Wednesday, July 11, 2018

O essênio da Insolência


O Grande Vidro (1915-23)



Sempre achei Marcel Duchamp, dentro daquele espírito dos movimentos modernistas do começo do Século XX, como um grande chiste. Isso depois de ler um livro que já é clássico, o O Engenheiro do Tempo Perdido, do Pierre Cabanne (1973).

Cabanne propõe um longo depoimento de Duchamp, que fala desde seus hábitos na época da entrevista, sua vida como cidadão americano, seu interesse pela arte contemporânea no tocante ao seu legado, sua relação com o mundo da arte, museus e o mercado, passando por concepções estéticas, como o conceito de arte, de arte moderna, sua relação com artistas de sua geração, o surrealismo e o dadaísmo e suas impressões sobre os jovens artistas.

Depois de ler, reler e transler a entrevista, que parafraseando Mário de Andrade, é interessantíssima, inventei de esquematizar o discurso de Duchamp em algumas questões essenciais:

1) Integração e relação com os movimentos de vanguarda do começo do Século XX tanto em matéria de amizades quanto de afinidade estética. Volubilidade na relação entre ligação com os surrealistas e negação dessa mesma influência, considerada, segundo o artista, em pontos de contato comuns.
Atitude anti-retiniana, ou seja, menos focada no aspecto meramente visual, em favor do conceitual.

Percepção da nova problemática cultural estabelecida pelas relações entre arte e tecnologia: “Nu Descecndo uma Escada” como uma estática do movimento. No fundo, o movimento é o olho do espectador que o incorpora ao quadro (…) o movimento da forma, em um dado tempo, leva-nos fatalmente à geometria e à matemática; é a mesma coisa quando se constrói uma máquina.

A questão e a pretensa importância da função do artista, caracterização como artesão, gênio e inteligência (Breton o chamava o homem mais inteligente do Século XX).

A partir do Grande Vidro, uma ruptura de uma perspectiva pela lógica matemática e o Vidro como renúncia a todas as estéticas mas sem a intenção de ser um manifesto.

Interesse da crítica e das interpretações de sua obra.

2) Negação do circuito comercial e da “estandardização”, da produção “em série” da obra de arte. Desinteresse em aceitar exposições a não ser em casos de homenagem ou no sentido de “preservar” a produção de determinado autor. Duchamp deixou de aceitar propostas de ser um artista em "série", preferindo ser tributário do tempo como princípio para a sua concepção de produção artística.

Para ele, os museus de sua época já “estão sendo comandados por conselheiros marchands”. Mesmo assim, ele sabe que o artista é dependente de curadores ou mecenas, como Arensberg que, por sua vez, interessou-se em preservar o legado de Duchamp ainda em vida.

Nesse caso, Marcel “abre” uma exceção já que entende que, nesse caso, negar-se à uma homenagem seria “loucura”, como rejeitar um Nobel, por exemplo.

3) Perpetuidade da obra através do julgamento do espectador num momento posterior versus “fim” do quadro, ou da obra, da 'positividade' ou de relevância histórica da obra, opinião que Duchamp julga estar sozinho nessa defesa (a despeito de que ele entendesse que uma época posterior, ou, "os posteros", pudessem dar um valor diverso a um autor no futuro).

4) A questão do papel do museu como pretensão de postular gosto gosto e como uma exposição de anacronismos e que pode contar desde o melhor de uma época como, segundo ele, o pior. Para Duchamp, essa prática acaba provocando a criação de uma aura de um determinado artista onde as pessoas passam a interessar-se até pelo “desimportante” desse autor, sendo que, de acordo com Marcel, cada grande artista teria, no máximo, umas cinco grandes obras que realmente significariam uma 'ruptura', como as Demoiselles de Picasso, pegando o exemplo dele na entrevista.

Para Marcel, a atitude do artista conta mais do que a sua obra de arte que, em sua opinião, seria redundante: “a maior parte dos artistas não faz mais do que se repetir”, diz ele.

5) Relação 'dialética' entre espectador e artista, como se o espectador complementasse a visão do artista e a obra fosse, de certa forma, um pouco do próprio espectador pela sua recepção. “Artista é inconsciente da significação real de sua obra e o espectador deve sempre participar de uma criação complementar ao interpretá-la”. Para ele, segundo Jorge Coli (1981, p.70), "são os olhadores que fazem um quadro".

6) Por conta disso, Cabanne salienta a importância do do tempo na arte e como chave da produção de Marcel. “Nunca conheci o esforço para produzir”, diz ele.

7) Não prender-se à instituições e defender-se como um “celibatário” como postulado para que ele pudesse trabalhar livremente. Ao mesmo tempo em que postula uma estética nova, pretende desvincular-se de qualquer conotação política tanto em vida quanto na obra, desde no ponto de vista militante numa época de divisão entre capitalismo versus socialismo (e anarquismo).

Algo que lembra o que Martin Barbeiro (1997) chamaria de “estética anarquista” na qual o traço primordial seria a continuidade da arte com a vida, encarnada no projeto de lutar contra tudo que separe esta daquela, já que, mais do que nas obras, a arte residiria na experiência, e não nos “artistas-gênios”.

Assim, da mesma forma que os anarquistas segundo Barbeiro, Duchamp coloca-se contra a obra-prima e os museus (como “instituições” secularíssimas e singularíssimas) em favor de uma arte em situação, antiautoritária, baseada na espontaneidade e na imaginação (p.35).

Outro fator interessante na entrevista é seu contato com Manet e o cubismo. A questão da influência mesmo que ela seja a própria negação da influência. Como artistas como Seurate e Manet o influenciaram mas para outra direção inclusive com a recusa inicial de suas obras 'não-retinianas'.

Segundo Duchamp, esse desapego ao tradicional na arte não se deu de forma traumática e esse processo, segundo ele, foi natural mas em busca de um caminho 'solitário' e estritamente pessoal, embora ele vivesse, de certa forma, numa espécie de círculo em Nova Iorque, como estrangeiro, num momento em que a Europa interessava aos americanos, ao passo que, em Paris, ele era mais estrangeiro que na America, segundo ele. Da mesma forma, Duchamp procurou fugir da guerra (ao contrário de Apollinaire, que serviu e quase morreu) em 1914,  na França e, quatro anos depois, nos Estados Unidos, quando migrou para a Argentina.



O ready-made

Ou seja, até a ruptura e a aceitação dos ready-made, é possível vislumbrar essa indiferença e ausência de bom ou mau gosto, desenho mecânico como fuga ao gosto estético, ainda que sendo uma espécie de essênio da insolência.

Então Duchamp refere-se ao deslocamento da obra para o museu ao deixar sua função fetichista para a de culto, como a colher de pau – a que refere-se também Jorge Coli ao falar da crítica à atitude “culta” que nossa civilização confere ao contato com o objeto artístico.

Como diz Coli, originários de outras épocas e de culturas distantes, mas disponíveis ao nosso alcance, os objetos modificaram os seus estatutos, suas funções e os seus sentidos. A máscara africana, diz o autor, certamente pegando o mote de Duchamp na entrevista de Cabanne, num museu, vira arte, um outdoor, idem. E por aí vai.

Coli observa que esse “para nós” na arte cria um novo estatuto uma nova relação entre o espectador e a obra, porém perdendo esta o seu papel de origem. Até mesmo um concerto brandeburguense de Bach, por exemplo, mesmo que executada por uma orquestra ao vivo, está “desolcada”, já que a peça fora concebida para execução “particular”. Ou seja, mesmo quando ela parece manter uma certa “aura” numa sala de concerto, ela já está “deslocada”.

Como diz Duchamp, fomos nós que demos o fetiche a coisas não artísticas, como as religiosas, por exemplo. “é, de certa forma, uma forma de masturbação”.

Aqui ele faz uma denúncia do aspecto convencional da atribuição ao estatuto de arte pelos instrumentos de cultura, como diz Coli (p.70), muito embora Duchamp não use esses termos mas, é possível observar esse movimento em suas palavras, não obstante ele não postule de forma ostensiva essa posição como atitude militante.

Porém, como Coli observa, invariavelmente, ao entrarem em mostras,  as obras de Duchamp, que outrora eram um questionamento, acabam implacavelmente adquirindo o estatuto de obra de arte. E, no fim das contas, como entende Marcel, o gosto não seria outra coisa como a  repetição de uma coisa já aceita (p.116).

Na segunda parte da entrevista, Duchamp explica o seu abandono da pintura, sem remorsos e sem interesse em retomar, condenando-a, proclamando o fim do quadro e da escultura: “penso que um quadro morre, daqui a uns anos, depois, como o homem que o fez. Existe uma diferença entre um Monet na época e depois, entra para a história, é aceito como tal. Os homens são mortais e os quadros também”, diz ele.

Para o artista, a História da Arte é diferente de estética:  "história é o que restou de uma época num museu mas não é necessariamente o melhor daquela época e pode ser até o que existe de mais medíocre dela", explica. "Porque as coisas mais belas desapareceram e o público não quis guardá-las.

Para ele, é a posteridade é quem dá valor à obra do artista, seja qual for a qualidade (duvidosa) da obra. Quer dizer, para ele, não existiria juízo dos contemporâneos, que ele desdenhava, mesmo que, num futuro imaginário, ele previsse o fim da obra de arte

Mesmo sendo um essênio da arte por conta própria, ele postula a importância do lado “comunicativo” (medium, no sentido mcluhaniano) do artista. O artista é reconhecido pelo público e assim entra para a posteridade. “dou importância tanto àquele que vê quanto a quem a faz”. Nesse sentido, ele entende a postura de Picasso, por exemplo, dizendo que 'era necessário, em todas as épocas, que o público tivesse uma vedete'.

Duchamp pega o mote da forma como a curadoria assume um papel de 'julgamento real' de uma obra de arte na expressão "obra-prima": "obra-prima é assim chamada pelo espectador como uma última instância. Falar de verdade e de julgamento real não acredito", conclui.

No fim da entrevista, é curiosa a volubilidade de Duchamp, que defende o papel vedete mas a critica; acredita na importância do diálogo com o público mas não enxerga valor algum ao espectador contemporâneo. Entende a receptividade de sua obra ao mesmo tempo que não atribui ao artista essa função social de que ele tenha um dever para com o público.

O que reside a sua concepção anti-retiniana a partir do ready-made passa pela sua ideia do ocaso da produção em quadro, par além das duas dimensões, mas, sim, pensar a obra como um signo. Aqui ela não está mais reduzida a um nível de decoração (para escapar ao “academicismo”, o artista de vanguarda se empenharia em renovar seus meios de expressão).

Mesmo assim, Duchamp vê um atavismo retiniano na produção dos artistas pop dos anos 60 que, por seu turno, já não lidavam com a deformação proposta por impressionistas, fauves ou expressionistas, surrealistas,  mas trabalham com o material já produzido, com o subproduto da cultura de massa.

Mas a mais curiosa das muitas histórias das obras de Duchamp está o Grande Vidro. Concebida entre 1915 e 23, para ele a peça sempre esteve numa situação indefinida, como um eterno work in progress. Até que, um dia, durante um transporte, o Vidro rachou. Contudo, ao invés de lamentar a avaria, Marcel julgou a rachadura como o ponto final que o tempo permitiu à obra para que ele finalmente a desse como concluída.





Bibliografia:

CABANNE, Pierre. O Engenheiro do Tempo Perdido, Perspectiva, São Paulo, 1973.
COLI, Jorge. O Que é Arte. Brasiliense, 1981.
MARTIN BARBEIRO, Jesus. Dos Meios às Mediações UFRJ, 1987.

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