Monday, July 30, 2018

Festim Diabólico

Se você voltasse à Porto Alegre de 1864 então se espantaria em perceber que a cidade ia da ponta do Gasômetro até a Santa Casa. Ali ficava um muro, que fora reformado na época dos Farrapos. A antiga Independência era uma estrada descampada onde, à esquerda de quem sobe, ficava a chácara da Brigadeira, e que se estendia até as margens do Guaíba.

No burgo açoriano, pois ficava restrito praticamente à península, e isso antes dos primeiros aterros, a área era bem menor. Enquanto a elite municipal encastelou-se basicamente na Duque de Caxias, então, rua da Igreja, o lado pobre da cidade era a que margeava o rio, pulava a ponte e seguia pelo antigo Areal da Baronesa, hoje o prolongamento do Pão dos Pobres.

Se você descesse pelo antigo Beco do Oitavo (por causa do Batalhão dos Caçadores, que ficava na boca da rua, nos portões da cidade, hoje a Des. André da Rocha) e chegasse além da Cel. Fernando Machado naquele tempo, ia cruzar por suas calçadas fétidas, onde o esgoto e a água das calhas e misturava em miasmas pela rua afora.

Se fosse perfazer o trajeto à noite, iria cruzar com uma cena caligaresca: trechos mal iluminados, muitas casas de pensão e lupanares. Muitos escravos-de-ganho eram jogados na prostituição por seus amos. O sexo era fácil a a violência gratuita.

A pior parte era atrás da Matriz. Como havia um cemitério onde hoje fica a Cúria, aquele entorno era desvalorizado. Segundo cronistas como Sérgio da Costa Franco, era comum no local desenterramentos causados pela chuva, com direito a caveiras se misturando ao lixo do curso.

Sair à noite era considerado loucura. Era cada um por sua conta e risco. Você podia tanto ver um crime, um assalto, uma curra, uma degola, ou ser vítima disso. Pior: você poderia encontrar com um certo José Ramos. Ele poderia te convidar para cear à casa dele, ali, no Arvoredo e, sem que você pudesse pestanejar, era morto a machadadas e finalmente transformado em carne para linguiça.

Os crimes da rua do Arvoredo, como ficaram conhecidos os incidentes que ocorreram nesse período, naturalmente foram matéria que foi apagada pela memória oficial na mesma proporção em que tornava-se lenda. Ao virar lenda, a maioria das pessoas que mencionava essa efeméride não sabia quem foram os autores dos assassinatos, muito menos a data. Sabiam que, durante certo tempo, Porto Alegre, que já era uma cidadela rude e caótica, foi uma cidade antropófaga.

Eu particularmente sabia da história mal contada pelo Renato Maciel de Sá Júnior, nos seus anedotários. Mas era preciso que houvesse algum indício histórico, para que fosse possível referir-se aos crimes como algo dentro do tempo.

Quem desenterrou essa tenebrosa página foi Décio Freitas. Lembro que assisti a uma palestra dele na Famecos na época que ele lançou o seu livro O Maior Crime da Terra, em 1997 (1). Ali, ele pegava das teorias darwinistas (aliás, o autor da Origem das Espécies tomou conhecimento da antropofagia porto-alegrense) para dizer que, à Zola, o homem falhou como ser humano e o seu atavismo animalesco falava mais alto. Cada homem traz o chacal dentro de si.

Décio falou que, quando ele era repórter do Diário de Notícias, em 1960, resolveu publicar os crimes do Arvoredo a partir de fontes, que eram os autos dos julgamentos. Foram três ao todo, sendo que, salvo em fotocópias que ele conservou quando pesquisou sobre o assunto, e que posteriormente boa parte do material foi misteriosamente extraviado do Arquivo Histórico.

Ao mesmo tempo, a redação do Diário passou a receber ligações anônimas e de grupos religiosos, pedindo para que a série de reportagens fosse suspensa. Por pressão de mãos invisíveis (possivelmente irmãs daquelas que sumiram com boa parte dos autos dos crimes), existia algo que queria pôr uma pedra sobre o assunto.

Foram quase 130 anos até que surgisse uma publicação que desse conta do assunto sem que fosse pelo viés pitoresco e lendário.

A história começa pelo meio. José Ramos foi preso acusado da morte de duas pessoas: José Ignacio de Souza Ávila e Januário Martins Ramos da Silva. A partir daí, foram acusados ele e sua esposa, Catarina Pulse, uma alemã húngara, muito jovem à época (quando saiu da cadeia, tinha apenas 41 anos). Muitos dos imigrantes alemães que vieram com ela teriam sido originários daquela região da Europa.

O grande problema é que Ramos era um rábula a serviço da polícia. Então havia uma relação entre ele e a Justiça, isso complicava as coisas para a polícia, na medida em que "facilitava para ele".

Ambos foram julgados e condenados. Porém, havia mais. Tudo mudou quando, anos depois, Catarina resolveu contar o começo de tudo. Ela e Ramos, mais Carlos Claussner, açougueiro na rua da Ponte, e mais um grupo de alemães vizinhos deles, faziam parte de uma quadrilha responsável por uma série impressionante de assassinatos sem precedentes aqui.

Só que, se no caso do primeiro julgamento, os dois comerciantes assassinados foram mortos e tiveram seus cadáveres ocultados, havia um outro grupo de vítimas, em geral, pessoas desconhecidas na capital ou de passagem, que foram mortas a mando de José Ramos, e tanto Claussner e Catarina (e pelo menos mais duas pessoas) foram cúmplices do que foi o açougue.

Depois de degolados (2), tinham a carne do corpo triturada (por Ramos e Claussner) e transformada em linguiça, fartamente vendida, por puro prazer de Ramos que, por sua vez, tinha uma ascendência enorme entre aqueles alemães, para grandes luminares da capital que, como Tiestes (da outra lenda), foram canibais involuntários...

Do ponto-de-vista legal, ao que parece, observa Freitas, havia primeiro o dilema de Ramos estar ligado à Justiça, pois era informante e tinha um "foro privilegiado", ou melhor, dangerous liaisons" entre a polícia e o criminoso. Por outro, havia um certo temor, por parte dos edis da cidade, em imbricar um grupo de alemães ao crime - o que, de fato, ocorreu, por conta de um certo antigermanismo que existia em Porto Alegre (e que iria desaguar na questão dos Mukers, esta, também, omitida por muito tempo).

Ainda em 1862, diz Décio no livro, o Deutsche Zeitung, hebdomanário produzido por alemães na capital, quase foi empastelado e seus donos linchados depois de um artigo de fundo que se colocava do lado dos ingleses na Questão Christie. A polêmica quase descambou num outro incidente diplomático, e tudo isso ocorreu numa cidade perdida no mapa.

Ora, imagine o que iria acontecer se os crimes fossem finalmente revelados, da forma como ocorreram, e ao acusarem-se um "grupo de alemães antropófagos" como os autores? Assim, seguiu-se praticamente a lógica perversa da peça do Ibsen, O Inimigo do Povo: às vezes, para o bem geral da nação, é melhor que a verdade não seja dita.

O dilema da polícia era, com efeito, associar os crimes à comunidade alemã: isso poderia ir contra todo o programa de imigração que era promovido pelo Império.

Décio Freitas explica que, mesmo depois de condenada e solta, ela resolveu finalmente contar tudo à polícia. Segundo ela, por puro descargo de consciência. Porém, a sua versão mudou o curso do que se sabia sobre o caso: de que era uma espécie de  folie en famille de uma quadrilha que vivia em função da figura de José Ramos (na sua vizinhança, no Arvoredo)  que, à época da confissão de sua companheira, também já estava mais fora da cadeia do que dentro. Era enfermeiro na Santa Casa.

Por esse e tantos outros fatores, a história foi sendo apagada, até virar lenda, sem indicação de nomes e de datas. Tanto que, até pouco tempo atrás, existia um sobrado verde (que ficou muitos anos fechado, até foi finalmente demolido, nos anos 2000) atrás da Cúria, onde muitos vizinhos na Fernando Machado diziam ter certeza de que aquela era a casa dos crimes.

O que não poderia ser: a Porto Alegre de 1864 não existe mais no mapa de hoje, exceto com relação a alguns prédios públicos, como o Solar do Gen. Câmara e a antiga Assembléia. O centro atual é uma cidade em cima daquela cidade.

Na verdade, Ramos, mesmo acobertado por cúmplices que preferiram calar, teria cometido o crime perfeito. O assassinato dos dois comerciantes, (mais um menino e um cachorro) foram, por assim dizer, o ato falho dos crimes (o assassino sempre "se entrega" inconscientemente, diria a corrente freudiana), e o que levou-os ao patíbulo.

Claussner, que havia sido listado como uma das vítimas, por sua vez, era o cúmplice nº 1. Ele é que era o verdadeiro açougueiro: a carne dos assassinados eram transportados em baús, do Arvoredo até o açougue da Riachuelo, que ficava atrás das Dores, numa época em que a entrada da igreja se dava pela Riachuelo, o que tornava o estabelecimento bastante conhecido pela população. Em sua confissão, Cataria disse que chegou a provar da carne (pode ter consumido em larga escala já que ela mesma disse que, em tempos de fome total, na Transilvânia, parte do povo recorria ao extremo do canibalismo).

Ramos resolveu matar Claussner porque acreditava que este fosse entregá-lo caso chegasse ileso a Montevideu, e então contaria dos primeiros crimes. Antes de qualquer certeza, deu cabo da vida de seu parceiro. E aquela pessoa que ele imaginou que não iria contar toda a história, Catarina, foi quem acabou contando.



NOTAS

(1) FREITAS, Décio. O Maior crime da Terra: o açougue humano da rua do Arvoredo. Sulina, Porto Alegre, 1997. 

(2) A degola era por aqui uma prática comum (algo como torcer um pescoço da galinha do almoço, diriam alguns), usada para crimes em geral e na guerra. Ou seja, muito mais comum do que pode parecer. Décio iria além num livro posterior, O Homem que Inventou a Ditadura no Brasil (2002), ao descrever como a degola era uma segunda natureza dos combatentes da Revolução Federalista de 1893, descrevendo com requinte de detalhes, como inimigos e prisioneiros (e populares) eram mortos dessa forma. Uma prática que estaria atavicamente ligada à história das guerras de fronteira no Prata, e que seguiu por aqui, até na Revolução de 23, a última que separaria chimangos e maragatos. 

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