Sunday, July 15, 2018

Medo e delírio em Las Vegas e o Imaginário Onívoro

Ilustração de Ralph Steadman para o livro 



Clássico de Hunter Thompson, Medo e Delírio em Las Vegas (1) é lembrado como  nascimento do jornalismo gonzo, além da exótica história, que mais parece um slapstick junkie de dois malucos tentando ficar doidões e trabalhar numa cobertura jornalística, quando acabam na verdade, como se sabe, tornando-se os protagonistas da narrativa.

Mas além das loucuras de Raoul Duke e o dr. Gonzo, a leitura mais notável é a ressaca do que foi o movimento contracultural nos Estados Unidos e o seu corolário. Depois do os Estados Unidos elegendo uma figura como Nixon e mergulhados num beco sem saída na Guerra do Vietnã, o tal "sonho americano" que eles buscam em Las Vegas é apenas uma blague para eufemizar o que havia de mais trágico que era, depois do sonho, encarar a realidade.

Depois da Marcha ds direitos Civis, a morte de Martin Luther King e Robert Kennedy, depois dos be-ins, o massacre de Kent e o fim da utopia hippie em Altamont. Isso que ele escreveu o necrológio da sua geração ainda em 71, quando o cadáver ainda estava quente.

Como diz a música, depois de tudo isso, era preciso que todo mundo ficasse chapado. Mas o uso de drogas recreativas aqui não tinha mais o objetivo de buscar paraísos artificiais ou a transcendência. Era a única forma de suportar um mundo que virou um pesadelo de delirium tremens.

Nos momentos de confissão Hunter Thompson revela que foi um filho da contracultura de São Francisco, em 1967. Ele diz que a cidade era o melhor lugar para se ficar, que aquilo "significava algo". Nada podia resumir ou explicar a experiência daqueles dias. E, como em Proust, a tentativa de forçar a reconstrução da memória involuntária talvez seja mais frustrante ainda: "a energia de uma geração inteira atinge o seu ápice  num instante mágico e duradouro, por motivos que na época ninguém compreende por inteiro, e que, em retrospecto, nunca explicam o que realmente aconteceu".

Existe um imaginário 'positivo' da época, com flores na cabeça e pés descalços mas, para Hunter, já em 1970, para ele, já não havia qualquer traço de nostalgia. Ou melhor, há, mas essa nostalgia apenas faz com que a realidade seja mais dura, quando ele recorda aquela sensação de integração de pessoas tão doidas como ele, por toda Frisco: "todos compartilhavam a sensação de que estávamos fazendo algo correto, mesmo sem saber o que era... sentíamos que estávamos vencendo (p.78). De qualquer maneira, essa visão, no campo do imaginário, ainda persiste como um capital simbólico do legado dos anos 60. Ou não?

Para ele, o grande engodo foi acreditar que eles estavam do lado certo e que as forças do mal certamente cederiam: "aquela era a nossa hora; estávamos na crista de uma onda imensa e linda". Depois, ele diz: "e agora, cinco anos mais tarde, basta subir um morro íngreme em Las Vegas e olhar para o Oeste com a predisposição adequada para quase enxergar a marca da maré - ougar onde aquela onda enfim quebrou e se retraiu".

A realidade, cinco anos depois, redundou em Altamont, em Charles Manson, em Kent, os bombardeios sobre Hanói e o combate pelo combate na Segunda Guerra da Indochina. Era preciso persistir no erro até o fim, como na falácia do jogador.

Do ponto-de-vista do "morro íngreme", Thompson já observara o que aqueles garotos que queriam mudar o mundo havia se tornado numa geração cínica e hedonista, movida a cocaína e álcool, a geração Laurel Canyon, que Robert Altman representou muito bem na sua controversa versão para O Longo Adeus, de Raymond Chandler, ambientada na Los Angeles do começo dos anos 70. E que podemos vislumbrar também de certa forma na Ditch Trilogy do Neil Young, ele também um habitante e testemunha ocular de Laurel Canyon.

De certa forma, o episódio da cobertura da cobertura da National District Attorneys Association's Conference on Narcotics and Dangerous Drugs parece uma bela alegoria do que eram os Estados Unidos naquela época. Um bando de meganhas e políticos conservadores postulando sobre o efeito nocivo dos narcóticos na sociedade enquanto, na figura de Douke e Gonzo, e outros mais, rodeavam o evento "under the influence" debaixo do nariz de todo mundo.

A alegoria é que, a despeito de toda a cruzada moralizante, estavam todos numa cidade "imoral" e cercado de usuários, como se fosse um grande "o rei está nu", noves fora o absurdo da situação - justamente em Las Vegas, a capital dos divórcios, do jogo e da mentira? O último reduto do entretenimento kitsch da América e que era, com efeito, o paraíso perfeito para esse hedonismo que Thompson denuncia.

Ao mesmo tempo, como um wit, Hunter entremeia sua narrativa com textos jornalísticos - um deles dá conta de como as drogas estavam minando as tropas no front da Indochina. Parecia um grande paradoxo aquele bando de rednecks e Mr. Jones na conferência (que o dr. Gonzo dizia já conhecê-los muito bem do filme Easy Rider) não eram capazes de enxergar.

No meio do delírio, o triste holofote sob o palco mostra toda a debacle não do sonho americano, mas o começo de uma distopia desesperadora que, de certa forma, fora deflagrada por aqueles que justamente acreditavam que haviam descoberto as chaves do paraíso na terra.

Thompson não poupa Leary. Hunter também acreditou no drop out. Agora ele entende a degradação moral do jovem e decadente  cafe society de L.A. E nós podemos entender essa escalada por toneladas e mais toneladas de drogas. Era uma questão de, como ele diz, "sobrevivência".

Em sua exortação, ele pontifica: "nada restou da velocidade que abasteceu os anos 60. Os estimulantes estão saindo de moda. Esse foi o defeito fatal de Tim Leary. Ele cruzou os Estados Unidos vendendo a "expansão da consciência" sem parar para pensar nas realidades sinistras e dolorosas à espera das pessoas que o levaram a sério demais. (...) sua perda e seu fracasso [dos usuários de LSD] também são nossos. Em sua derrocada, Leary levou consigo a ilusão central de todo um estilo de vida que ele mesmo ajudou a criar...uma geração de mutilados permanentes, perseguidores fracassados, que nunca compreenderam a falácia mística essencial da Cultura do Ácido: o pressuposto desesperado de que alguém, ou ao menos, alguma força, está cultivando a luz no fim do túnel" (p. 195).

Hunter associa esse messianismo ao imaginário comum milenarista de busca de um messias, de um condutor de gentes, alguma "autoridade superior" ou, como ele mesmo diz, a sensação de "estar vencendo", estar do lado dos deuses: "primeiro gurus. Depois, quando isso não funcionou, um retorno a Jesus". Depois, maharishis e mansons, "o Fulano de Tal que comanda "espírito e carne". Para ele, não houve integração possível entre os Angels (que ele conhecia muito bem) e a esquerda enragé de Berkley e as experiências, segundo Hunter, malfadadas de Kasey e Ginsberg - e tudo desaguaria em Altamont,  que foi simbolicamente o fim do sonho, e da pior forma possível.

Altamont que Thompson acredita que era a crônica de uma morte anunciada, mas que ninguém foi capaz de vislumbrar isso, nem os hippies, nem a imprensa. "a orgia de violência (...) apenas dramatizou o problema. As realidades já estavam estabelecidas: a doença era nitidamente terminal e as energias do movimento já tinham sido dissipadas na busca pela autopreservação (p.196).

Incrível que, Medo e Delírio.... emoldurado como uma grande aventura louca de uma cobertura de reportagem que voltou-se para si mesmo, é possível encontrar um amálgama de denúncia e ensaísmo virulentos que faz a crônica da perda da inocência daquela geração da contracultura.

Thompson cinicamene busca pelo sonho americano como um Diógenes procurando algum ser humano honesto, porém, no lugar errado. Aliás, como é possível ver, tudo estava fora do lugar ou, como diz a canção que é o leitmotiv do livro, over the line. Parece que estamos condenados a assistir sempre a esse filme stuck inside of Mobile with the Memphis blues again. Depois da utopia de um orgasmo social e o fim dos tempos, uma implacável revanche conservadora também sob a égide do messianismo. Somos todos tributários desse imaginário onívoro.



(1) THOMPSON, S. Hunter. Medo e Delírio em Las Vegas. LPM, 2010.

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