Wednesday, July 11, 2018

O retorno de Gilgamesh




Aposto que a maioria das pessoas que ouviu falar da Epopeia de Gilgamesh (ou Gilgamês) ouviu falar a respeito dela a partir do best-seller do Erick Van Dankien, Eram os Deuses Astronautas? O livro, bastante controverso, dava conta de um texto babiônico/sumério que fora descoberto no século 19 e que contava uma versão diversa do Dilúvio Universal da que todos nós conhecíamos a partir do Gênese.

Isso dava margem à especulações de que o texto bíblico, como soube-se depois, é resultado de uma fusão de experiências literárias anteriores, quando o Velho Testamento foi escrito, após o Exílio babilônico. A descoberta de um original desses naturalmente atiçou a imaginação de muita gente, inclusive a minha, o que me fez ler a epopeia logo que descobri que ela havia sido traduzida para o português, nos anos 90, pela (excelente) Coleção Gandhara, da Martins Fontes.

Pois esse rodeio é para falar que saiu recentemente (ano passado) uma versão da Epopeia de Gilamesh com a tradução de Jacyntho Lins Brandão pela Autêntica.

Esse ano, o livro foi bibliografia de uma cadeira de faculdade e, ao mesmo tempo, eu tinha a missão de produzir um texto para um grupo de escrita não-criativa. Dessa forma, aproveitei oportunidade de usar a obra nas duas situações e, ao mesmo tempo, entrar fundo no mundo desse texto, à medida em que, ao recriar o poema, poder cotejar o estilo com os épicos gregos e a Bíblia, na tentativa de mistura tudo e recriar esse universo que, do ponto-de-vista literário, é tão próximo.

O volume da Gandhara, com tradução de Carlos Daudt de Oliveira, porém, na verdade foi transladada para a lingua de Camões a partir de uma edição inglesa (N. K Sanders, de 1960).

Apesar de ser uma ótima versão e contar com excelente nota introdutória - a cargo do próprio Daudt, ainda nos faltava a experiência de uma tradução mais "nossa" e, ao mesmo tempo, mais "próxima" do que seria a leitura das tabuinhas originais.

Essa é mais ou menos (provavelmente) a versão de Jacyntho que, curiosamente, mantém ainda as lacunas do texto original - não "anônimo" como a versão de Sanders, mas atribuída a um escrita do tempo de Assurbanípal (século VII), Sin-lequi-uninni, e intitulada a partir do primeiro verso, "aquele que o abismo viu, o "divino e sofredor" rei de Uruk, Gilgamesh.

Não sabemos se futuras incursões exploratórias pelo Crescente Fértil nos possa ter a chance de encontrar uma cópia inteira do poema, provavelmente não. E, de certa forma, a recriação de Sanders, incluindo um epólogo que não aparece na versão de Sin-lequi-uninni, confere maior unidade ao texto.

Contudo, a versão "original" de Jacyntho nos coloca diante do que é a obra, um livro antes do que poderíamos chamar de livro, e que foi escrita e recolhida há muito tempo, precedendo os poemas homéricos em mais de mil e quinhentos anos.

E muito antes de Homero, aqui já podemos encontrar tragédia, aventura, ação e todos os ingredientes que o bardo grego usaria. Como na Ilíada, os deuses são imortais, aos homens, resta a busca pela glória e a morte. Gilgamesh, como Aquiles, é um homem cuja semidivinidade mais o atrapalha que o ajuda. E com o episódio do dilúvio e a busca pela vida eterna, mosta toda a fragilidade da existência da humanidade sobre a terra.   

O que se especula é que a epopéia era conhecida por boa parte daquela região ainda a partir do segundo milênio a.C, traduzido para o acadiano e o hurrita, sem contar possíveis versões cananéias encontradas na cananéia e inclusive na Anatólia, ou seja, muito perto de aedos como Homero.

Isso levou muitos estudiosos, como dia Daudt em sua introdução, a propor a tese de uma poesia egéia-micênica que sobreviveu à idade das trevas grega e chegou à posteridade. Mas toda essa discussão a respeito do atavismo 'asiático' na poética "egéia" é uma discussão tão fascinante quando difícil de chegar a algum lugar tão cedo.

O certo é que a obra gozou de grande popularidade, e ganhou inclusive versões apócrifas expandidas (como o 'falso' Dom Quixote).

A história por trás de Gilgamesh (que seria o quinto rei da primeira dinastia antediluviana), porém, vai onde ela mesmo termina e começa a lenda, logo depois do "dilúvio", quando os deuses habitavam a terra, porém deixando mortais em seus respectivos tronos. Essa seria o que podemos chamar de aurora da civilização  suméria arcaica,

Os sumérios foram os primeiros habitantes da região onde hoje fica o Kwait e o sul do Iraque, no quarto milênio. Mesmo com a invasão semítica, todo um legado permaneceu como atavismo na herança cultural. Tanto que seu idioma continuaria sendo usado pelos conquistadores, como o latim sobreviveu depois da Idade Média.

Escavações em Uruk, por exemplo, demonstram que as cidades nasceram muito depois de  vestígios do que seriam marcas de um dilúvio. Contudo, nada que se pudesse explicar como uma efeméride de caráter "universal", como se imagina. 

A busca de Gilgamesh e Enkidu pelo cedro do Líbano, quando eles matam o Guardião da Floresta, por exemplo, poderia ser explicado como resultado de um fator econômico típico da região: ao observar-se as relações belicosas entre as cidades-estado do sul (na planície) e os montanheses (no norte).

Como todo o cedro para a confecção de pórticos e demais obras arquitetônicas focavam ao norte, eram naturais incursões de exércitos em busca de matéria-prima. Porém, os povos do norte não iriam ceder a medeira de bom grado, o que provocaria a guerra inevitável. Consta que foi dessa forma que Sargão conquistou Amano.

Assim, o trecho do poema, por sua vez, pelo seu caráter simbólico e crucial na narrativa, seria uma forma plasmada de explicar as relações econômicas entre as cidades-estado do Crescente Fértil.

E o dilúvio? 

Buscas arqueológicas apontam para um dilúvio que tenha ocorrido após a era do gelo pelos lados do Mar Negro. Ao mesmo tempo, existem pistas de outro, que teria ocorrido, em grandes proporções, perto do Golfo Pérsico. O curioso é que, como catástrofes naturais, elas podem ser entendidas como grandes enchentes, e não especificamente uma tempestade bíblica. Aliás, como atavismo de uma literatura cujos motivos foram transpostos para a cultura de outras civilizações, o Dilúvio parece fazer mais sentido no contexto mesopotâmico do que no hebreu, por exemplo.

Creio que, da mesma forma que simbolicamente a luta entre Gilgamesh e Humbaba significa o choque entre civilizações distintas or uma questão de domínio e expansionismo, o dilúvio do Gilgamesh também serviria, do ponto-de-vista simbólico, como uma representação do temor que aquele povos tinham da violência das águas do Tigre e Eufrates.

Como diz Ciro Framarion Cardoso, antes que esses povos tivessem conhecimento e tecnologia suficientes para dominar essas águas, o medo de uma grande inundaçao era iminente. Uma grande enchente podia, de uma só vez, acabar com um assentamento humano, obrigando seus habtantes a serem obrigados a migrar.

Ou, como em casos ocorridos no Egito, como ele mesmo diz, provocar uma gigantesca fome e escassez total de recursos provenientes das colheitas. Por isso, é possível entender o episódio do dilúvio, do ponto-de-vista simbólico, como um mitema que plasma esse temor das águas que havia no imaginário cultural desses povos. Não seria o caso de questionar a fé bíblica, mas entender esses mitos como representações tidas como 'verdades' enquanto formas de, como diria Lila Shwarcz, entender essas produções em como uma determinada sociedade produz uma quantidade de imagens sobre o seu passado.

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