Friday, July 13, 2018

Uma Entrevista


Semiótica, significâncias e a partogênese do idealismo sincrético:
Bate-papo com Dr. Hilderbrand Durand Funderburger.

Palavras-chave
Semiótica. Epistemologia. Teoria da Comunicação.


Complexo, sistemático, incomensurável. Não existem palavras para resumir e explicar o professor e semiótico Dr. Hilderbrand Durand Funderburger. Trajetos arqueológítipicos numa história que plasma-se entre diversas constantes, desajustamentos e injúrias psicossociais.

Graduado em Linguística em 1978 pela Universidade Santa Rita de Cássia e doutorado na Sorbonne em 1983, orientado pelo famoso filósofo Frere Jacques e por Gilbert Furtwangler, dois luminares da chamada Escola Animalista, a formação do professor Funderburger está imbricada com o desenvolvimento dos estudos culturais, a Pós Nova História (PNH) e seu corolário imagético para o estudo dos problemas de Comunicação e Cultura e Civilização.

Nesta entrevista, Dr. Funderburger. que hoje atua como pesquisador junto à Pós-Graduação em Pós-esconstrutivismo da Universidade Campbell’s, nos guia ao fulcro do problema da racionalidade bifurcada da pós-modernidade sob o signo da Pós-verdade, e fala do seu trabalho que dialoga com campos de significação e cultura e as linguagens sincréticas daí depreendidas, como o ocaso do estruturalismo, do formalismo e das contradições da racionalidade cativa nos meios de comunicação de massa, o problema dos afetos na era do pós-tudo e muito mais.

Pergunta: a midiologia no Brasil, com suas temporalidades, intersimilitudes e dialogismos parecem ligados com a tua trajetória intelectual e acadêmica. Como tu caracteriza esse teu percurso arqueológico?

Funderburger: minha base sempre foi a semiótica mas havia aquela guerra quente de guerrilhas com o estruturalismo, o formalismo, a gramaticalidade das coisas, mas eu não entendia as provocações reinantes entre esses discursos atávicos. Um dia, desbundei e confessei que preferia ser um flanêur, e que minha razão de viver era o Gerativismo de Chomsky. Foi com esse sentimento que, em 1974, vivi em Paris morando no banheiro de um cabaré em Montmartre. Passávamos os dias bebendo destilado no Latin. Éramos como os boêmios de Puccini. Ouvíamos muita Edith Piaf e Juliette Greco, fumávamos maconha e haxixe que vinha da Tunísia. Estudávamos Kristeva, Barthes, Althusser, Derrida, Foucault. Então descobri Saussire e, com isso, todo um novo mundo se descortinou. Meu mestrado era bem heterodoxo e já estávamos numa transa bem cistransdiscipllinar. Essa bagagem nos fortaleceu e nos jogou numa roda viva de novos questionamentos dialógicos e carnavalizantes.

Pergunta: tu dizes que foi do estruturalismo para a semiótica. Como se deu esse deslocamento?

Funderburger: foi um Rubicão antropocêntrico, tudo começou como uma epifania diante do que poderíamos chamar de chamado epistemológico como uma ampliação desmesurada da própria Linguística como um todo imanente. No começo, eu entendia isso como uma emanação da cultura como reflexo estruturado da superestrutura. Depois, virou uma cizânia hermenêutica que me fez ver que a visão cientifizante do discurso metodológico empírico da ciência maquinística e psicossocial provocava uma espécie de engessamento, um beco sem saída do ponto de vista filosófico. Havia uma dificuldade geracional, e eu diria mais, inclusive, de cunho gerativísitico, mas sempre relacionado à semioses significantes. Esse deslocamento, essa meiose mitêmica conceitual foi minando a minha perspectiva teórica. Esse aperspectivismo ameríndio gerava essas controvérsias.

Pergunta: como tu avalia o saldo dessas controvérsias? Há ainda um saldo epistemológico a ser sacado?

Funderburger: eu sou um pós estruturalista cristianizado orficamente pela semiótica. Para os estruturalistas, não há diferença entre descrição e análise. Era análise crítica. Era preciso porpor novas compartimentalidades menos estanques. Mas nada foi em vão. Era preciso demonstrar novas formulações que dessem conta desse novo estamento significante. Não havia mais clima para que nós nos contentássemos com as antigas respostas sistêmicas. Para mim, descrição, análise, era tudo a parte de um todo, uma relação indissociável, Era preciso um basta para aquelas estruturalizações engessantes que já eram a análise e a descrição, com uma resposta a todas as perguntas que pudessem ser formuladas, inclusive, àquelas perguntas que sequer existiam, eram eternas, eram propriedade fundamental da matéria. Eram apenas ideia, alienação, fetichismo, reificação, a mais-valia dos usos e costumes tecnísticos, o twist, o hully gully. A metodologia era dura, mas era preciso uma interpretação, uma solução, a saída da estrutura estruturante. A idéia. A ideia nua, pura e limpa. Era necessários abandonar esses equívocos históricos que estavam sendo desenvolvidos pelos pesquisadores de ponta e esse vício rebarbativo de que a interpretação era livre e subjetiva. Era preciso um novo espaço para o signo, além da precisão conceitual. Nesse processo, a relevância da razão instrumental foi se perdendo, tornou-se obsoleta mas que insidiosamente ainda subexiste no tecido social relativista como um cancro social.

Pergunta: a semiótica veio para explicar aqueles problemas que, antes dela, não existiam. Depois, houve o problema do ponto-de-vista da recepção, e todo aquele movimento histórico que retrocede até o devoramento do Bispo Sardinha, na aurora da colonização portuguesa, e depois o retorno da própria discussão da recepção que, modernamente, numa segunda fase subjacente, não obstante imanente, passando por teorias de leitura que obviamente passam por teorias de leitura como as elaboradas por Barthes. O que tu achas que se perdeu nesse processo, porém, subvertendo a lógica do discurso semântico, numa realidade escalonada e, como diria Umberto Eco, fraturada?

Funderburger: eu diria mais. Quando penso no Bispo Sardinha, lembro da velha discussão entre os irmãos Campos e Antônio Cândido, de como quando e onde começou a nossa literatura. Destarte, enquanto Cândido falava em sistema literário, os Campos falavam em Gregório de Mattos Guerra e Anchieta. Eles querem Gregório como o nosso Dante. Mas o nosso Dante era um impuro, ele dormia com as mucamas assim, num lupanar de paradoxos! Ora, eu, você e todos nós sabemos que Anchieta escrevia em Tupi para os caranguejos da praia e os anjos do céu (risos). Logo, não havia sistema literário. Mas a contenda deu-se pela defesa sistemática de Gregório, um carnavalizante e tropicalista avant la lettre mas veja, como não lembrar de Vieira e seus discursos safadíssimos defendendo o escravagismo?

Pergunta: haveria Literatura Brasileira sem os irmãos Campos?

Funderburger: os modelos são constantes e lacunares. Tanto poderia haver como não haver, “haver” e “a ver”, entende o jogo de palavras? Mas, a rigor, sou um cândido. Estou além dos campos. Concretismo, o que tenho a ver? (risos). Mas essas análises e processos estruturantes apenas deram margem a um debate vazio embora inspirador. Os modelos parasemióticos conseguiram dar compreensão, discernimento, organização e diferenciações tão caras à produção de arte. A arte sempre se produz, nunca é produzida. Ela produz como um coito teogônico, um coito frenético e gemebundo, um coito mítico e salvagem, com bastante palavrão ao pé do ouvido, um coito que é puro amor. Um coito dialético que une o coito e o amor numa síntese hegeliana e não-aristotélica. Um coito da ideia. Mas claro que estamos aqui falando de uma concepção adstrita a modelos de experimentações estruturantes, dessa concepção, dessa ontogênese do paradigma, a semiótica nunca foi algo fácil de se dominar. Mas como sou um pós-tudo, eu discordo de mim. Eu concordo com Maffesoli: eu sou tribal. Não acho que haja qualquer atrelamento a nenhum modelo pré-estabelecido e de contornos limitantes, como o modo de produção asiático. As experimentações, sim, elas são latentes, elas produzem significações, e mais, no percurso inverso do que as por assim dizer aplicações, podem produzir coisas fantásticas e inovadoras, dentro do imaginário, e não na ideologia obviamente.

Pergunta: tu falaste apropriadamente em coito teogônico e de quebra separacional de paradigmas. Tu acha que, se houvesse uma negociação dialógica, seria possível coexistir um entendimento mais hospitalar a respeito do casamento entre os diversos campos cândidos do conhecimento ou tu acha que esse coito proibido freudianamente geraria o que podemos dizer,  um certo tabu totêmico?

Funderburger: acho que, numa perspectiva epistemológica, as experiências do tempo são importantes. O ócio é conciso, o ócio produz, essa espera do tempo gera a coisa em si na esfera do sensível, tudo claro, e aqui vão dois parênteses dependendo da consistência do poder unificador da tipificação metamorfósica. É o que Kant, se fosse um leitor de Bakhtin, chamaria de partogênese do idealismo sincrético.

Pergunta: tu falas em partogênse e em ócio. Tu te considera um idealista ou um materialista? És platônico ou plutônico?

Funderburger: (longa pausa) Difícil de responder. Eu sou um operário do tempo. Como eu disse, minha trajetória semiótica mudou minha visão de mundo. Tudo para mim são semioses. Semioses são como orgasmos. Eu tenho semioses na fila do caixa eletrônico, na frente do computador, na calçada, no trânsito, vendo Sílvio Santos na tevê. O Sílvio Santos me provoca semioses (risos). Eu estou sempre tendo semioses. Eu vejo semioses escorrendo pelas paredes.

Pergunta: me parece que tens uma relação intensa com a semiótica, é matriz epistemológica, teleológica, uma revelação, quase uma heerofania. Como tu entende essa relação centripetamente revelatória na esfera genuflexória do sagrado no profano e deste para aquele, quase uma relação vamos dizer assim ontológica, como ver o divino através do signo, como tu entende que isso se aplica na sua prática?

Funderburger: Não quero fazer demagogia aqui mas tenho que fazer o devido contraponto com o pragmatismo mas sinto o poder das teorias de Foucault aqui comigo e eu as cultivo como as orquídeas que eu tenho na minha sacada. Aliás, é interessante pensar essa relação entre microfísica do poder e fait-divers no sentido de como isso estabelece novos parâmetros para o fazer jornalístico. Posso dizer que eu concordo e discordo de mim, e respoderia ao pragmatismo de inspiração pierceana via Lasswell para que possamos fazer o trajeto antroposófico de compreender a práxis da importância da personalidade, estrutura social e cultura na explicação dos fenômenos políticos e a forma como a mídia catapulta e recebe isso de volta, como um bilboquê. Como não esquecer de Odisseu, como não salientar o fundamento epistemológico como identificador das bases teóricas? Sim, agora vemos em parte, mas veremos face a face. Eu vejo essas matrizes, dimensões ou dispositivos interligados. Aliás, que bela discussão poderia ser feita a partir da compreensão analiticamente operativa (o que não significa concreta) dos dispositivos! Não é apenas pegar uma teoria a contrapelo. Não! Devemos tratá-la à pires de leite, como uma gata de luxo. Devemos comprar atum para ela, atum, não, Whiskas! É preciso pegar a semiótica e ter uma relação de empatia com ela. Perguntar: você está bem, acordou bem hoje? Fez a sua toalete matinal? Como está o seu coração hoje? Enfim, seria um desafio a ser respondido pelas dimensões anteriormente indicadas por uma pergunta. Aliás, o que problematizar ou o que fazer é o que não nos falta nestes tempos de incertezas e quebra de paradigmas.

Pergunta: a semiótica teria um quê de felinamente perpectivista? Ou seria o contrário? O que ela responderia se ela falasse sobre os contextos políticos e suas inversões formalizantes nesse ambiente conflagrado e por que não dizer deflagrado?

Funderburger: acho que nesses tempos em que vivemos na web 2.0 pós orkutianos, nessa discussão entre apocalíticos e integrados, entre apolíneos e dionisíacos, fausticos e prometeicos, devemos estar atentos: talvez essa pudesse ser uma nova chave de leitura para as propostas da Semiótica. Eu, por exemplo, entrei no formalismo, saí do formalismo, entrei no estruturalismo, e saí, saí da Linguística, fui, para Comunicação, terminei o curso do Projeto Minerva nos anos 70, experimentai daime, entrei de cabeça na Cultura Racional, estive em todos os lugares e só me encontrei em mim mesmo. Mas hoje eu sou apenas uma cabeça, um só campo, sou filho da terra e do céu, e sou todas as cabeças ao mesmo tempo, sou: uma hidra semiótica.

Pergunta: você se diz uma hidra semiótica mas, num determinado momento, você disse que desbundou. Como foi isso?

Funderburger: sim, minha geração carregou cartazes dizendo “Muerte” em 1968 e depois dançou no frenetic Dancin’ Days. Eu me cansei de metodologia. Se eu mandar um artigo para a sua revista eles me mandam o artigo de volta. Isso é sintomático. Mas vocês não devem levar isso para o pessoal. Entre o pessoal que se manteve mais rigoroso, há muito maior fidelidade a autores. Dane-se o Chomsky. Estamos em 2018 e tem gente ainda citando Adorno (risos). Essa matriz de pensamento, esse devir dos afetos, que para mim é importante, de repente não é tão importante para os outros.

Pergunta: esse desbunde epistemológico, essa incontinência metafísica tu entende que depois te reabilitou quando todo mundo resolveu entrar nessa coisa de interdisciplinaridade? Agora tudo é imaginário, o real virou irreal e o real não existe mais, é imaginário?

Funderburger: com toda a certeza. Eu não tenho dúvida de que existe o real. Eu aceito que haja uma discussão sobre o estatuto da realidade, mas assim como há quem não creia no real, e isso é lícito, eu também acredito que também é legítimo acreditar no real. Existem várias camadas de realidade, como uma torta fria. Existem camadas que eu chamaria de camadas primárias da realidade, que me parecem indiscutíveis: uma mesa é uma mesa, uma cadeira é uma cadeira, quando tem Sol, tem Sol. Uma coisa meio pré-socrática. O que é, é. O que não é, não é. Que será, será, whatever will be, will be. Essas coisas as pessoas tendem a ver, a enxergar, a aceitar, da mesma maneira. Isso para mim é o real. O resto é vórtex.


Pergunta: Qual roteiro metodológico que poderia abarcar os estudos dessas camadas da realidade?

Funderburger: creio que é tudo uma questão de internalizar essa volubilidade da episteme. Eu trabalho mais com a perspectiva de metodologias qualitativas que vão para a sociologia compreensiva, também usada por Maffessoli, e essa questão do devir afetivo como uma proposta, ou melhor, uma falsa meia proposta, de rever o conceito de sistema-potência-violência-força e as clássicas dicotomias saussureanas, simples assim. Reconheço relações de dependência entre os elementos de um sistema, mas pode haver ruído ou acaso que o altere, em previsões, portanto, ou sem recurso a um reconhecido sistema. Aí então eu negocio um exemplo ao inverso e auto-explicativo, já agregando possíveis dialéticas até mesmo quando a supressão da ideia é, por si só, um preconceito filosófico que perturba os empirismos da decantação da língua no dualismo força-violência. Tipo, como um dia de chuva. Um dia de chuva, um sapato furado, um banho de um carro quando passa numa poça e nos molha até os cueiros. Quando tudo parece dar errado, isso é capaz de alterar todo o sistema, como uma tempestade solar. Uma conexão que, à guisa de perspectiva teórica, se escalona em dialéticas linguísticas. Por exemplo: eu falo “eu vou ao supermercado” e o mundo conspira a seu favor. Mas não se deve abusar da fortuna. Você sabe que não pode ir com fome a um supermercado, etc. A língua é viva. São essas rupturas que criam as novidades. Obviamente, e fixo até com vergonha de aqui proclamar o óbvio, mas eu não sou contra o modo de produção aisático, a hipótese causal hidráulica, o modelo de Lasswell ou força-violência, mas sou a favor das potencialidades do sistema mais abertos à título de desbunde metafísico e de uma complexidade que não seja entendida, digo, resumida a um preto no branco, um, vamos assim dizer, um raciocínio de calculadora dismac, como “aqui tá raso, aqui tá fundo, aqui tá raso, aqui tá fundo”, mas como um olhar que contemple justamente essa complexidade shakespeareana e alforria dos sistemas. Pois, afinal, quem não é complicado e na hora agá não diz “ai meu Deus, se foi o boi com a corda”. Nesse sentido, já não existem mais sistemas, não existe mais preto no branco, não existe mais metafísica, não existe antroposofia, seichonoiê, revista Nosso Amiguinho, modo de produção asiático ou whatever: tudo é transdisciplinar. Escapa-se da discussão do que seja ou não inter, multi ou pluri-disciplinaridade. Aceita-se que o teu problema requer, invoca outras áreas para que mais se saiba sobre ele, ou para que mais tentativas de respostas sejam alcançadas. Agora tudo é quantitativo. O que fazer, para onde ir? Quais os ganhos? Como não esterilizar este potencial conceito pela visão de que pessoas de diferentes credos e idiosincrassias, crenças, afetos, se devam reunir e aportar sua contribuição? Por que não reconhecer o valor da quebra da disciplinaridade como uma queda adãmica secular, em vez de interpretá-la como ‘coisa coletiva de pessoas que querem trocar’ tribal e afetivamente. Ou seja, as coisas são assim mas poderiam ser diferentes. E se fossem diferentes. Apenas intuo que pode ser muito bom e diferente.

Pergunta: obrigado pela entrevista.
Funderburger: de nada.


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