começava assim: lenta, romântica. Depois, entrava outro tema, que ia sendo desenvolvido. Depois, ela ia se desconstruindo, à medida que parecia ficar cada vez mais agônica, mais agônica, até uma explosão, que constrastava com aquele começo lento, até que a música, e depois, e depois, depois era como se o solista tentasse segurar aquela explosão e controlar todo aquele ímpeto, concentrar-se, até retornar ao tema inicial e o fim. Era o estudo Opus 10 nº3.

Eu pensei: isso é divertido, é quase um jogo. Cada peça tinha um temperamento, um ímpeto, uma personalidade, pareciam falar muito daquele que as criara. Pensei que fosse ser chato, que fosse desistir, mas então eu queria ir até o fim.

Mas, a partir dessa fruição, de ouvir um estudo do Chopin como se estivesse escutando rock, ou seja, prestando atenção ao máximo daquilo que estava dado, muito antes de eu pensar que erudito fosse 'lenitivo musical', para mim já era algo que queria comunicar. Aquele estudo não poderia ter sido, vamos dizer assim, feito para que você ouvisse de forma passiva. Então você ouve Elvis prestando atenção e Chopin para estudar? Não, alguma coisa está errada aí.

Essas maravilhas da indústria cultural. Fascículos de música clássica. Muito antes do streaming, era notável que você pudesse comprar um disco que, além da peça graada, por exemplo, a Sinfonia Fantástica, do Berlioz, ela tem um programa, escrito pelo próprio compositor, e o fascículo tem a história dele e um pequeno encarte com a história e a descrição da sinfonia (a formulação, os movimentos).

Aliás, os encartes de discos clássicos tinham muito disso. Aquela música não havia sido gravada de forma aleatória. Quando eu lia o fascículo, eu percebia que existia um nível de audição, por parte dos especialistas ou iniciados, que já estava além de mim. Essas pessoas não escutavam Berlioz para estudar ou andar na esteira.

Falo em indústria cultural porque, imagine o leitor que, em meados do século XIX, se você quisesse ouvir um concerto do Mendelsohn, você teria que correr atrás dele. Só alguém como o Príncipe Esterházy ou o margrave de Brandeburgo ou Frederico o Grande tinham condições de manter uma orquestra em casa para que ela tocasse o que ele quisesse. Você corria o risco de ouvir a Eroica uma ou duas vezes em toda a sua vida. Hoje, eu posso colocá-la no repeat. Logo, para entender a linguagem, o desdobramento da forma-sonata, eu posso repetir a peça infinitamente.

Ou seja, se a reprodutibilidade técnica tirou a aura da música (de ser algo restrito a um ritual específico e destinada a uma classe), a tecnologia pode transformar um ingênuo como eu num aspirante a especialista. Isso implica dizer um novo tipo de apreciação desse tipo de obra, que faz com que ela seja guindada ao status de ... "popular".

Acho que essa experiência dos fascículos e contracapas, antes de entender música clássica como lenitivo, me propôs uma outra visão dela. Mas acho que, pegando o mote da Clemency Burton-Hill, ela fala da experiência dela que, como a minha de certa forma, no começo, um dia nós acabamos entrando em contato com esse gênero. É o primeiro passo. Mas o ser humano pode ser estimulado a ir além a partir daí.

E descobrir que clássico não é propriamente nem para estudar e muito menos ser música esnobe ou elitista. Uma ópera do tempo do Rossini era tão popular quanto um flime do Netflix. Um lied do Franz Schubert era tão popular quanto uma canção do rádio. Hoje o senso comum é o de que você precisa de dress code para ouvir Schubert.

Por outro lado, a mesma indústria cultural que nos apresenta um fascículo do Berlioz pode transformar sua música em trilha de um comercial de tevê. A cultura de massa mudou os parâmetros - hoje, mais ainda, com o streaming, é o tipo de coisa que só não ouve quem não quer, e pode ouvir como quiser, se quiser. Não que não se possa escutar Vivaldi na esteira, tudo é possível. Mas, em determinado momento, o ouvinte pode ser estimulado a ir além e tem todos os meios de fazê-lo.

Enfim, como se vê, buscar o lado relaxante da musica clássica é rotulá-la como tal, a despeito do fato que, em muitos casos, como na "barulhenta" Nona, ela não é. Ou, mesmo quando ela é 'relaxante', ela parece que requer um tipo de atenção especial que não é o de ser música ambiente. Acho que o ser humano pode e é capaz de transcender essa primeira impressão, embora isso dependa, na verdade, da forma como ele se coloca diante da música como ouvinte.

Porque existem ouvintes e ouvintes. Aqueles para que tudo é música ambiente e, em geral, não ligam muito para isso. Ou outros, por exemplo, músicos. Um Hendrix ou um Charlie Parker, por exemplo, embora músico de jazz, ouvia de tudo e sabia o que ouvia. Enfim, todo músico é, antes de tudo, um ouvinte.

E às vezes, ouve coisas que os seus respectivos ouvintes não sonham. Pete Townshend ouve Terry Riley enquanto nove entre dez fãs do Who deve achar minimalismo um saco. Da mesma forma que Bernstein era grande fã do Mahler e dos Beatles. De repente, para quem aprendeu a escutar clássico desde o começo, ouvir pop pode ser algo incontornável. Contudo, como ouvintes, eles mostram que tudo é música, tudo pode ser ouvido com o mesmo deslumbramento, com o mesmo apuro e com o mesmo prazer e sem dress code.

Por fim: quero dizer que cada um faz o que quiser com aquilo que quiser ouvir, amém. Porém, relegar a musica clássica como lounge me parece subestimar algo que está dado ao ouvinte, e que promete muito mais do que parece.

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