Thursday, July 19, 2018

A Escolha de Sílvia


Tem uma cena d' O Arquipélago (1) em que Sílvia, a moça pobre e filha de criação de Rodrigo Cambará, tem um conflito enorme com sua mãe, que é costureira. Esta critica a forma como a filha idealiza a memória do pai, que desapareceu.

Rejeitada pela mãe, que tem para com ela uma relação ambígua, ela transfere seu afeto para o novo pai. Com o lar fendido, ela sonha em ser aceita pelo pessoal do Sobrado. A realidade com a mãe é terrível. Sílvia é constantemente frustrada em sua idealização do pai, como se essa fosse uma forma de sua mãe a aliciar para si, jogando-a contra à memória dele, tão cara à menina.

De certa maneira, quando eu li o Solo de Clarineta (2), qual não foi a minha surpresa quando vi uma cena parecida com essa, porém se passando entre Dona Bega, a mãe de Erico, e o escritor. De fato, em dado momento, os pais dele se separam. Sebastião vai embora. A matriarca da família, com a máquina de costura e o chapiliniano manequim, sustenta a casa. É uma situação quase de livro do Dickens. Quando seu pai pega o trem para nunca mais voltar, Erico decide ficar com mãe. Ela, surpresa, diz: "pensei que você fosse ficar com ele".

O mesmo sentimento de culpa aparece em Sílvia. A mãe faz toda uma chantagem emocional, mas existe amor naquele empenho em sustentar o que sobrou da família. Por isso que a costureira não entende o desvelo da moça por um homem infiel e que as abandonou. Erico também fica entre dois corações. Ele não pediu para que seus pais se separassem, mas a realidade e implacável. O fantasma do seu pai irá o assombrar pelo resto da vida.

A necessidade de sustentar aquela família separada marca a sua vida e a sua primeira literatura. Os primeiros livros do Erico vivem à sombra dessa tragédia familiar - a imperiosa necessidade de começar do nada, em terras estranhas. Curioso que, voltando ao Solo de Clarineta, ali Verissimo fala que reconhece o fato de que transformou a mãe de Floriano, seu alter-ego, numa figura nula, se comparada à outras personagens femininas da trilogia.

Segundo ele, havia consciente ou inconscientemente um temor de que Flora ficasse parecida demais com D. Bega. Porém, sua mãe 'aparece' de certa forma na mãe de Sílvia, aquela mãe desesperada, que precisa sustentar o que restou daeuele lar perdido (e que Erico transformará simbolicamente como a sua grande busca) e que, mesmo de forma transtornada, quer ser aceita pela filha. Essa faceta do amor materno Erico transpôs para esta personagem secundária, e não para Flora.

Por sua vez, no Sobrado, Flora está na sombra de Maria Valéria. Esta, impositiva, assume uma papel quase masculino, quase andrógino (ou totalmente andrógino) desde ao ombrear Licurgo em O Continente até ao controlar, a manu militari, a vida do sobrado.

Sílvia porém quer ser aceita por Rodrigo e quer fazer parte dos Cambará. Para ele, ela é Alicinha, a filha que perdeu muito jovem. Rodrigo quer integrá-la e casá-la com Jango, seu filho mais novo. Ela fica dividida: naquele momento, desde a malfadada "noite de ano bom", busca ser correspondida por Floriano, o filho mais velho. Este, porém, na questão dos afetos, é um caso a ser estudado.

Floriano sempre me pareceu quase um personagem de tese. Ele parece estar tão ligado ao mundo intelectual de Erico, principalmente pelo fato de ser um escritor, por sua vez, em busca de aceitação. é considerado pela crítica como superficial e burguês pelo irmão. Quando retorna à Santa Fé, resolve colocar sua literatura no divã cujo analista é Tio Bicho.

Nesse momento, ele põe todas as suas expectativas e sua obra em revista. Tio Bicho acredita que ele precisa abraçar as raízes, escrever seus livros com os pés no chão. De certa forma, novamente percebemos Erico na encruzilhada da vida.

Verissimo também estava num processo de mudança de ótica e de ética em sua obra e, de certa forma, O Tempo e o Vento representou a mudança, desde aquela primeira fase, de Clarissa até O Resto é Silêncio até O Arquipélago, que abre a sua segunda fase "política", que vai até Incidente em Antares.

Floriano precisa passar pelo movimento dialógico com Tio Bicho, que é uma espécie de Tirésias, que profetiza e, a despeito de "cego", ele enxerga aquilo que falta para que o filho de rodrigo supere esse impasse. Um desses obstáculos era enfrentar e matar simbolicamente o pai. desde um funesto episódio, ocorrido em 30, os dois se separaram.

O pai não sabe o que o filho sente a respeito dele, e a recíproca é a mesma. É preciso enfrentar esses fantasmas, superar essa divisão, e esse é o ponto crucial na história, já no fim. Quando ambos ajustam as contas, Rodrigo pode morrer em paz e Floriano pode espantar seus esqueletos e paranoias do armário mental e seguir seu caminho, agora ele é o pai de si mesmo.

Mas se Floriano 'se resolve' como filho e escritor, a relação com Silvia é curiosa. Ela o ama incondicionalmente, mas frustra-se com sua indecisão. Ao mesmo tempo, ao contrário do pai, que é um emocional, e chora de amor até pelas amantes, o alter-ego de Erico tem uma certa rigidez afetiva que afasta Sílvia.

Ele parece pragmático demais, e amoroso de menos. A relação dele com Mandy (sua namorada americana) é tão superficialzada que é difícil saber onde começa a intenção do autor na construção do personagem ou se, como ocorre com Flora, é uma 'falha' da caracterização de Floriano. Afinal, por que existe tão pouco amor nele? De onde vem essa falta de paixão?  Mesmo assim, dentro do espírito de praticidade típica dos Cambarás, seu pretendente oficial, Jango, é outro que, como Licurgo, não demonstra amor nenhum pela futura esposa.

Sílvia sabe que Jango é a promessa de integrar-se definitivamente ao Sobrado. Quanto mais o tempo passa, ela sente que está perdendo Floriano Este, porém, só realmente demonstra interesse por ela quando é tarde demais.

Nesse meio tempo, quando há um hiato entre os dois, ela escreve um diário que de certa maneira, é o expediente extremo que Silvia lança mão de forma a elaborar essa perda e enterrar esse amor. O diário vira uma história dentro da história, e é um grande wit de Verissimo dentro do livro.

Como se fosse uma vocação de ser uma mulher do sobrado, renúncia das renúncias, ela finalmente aceita Jango como marido e abraça o amor a Deus e a religião como forma de sublimar aquele amor perdido. Mais tarde, Silvia empresta o diário à Floriano, que o utiliza como subsídio para o livro que irá escrever - e que descobriremos no último parágrafo, o livro é a própria trilogia que acabamos de ler.

Floriano conta o ocorrido a Tio Bicho que, à sua maneira, depreende do episódio que, claro, Erico aqui fala por ele, Sílvia sublima o amor proibido pela religião. É uma situação amarga e, de certa forma, pouco explorada pelos exegetas do O Tempo  e o Vento. Por que raios Verissimo optou por um final infeliz? Porém, por outro lado, nós ficamos a pensar: e se ele tivesse concebido um final feliz?

Floriano talvez, da forma como foi concebido, tão sem amor e tão apaixonado pela sua literatura, não seria capaz de conciliar as duas coisas?

No fim das contas, assim como Jango, da mesma forma que, segundo Luzia, como a maioria dos homens do continente, amava mais os cavalos do que as suas respectivas esposas, estava mais preocupado com os carrapatos da vacaria do Angico do que com a felicidade de Sílvia. E Floriano, apesar de ser um homem cosmopolita, intelectual, apenas trocou a lida campeira pela vida literária - são os dois lados da mesma moeda.

A escolha de Sílvia, para nós, pode ser inconsolavelmente triste. Sua renúncia, por seu turno, é tão difícil como a das mulheres que vieram antes dela. É uma escolha sincera, mas a promessa de ser a próxima na linha sucessória do sobrado implica num caminho triste e solitário.

Ela poderia renunciar a essa renúncia, e ser esposa de Floriano no mundo urbano e intelectual da Capital Federal. Mas, se o atavismo da moça do interior falou mais alto, ou a necessidade de ser a dona do Sobrado, e a promessa dada a Rodrigo em casar-se com Jango, enfim, toda uma série de fatores que fizesse a sua escolha.

Regina Zilberman tem um ensaio (3) admirável sobre o Tempo e o Vento fazendo uma comparação do percurso familiar dos Terra-Cambará com a tragédia dos atridas da Oresteia do Ésquilo, e da forma como a sublimação das paixões intestinas na realidade moderna da pólis interrompe a trajetoria sangrenta e mítica. Pegando o mote esquiliano, minha hipótese é a de que Sílvia e Floriano fariam parte desse pacto. Para que a 'maldição' não se perpetue, é preciso que essas paixões sejam simbolicamente refreadas.

É notável como, além de restaram separados para sempre, é como se, assim como ocorre com Orestes e Electra, eles permanecerão como personagens "celibatários". Floriano vai solitariamente cuidar de Flora no Rio e escrever as suas cosmogonias urbano-campeiras; Silvia, embora casada e com um filho à caminho, será, até o fim dos tempos, a castelâ solitária. Assim como ocorrerá aos filhos de Agaménon, separados para sempre.

No tocante ao caso de Orestes e Electra, como lembra Zilberman, para interromper o ciclo de desforras, era preciso interromper a causa principal, a libido. Ao cotejar Ésquilo com Erico, ela salienta que, quando os Cambarás tomam o poder em Santa Fé o elemento familiar torna-se secundário em favor do político (quando Licurgo derrota os maragatos e finalmente toma o poder no município, com a vitória de Júlio de Castilhos, em 1895).

Como ela observa ao analisar as personagens femininas, a característica essencial desses episódios (Ana Terra, Bibiana) é demonstrar o papel delas em esforçar-se para perenizar a família e a sucessão, garantida à custa da "castração sexual (...) e da dedicação obsessiva aos filhos" (p.156). Ou, parafraseando Regina Zilberman, sob a capa da ruptura, vemos o eterno retorno do mítico.

Por fim, quando chegamos ao Arquipélago, o familiar volta à tona.  Se O Continente (e O Retrato) representam essa mudança do mítico-familiar para o político-histórico, na última parte da trilogia, vemos um refluxo, onde o eixo dramático gira, com efeito, justamente em torno de Floriano e Sílvia, (muito embora noves fora, mais numa perspectiva psicológica do que propriamente mítica). E poderíamos inferir, à titulo de conclusão, que o trágico aqui ocorre, paradoxalmente, na ausência do trágico ou na sublimação deste.   


BIBLIOGRAFIA

(1) VERISSIMO, Erico. O Arquipélago. Globo, 1962.
(2) VERISSIMO, Erico. Solo de Clarineta. Globo, 1973.
(3) ZILBERMAN, Regina. Saga Familiar e História Política. In: O Tempo e o Vento: história, invenção e metamorfose. EDUPUCRS, 2001.

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