Thursday, July 12, 2018

File Under


Criatividade: capa de disco pirata dos Beatles imitando o design dos lançamentos da Capitol

Tava eu mexendo numa papelada e caiu no meu colo um catálogo feito em xerox com discos e vídeos dos Beatles. O catálogo era do misterioso Capitão Gancho, um especialista em pirataria dos fab four.

Lembro que recebi isso numa daquelas festas bacanas que o programa Beatlemania 99.3 fazia em pubs da época, como o Kafka (que ficava na 24 quase esquina Dr. Timóteo) e o Sgt. Pepper's dos tempos da Dona Laura.

Isso foi lá por 89, mais ou menos. Eu, com o dinheiro contado, fui na festa promovida pela falecida Band FM, do inesquecível programa apresentado pelo Kamarão nos domingos à noite.

Na época eu estava descobrindo os Beatles e tinha algumas cópias pirata de alguns filmes dos Beatles, isso muito antes do advento da Internet. Hoje é incrível pensar na sensação de isolamento e de penúria cultural que era todo um manancial de informação que precisava ser descoberto pouco a pouco, algo que atualmente é jogado diante de nossos olhos pela internet.

Claro que, naquele tempo, eu era fanático pela banda e foi toda uma grande descoberta conhecer todo aquele material em vídeos e discos e fitas. Era fanático embora não a ponto de ser um rato de fã clube. Meu fanatismo estava naquele nível de paixão onde não havia espaço para mais nada além dos Beatles.

Alguém me indicou uma fonte que havia numa locadora que era uma ex-sorveteria na Av. São Pedro. Ali, o dono fazia essas cópias de VHS pirata de shows de rock oque, para os anos 80, era algo meio que dava a sensação de câmbio negro. Parece que o melhor que havia para assistir em vídeo-cassete eram vídeos piratas.

Porém, o catálogo do Capitão Gancho era superior: ele tinha um número interminável de itens, além de coisas de carreira solo da banda, mas que não me interessava muito.

O fundamental é que, além de colecionador, ele tinha uma caderneta com centenas de contatos com fãs dos Estados Unidos e Europa. Cedo, na aurora da sede do VHS, ele começou a fazer o tráfico de pirataria. Essas fontes eram fundamentais, e tudo vinha via sedex. Não havia e-mail naquele tempo. E tudo ainda girava em torno de cópias de fitas de áudio e vídeo.

Claro que, para aquele mundo fechado pré-internet, isso era uma porta para o infinito. Havia muito mais do que se podia imaginar além da discografia oficial dos Beatles.

O problema é que, ainda no começo do CD, a pirataria de áudio vivia em função do vinil. E pirataria em vinil era cara e muito rara. Poucos eram os discos feitos no Brasil. Os poucos que eram produzidos sofriam uma restrição enorme, diferente do boom que surgiu com a pirataria oficial do casette nos anos 90.

Assim como o material de áudio e vídeo, as fontes bibliográficas eram escassas. Nos anos 80, Beatles era coisa do passado. O pouco que existia estava esgotado. A gente tinha apenas aqueles pôsteres do Kubrusly da Editora Três e a famosa revista do Marco Antônio Malagolli, do fã-clube Revolution. Essas publicações foram relançadas ao longo do tempo e eu cheguei a tê-las.

A revista do Malagolli, por sinal, era o catecismo da discografia pirata dos Beatles. Hoje, com Wikipedia e outros sites de referência, esse material é obsoleto; porém, era o começo de tudo. A Documento (como se chamava) contava uma bibliografia da banda mas, na segunda parte, que era a mais saborosa, era um resumo do que seria o corpus de bootlegs dos Fab.

O que a gente sabia era que são pelo menos quatro vertentes: o material de sobras de estúdio, o da BBC, a de shows ao vivo e demos e o famoso copião do filme Let It Be, que fora comercializado provavelmente pelo Allan Klein, e que foi a primeira grande fonte de álbuns clássicos dos anos 70 ainda, como o Sweet Apple Trax e o In a Play Anyway.

O interessante e que, no jargão dos pirateiros, como aparece na publicação do Mallagoli, havia já, no final dos anos 80, uma discografia clássica, ou seja, de álbuns clássicos, que eram citados como se fossem discos de carreira, como o Who's Shouting in My Ears, Nothing Is Real, Broadcast e o Yellow Matter Custard.

A maioria desses discos se caracterizava por capas improvisadas, em geral coladas, vinis sem separação de faixas e uma péssima qualidade. Mas eram "quentes", isto é, eram de fato os Beatles, mesmo com gravações que eram cópias de cópias disponibilizadas em qualidade de áudio que exigia que vivêssemos mexendo no equalizador para poder reaproveitar a pobreza do som.

Como disse acima, esses discos eram raríssimos e valisíssimos. O que nos dava a oportunidade de ouvi-los era através desse tipo de transa de cópias de fitas. Então o esquema era encomendar de alguém que fosse para a fronteira para comprar fitas, em geral aquelas Sony ou TDK, que eram as mais usadas.

Como cassete em geral era caro, a opção em geral eram as VAT, vagabundíssimas (viviam arrebentando, nos obrigando a fazer uma operação de reaproveitar bobinas de outras fitas e emendar os tapes com estilete e durex), mas era o jeito de montar uma discoteca. Lógico que o que a gente realmente queria eram os discos.

Ás vezes, havia a chance de comprar um. Mas levaria muito tempo. Fora o problema que essa material simplesmente não parava nas estantes dos sebos. Quando aparecia um que eu quisesse, a solução era pagar um sinal ao doo da loja, e ir pagando aos poucos, para que ele nos segurasse o disco. A briga de colecionadores era uma batalha campal. Muitos deles inclusive já possuíam um esquema com o lojista: quando o comandante da Varig trazia o vinil, ele já tinha endereço certo. Você sequer tinha a chance de ver o disco.


Da mesma forma que eu comecei a pirataria de vídeo em locadora, meus primeiros cassetes eram de sebos. Porém, nos dois casos, o pessoal tiha um conhecimento limitado de pirataria. Gravei um disco duplo, Eight Arms to Hold You (da foto acima), que eram um padrão de bootlegs dos Beatles que eram, em geral miscelâneas de várias fases em discos duplos e sempre com capas bonitas.

Também as gravações eram caras. Por exemplo, se eu quisesse fazer uma seleção de faixas, mesmo que de um disco comum, eles cobravam bem mais caro. O que era inacreditável, porquanto a mão de obra era zero. Nesse começou, eu gravava para ver o que era. Dessas coletâneas, como o Eight Arms, serviam para que se pudesse ter uma ideia do que era o corpus pirata dos Beatles. Os mesmos discos traziam trechos ao vivo, sobras de estúdio, BBC, sempre um pouco de cada coisa.

Era esse tipo de amostra que eu tinha quando eu fui atrás do tal Capitão Gancho. Mesmo colecionador, ele já tinha um esquema montado em casa, dois gravadores integrados de qualidade, alguns álbuns pirata. E ainda teve a ideia de, ainda em 89, de alugar constantemente um segundo VHS (em geral, eram equipamentos caros e carissimamente estragáveis) para cópias de vídeo.

O fascinante era que, justamente por conta dessa gama de contatos, o Capitão Gancho recebia material quase todo dia, toda semana. Nessa época dos anos 80, pareceram aqueles famosos John Barrett Tapes. Esse cara foi o primeiro, de dentro da própria EMI, que disseminou a nata da sobra de estúdio dos Beatles em alta qualidade.

Esse material redundou num disco abortado, chamado Sessions, que seria o proto-Anthology, e uma seria intitulada Ultra Rare Trax, esse praticamente o pré-Anthology, inclusive com faixas que não entraram no projeto da Apple que, depois de muitos arrufos judiciais e outras mumunhas mais, sairia no final dos anos 90.

O fascinante é que os John Barrett Tapes era a prova que a gravadora tinha muita coisa, que a gente sequer sonhava, a ser lançada em ótima qualidade. Mas tudo passava ainda por pendengas judiciais e a crença de que um lançamento desses era pouco viável nos anos 80, quando artistas dos anos 60, a despeito de serem os Beatles, não eram considerados de muito interesse comercial.

Aliás, ainda havia um projeto inicial em marcha, que era o próprio relançamento do catálogo oficial da banda, e que seria o começo. Quando ela finalmente apareceu em CD, não foi sem um grande estardalhaço. Afinal, era oportuno esse relançamento, já que os discos estavam esgotados, mesmo os novos, e as prensagens anteriores foram lacunares e em qualidade sofrível. Pra piorar, era preciso otimizar a discografia oficial que estava esparsa em dezenas de coletâneas que, depois do digital, perdeu a razão de ser.

Mas em 1989 ou 90, não havia no horizonte a possibilidade de vislumbrar um lançamento oficial desse material pirata. E o jeito era gravar fitas. Mas mantendo contato direto com um colecionador que, mesmo não sendo da área da comunicação, recebia fotocópias das revistas como a Dig It e a Beatles Monthly Book, que eram muito mais acuradas a respeito de informações sobre os Beatles do que as nossas publicações.

Esse comércio ativo de colecionadores, que eu achava melhor e mais 'racional' do que o fanatismo dos fãclubistas (que não era tão grande nos anos 80, quase um bando de essênios) tinha esse capital simbólico que eram as fontes discográficas pirata e livros recentes, como o Complete Beatles Recording Sessions, do Mark Lewisohn, que era (e ainda é) o maior especialista nesse setor.

Tanto esse material disseminado em vinil (por uma tal de Drexel Records) pelos anos 80 quanto o livro de Lewisohn mostravam que havia pirataria de qualidade por aí, muito melhor que aquela extração que surgiu a partir dos anos 70. Ao mesmo tempo, a Pyramid (outro selo bizarro, mas com umas capas bem transadíssimas e vinis coloridos) despejava em vinil e em CD a íntegra de tudo o que restara dos programas dos Beatles na BBC, num total de treze ou quatorze álbuns.

Logo depois, esses tapes da EMI ganhavam outras edições como coleções em série mas em formato digital. Um exemplo eram os Unsurpassed Masters (cujas matrizes deviam pertencer aos arquivos de John Barrett): digitalizadas, muitas daquelas faixas tinham qualidade igual ou superior às mixagens remasterizadas da EMI. Chegando por aqui em edições importadas naturalmente, era lógico que poucos teriam condições de comprar esses disquinhos.

Mas eles já eram um divisor de águas nos bootlegs; logo surgiriam outros miniselos que, com o tempo, passavam a limpo tudo aquilo que já havia aparecido em vinil. Para nós, os sem culotes, os despossuídos, restava contar com colecionadores para conseguir uma cópia em fita.

Por exemplo, lembro quando o Capitão Gancho puxou da coleção dele os dois primeiros volumes do Ultra Rare Trax, que era a série mais clássica desses álbuns de sobras de estúdio. Dispostas em ordem aleatória, era uma faixa mais sensacional que a outra. Outakes em estéreo, cruas, como se estivéssemos ouvindo os Beatles gravando, como uma mosca na parede. Quando ele pôs o piratão na eletrola para gravar, eu fiquei chocado com a qualidade de som.

Era o material mais quente possível. Não esqueço que ele gravou os discos no equipamento de som do irmão dele, que era fã do Genesis (nunca me esqueci desse detalhe, havia na estante a coleção completa do Genesis, em formato digital importado na época, nem no Brasil havia todo o catálogo em CD)). A primeira faixa era um false start de I Saw Her Standing There, seguido de uma tomada completa, com erros de contrabaixo do Paul de backing do John. A segunda faixa era um outtake de One After 909. Era inacreditável (tempos depois eu acharia o disco num sebo, era o meu pirata preferido) . Mas o prazer da primeira audição era proustiano, não poderia ser nunca mais ser repetido.

Começo dos anos 90 foi o auge dessa evolução da pirataria em CD. Com o dólar flutuante, nem dando sinal era possível comprá-los. Ao mesmo tempo, apareciam CDs do Who, Hendrix, coisas que a gente não achava nem em vinil por aqui. Acho que foi a época que os sebos mais lucraram, até lá por 1998 ou 99. Fora que muitos colecionadores foram gradativamente trocando o elepê pelo CD, e muita coisa foi desovada nas lojas. Era a chance de comprar discos que nunca mais apareceriam de bandeja (ledo engano, hoje é fácil achar esses relançamentos em 180g por aí).

É lógico que, deslumbrados pela revolução digital, nós queríamos partir para o CD começando pelo nacional, e os disquinhos não eram baratos. Mesmo com o advento deles, o vinil ainda era a mídia mais usada – isso quando comprava-se LP por ser um formato básico, diferente de hoje, quando é apenas um fetiche para quem não viveu a época da bolacha.

Mas estou tervigersando e isso cansa o leitor. Voltando: esse período 90-95 foi o da disseminação desses boots dos Beatles. Uso 1995 como data limite porque foi nesse ano que a Apple finalmente deslanchou o projeto Anthology. É natural que, de posse de todas essas sobras dos Beatles, era necessário pensar um lançamento que prestigiasse não os colecionadores (que, por sinal, não viram muitas novidades nesse novo material) mas todo o público em geral, até quem não era fã incondicional dos Fabs.

Isso explica o “corte” que foi feito ao criar uma série que fizesse uma retrospectiva, não obstante a impossibilidade de disponibilizar tudo como os boots completos) mas que, de certa forma, pegou a essência de todo aquele “corpus” pirata, desde o que julgo ser uma jogada verde, que foi o Live at BBC (que por sua vez era um resumão daquela coleção mamutesca de treze discos em dois CDs) de 1994 até o Anthology.

Quando eles saíram, entre 1995 e 96, foi como se toda uma época desaparecesse: eu já conhecia (em fita) muito daquele catálogo do Capitão Gancho. Por sinal, lembro dele abrindo na minha frente Sedex chegado da Europa com fitas e mais fitas com material explicitado em cartas batidas à máquina, com tapes raríssimos com mixagens diversas de faixas do Álbum Branco (que, como se sabe, pelo fato de ter sido produzido pelos próprios Beatles, possuía uma quantidade considerável de mixes e acetatos diferentes das mixagens oficiais). A gente ouvia aquilo embasbacados; ia muito além do que a gente achava que conhecia (e tinha mais, não muito mais, mas mais).

Primeiro foi o fim do Beatlemania 99, que foi o programa que congregou esses fãs desgarrados, desde aos encontros no Sgt. Pepper's até as sessões daquele Magical Mystery Tour no Sesc (o deslumbramento de assistir ao filme era inenarrável). O programa, que era patrocinado pela EMI, foi morrendo aos poucos, junto com a própria 99.3 que, por fim, virou uma enlatada. 
 
O Anthology também deu uma refreada naquele instinto arqueológico de bootlegs. Primeiro que gravar tudo era pouco viável a longo prazo. Era um passatempo divertido, porém caro (as fitas também eram um investimento complicado). E depois do projeto, pelo menos de minha parte, eu enchi o saco de pirataria. Nessa época, eu já estava ouvindo muitas outras coisas, e ainda por cima aproveitava a própria desvalorização do vinil para comprar clássicos, jazz e outras coisas que nem tinham relação como rock que, paradoxalmente, era um gênero menor na minha discoteca.

98 (vinte anos atrás!) foi também o ano que eu descobri, depois de ler Negroponte, que a Internet era um caminho sem volta. Qual não seria a minha surpresa ao descobrir que, no auge do download desenfreado, pós-rapidshare, lá por 2004, e depois, com o streaming, todo esse material pirata dos Beatles fosse aparecer com força, e em sua totalidade?

Todo? Claro que não. Acho que foi ali que, olhando em retrospectiva, é divertido pensar em toda aquele trajeto arqueológico que foram pegar naqueles boots clássicos e toscos como o File Under (do fã clube Revolution) ou o Beeb 6 e o Quarrymen (que foram pirateados no Brasil que hoje têm realmente um grande valor, não só histórico (e pelo retorno do vinil) mas pela beleza de muitas capas, como as dos piratas da BBC que, seja lá quem foi o autor delas, eram paráfrases dos discos alemães e americanos oficiais (os discos da Capitol por si só valem um próximo post), eram de uma criatividade ímpar.

Discos com quaidade péssima (como o histórico Yellow Matter Custard) mas capas deslumbrantes. E muitos deles têm esse valor simbólico mesmo, já que foram superados pelo CD e mp3, e que compreendem praticamente tudo o que é conhecido do famoso copião do filme Let It Be, disponibilizado numa série digital chamada Thirty Days (ou algo assim).

O que ficou foi provavelmente esse feticho do audiófilo, que a gente levou para outras correntezas, outros gêneros, outros artistas, ouytras discotecas. E tudo passa pelo deslumbre do vinil comprado, da fita gravada, da descoberta. E tudo isso num mundo em que a realidade da Internet era impensável. É possível dizer que hoje tudo é acessível e isso é ótimo.

Contudo, é justamente essa acessibilidade não passa pela experiência daquele tempo. Se eu virasse beatlemaníaco agora e tivesse diante de mim tudo isso que eu descobri, desde as VHS deliciosamente gravadas com o sabor do interdito (“é proibida a reprodução etc”), não havia a experiência da espera, da descoberta, da expectativa. Era um fetiche, sim, mas estava imbricada àquela realidade analógica, pré-internet (rádio, lojas de discos), da qual estávamos todos submetidos.

Se eu fosse começar a coleção hoje? Certo que eu ia ser mais um que ouve tudo e não ouve nada. E ia ficar com a discografia oficial. Hoje não tem mais fita gravada. E todas aquelas gravadoras ilegais que prensavam CDs nos anos 90 não existem mais. Na febre dos blogs de música, muita coisa reapareceu, alguns discos foram relançados – mas ironia do destino, são agora cópias piratas dos piratas. Ainda hoje é possível achar material de uma Yellow Dog (como os Ultra Rare Trax) mas prensados por outras pessoas.

Hoje falando essas coisas, pareço repetir-me, proclamando o óbvio. Mas imagino que tratando-se de lembranças que lá se vão quase três décadas, e que é incrível pensar que quem agora tem a minha idade quando comprou o primeiro disco não tem noção do que era ouvir música naquele tempo – que parece que foi...ontem. Não gostaria de voltar ao passado mas como não ser saudosista?


P.S: que fim levou o Capitão Gancho? Cartas para a redação. 

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