Wednesday, December 18, 2013

Uma Fada no Front


O jovem Braga

Muita gente não sabe, mas Rubem Braga, foi, durante quatro meses, redator do jornal Correio do Povo, de Porto Alegre.

Mais do que isso, o certamente maior cronista brasileiro (sempre levando em consideração que essas duas palavras, se não nasceram juntas, andam de mãos dadas) de todos os tempos manteve, nesse mesmo período de tempo, uma crônica diária na Folha da Tarde.

Quando o jovem escritor desceu do Lóide Brasileiro no Cais do Porto, nos primeiros dias de 1939, ele já tinha uma imensa folha corrida de serviços prestados à causa jornalística, em jornal do Rio, São Paulo, Minas e Pernambuco.

Sempre coerente em suas convicções políticas - de esquerda, embora não militante, Braga sempre fazia o arquétipico papel do defensor dos fracos e oprimidos, sempre estando do lado do mais fraco na hora de destilar sua verve no papel – não sem mesmo destilar, quando reclama ou cobra dos superiores, um pouco do seu simpático mau-humor.

Suas posições políticas no entanto, paquidermicamente incomodavam muita gente - ainda mais quando virou redator do semanário Diretrizes, de Samuel Wainer. Já sob a égide do Estado Novo, Braga era alvo da polícia secreta de Getúlio Vargas. Foi acossado pela ditadura que ele resolveu exilar-se no sul.

Mais precisamente em nosso curioso burgo açoriano, como diria Carlos Reverbel que foi quem recebeu nosso herói no cais.

(um parêntese: imagine você morar numa cidade onde os viajantes chegavam de paquete ou navio, e você ia recepcioná-los no cais. Imagine, Porto Alegre foi uma cidade legal)

Ao chegar no entanto, a polícia gaúcha havia recebido ordens de Filinto Miller para meter nosso intrépido cronista no xilindró.

Com a ajuda do dono do Correio, Breno Caldas perante o interventor do Estado, Cordeiro de Farias, o jornalista foi solto. Já em liberdade, Caldas convidou-o para integrar o quadro da extinta Companhia Jornalística Caldas Júnior.

O exílio de Rubem em Porto Alegre, uma quadra de relativo conforto em meio aos atribulados anos políticos do autor, durou quatro meses e 91 crônicas (publicadas na recém inaugurada Folha da Tarde). Uma rescolta desse material foi publicado, em 1994, num volume intitulado Uma Fada No Front*.

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Livro pouco conhecido, se comparado à maioria da obra do jornalista capixaba, ele tem uma peculiaridade: ao serem publicadas seriadamente, respectivamente datadas e em ordem de publicação, elas fogem à linguagem perene das conhecidas coletâneas do autor de O Conde e o Passarinho.

Aqui, a produção do velho Braga está inserido num contexto cronológico e local, já que o cronista glosa o mote das ruas da cidade de uma Porto Alegre bucólica e provinciana que se urbanizava, se industrializava e crescia para o céu (como mancheteia a primeira edição da Folha, de 1936), no final dos anos 30 e começo dos 40.

Mais do que isso, o material de Uma Fada no Front, quem sabe pela primeira vez, mostra Rubem Braga como cronista diário, e não como num conjunto homogêneo de crônicas cujo contexto reside na sua própria estética particular.

No livro, podemos ver a prosa de Rubem singrando uma sequência de fatos, travando conhecimento dos pequenos dramas e demandas do burgo açoriano de seu amigo, Carlos Reverbel e encontramos seu inconfundível estilo em textos que, a rigor, a não ser pelo valor histórico, não seriam destacados para uma coletânea.

Por coincidência, Braga chega às vésperas da Segunda Guerra Mundial, e o reflexo na comunidade tanto de Porto Alegre quanto do Vale dos Sinos é visível em textos como “Coloninho” “Fora do Barulho” “Guerra” e “Arianismo”. Ao mesmo tempo, ele explora esse paradoxo, amalgamando a vida do cotidiano com as notícias do front europeu, sempre com o apelo à paz, em sua nota humanista.

(mais um parêntese: cabe ressaltar que a Folha da Tarde, à época, sob influência da imprensa portenha, foi o primeiro a usar teletipos por aqui**, ou seja, havia uma espécie de comprometimento maior por parte do material factual em detrimento do meramente político, que era a tônica da imprensa porto-alegrense até o Estado Novo)

Contudo, a mais bela crônica do livro é, justamente, “Uma Fada no Front”, que reproduzo aqui:

Desta vez a primavera chegou no começo de setembro às ruas de Porto Alegre. Aí anda florindo pelas ruas batidas de sol, em marchas e cantos. É doce afastar os olhos das negras notícias que os jornais trazem da Velha Europa, é doce desligar o rádio de ondas curtas cheio de palavras de ódio e de mortes e simplesmente sair pela rua, pela nossa rua brasileira onde desfilam meninos, rapazes e moças. Em um escuro minuto do mundo estamos vivendo nesta cidade uma bela e mansa alvorada humana. Há uma ingenuidade matinal nessa festa de gente moça de uma terra moça. É um prazer puro ficar numa beira de calçada vendo esse desfile de rapazes e meninos de todas as raças, de lindas moças que avançam tão felizes no ritmo de sua marcha como se a marcha fosse uma dança simples e sincera. 

Ora, no meio dessas festas de Semana da Pátria eu quero pedir ao homem da rua de Porto Alegre que deixe um momento de acompanhar com os olhos o alegre desfile para contemplar com respeito e amizade essa figura modesta de mulher que faz e renova todo o milagre anti-geográfico da união nacional: a professora pública. Agora que tanta festa se faz com archotes e piras em simbolismos gregos eu quero lembrar essa figura humilde que, silenciosamente, em cada canto perdido do Brasil, vai passando, através dos tempos, para as mãos das gerações que amanhecem, todo o fogo e toda a luz do sentimento brasileiro. É uma fada burocrática, uma fada cotidiana, sempre mal-remunerada, uma fada que se integra na banalidade de nossa paisagem da classe média. Por isso mesmo nem a notamos. É, entretanto, uma fada – e é, hoje, sobretudo no Rio Grande do Sul, uma fada no front.

Trata-se de um front sentimental; mas não são os fronts sentimentais que marcam as linhas dos outros. Não se trata, sesse país de muitas terras e pouca gente, de conquistar terras, mas conquistar gentes; e gente só se conquista pelo coração. É gente de nossa terra que essa lutadora está conquistando para a nossa terra. Quando a sua mão passa, ternamente, pela cabeça áspera de um pretinho ou na cabecinha macia de um menino louro, ela está semeando compreensão para as nossas colheitas de ideal. 

Não está ensinando geografia, nem leitura, nem aritmética; está ensinando Brasil.
Recebida, tantas vezes, com prevenção em uma ou outra zona colonial, ela tem de ser, muitas vezes, dentro do Brasil, uma espécie de consulesa do Brasil. 

E Roma não perderia o seu império se o seu império tivesse sido confiado, ao invés de a rudes cônsules guerreiros, a essas suabilíssimas consulesas. E que mesmo quando não seja um prodígio de consulesas. É que mesmo quando não seja um prodígio de cultura pedagógica ou de Inteligência, ela tem, para se orientar, o instinto fundamental de água mansa, de ave lépida, de suave sombra, de árvore boa, de praia preguiçosa e de animal generoso: o instinto d ternura da mulher brasileira. 

Ternura há em todo o mundo e em todo o mundo há mulheres cheias de ternura. Mas cada ternura tem o seu jeito; e é o jeito da ternura brasileira que a fada burocrata vai ensinando.

Pais e mães de meninos do Rio Grande: ajudem essa missionária do Brasil. Aqueles dentre vocês que não são brasileiros, não tenham medo de que seus filhos se tornem brasileiros. Isso não os afastará de vocês, porque ser brasileiro não afasta um homem de nenhum outro homem do mundo. Ser brasileiro é apenas o jeito da gente do Brasil ser humana. Não pensem que, aprendendo a amar esse Brasil tão grande, seus filhos não terão mais espaço no peito para amar também a terra de vocês. Terão sim. Quem aprende a amar uma terra tão grande não sente necessidade em amar, de uma vez, a terra inteira.

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À despeito da pauta sempre vinculada às notícias da Folha, como doação de verba à obras de caridade, construções da Prefeitura, cartas de leitoras aspirantes à poetas, a crônica “Um Clube” alude à fundação da primeira Escola Superior de Jornalismo, no Rio. Não sem ironia, Braga diz que teria “muito a aprender” no curso, porém, entendia que a sobrecarga de trabalho em jornal não lhe franquearia tempo para estudar.

- Não aprendi a fazer muita coisa em jornal e pelo fato simples de que estava trabalhando – diz.

E arremata:

-- Mas o pior é que esses doutores terão como lente os “rábulas” atuais”...

Noutra crônica, ele comenta a respeito do clássico “Um Rio Imita o Reno”, do Viana Moog (que fora editorialista do Correio por breve tempo) achando-o romance de tese demais. Noutra, ele questiona Erico Verissimo, se é possível viver só de literatura. Braga diz que não, e que o autor de “Caminhos Cruzados” é apenas exceção.

(parêntese: é fato, naquele momento exato, Verissimo gozava de extrema popularidade, após o lançamento de “Olhai os Lírios do Campo”, que esgotava sucessivas edições, e compelia os ávidos leitores à outras obras do autor que, por sua vez, até então, à muito custo desencalhavam da gráfica da Globo)

A crônica mais divertida, no entanto, em minha opinião, é “Belém Velho”. Nela, o Braga descreve o dia na fazenda que foi a sua vigileatura pelo arrabalde de Porto Alegre, no bairro de mesmo nome:

- Eu me demorei a contemplar um bode branco que meditava na brisa serena que lhe beijava a barriga – revela.

Rubem diz que o convite partiu do escritor e colaborador do Correio do Povo, Telmo Vergara. Descreve a paisagem do bairro desde a vista do telhado do Hospital Belém que, naquele tempo, era um sanatório, tendo à frente do Dr. Oscar Pereira:

- Vimos de longe Itapuã – revela. – a paisagem é tão ampla e linda que dá ao mesmo tempo vontade de viver e de saltar para a morte, no suave abismo que o vento ondeia.

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Uma Fada no Front saiu originalmente em 1994, mas logo esgotou. Não chegou a ter distribuição nacional, porquanto a Artes e Ofícios é uma editora radicada no sul. Porém, em 2002, a Record o relançou, com o subtítulo "Um episódio em Porto Alegre". Edição esta que está em catálogo e vale muito a pena ler.





NOTAS:
  

* BRAGA, Rubem, Uma Fada no Front. Artes e Ofícios, Porto Alegre,  1994

** RUDIGER. Francisco. Tendências do Jornalismo. EDUFRGS, Porto Alegre, 2002.




 

 

Tuesday, December 17, 2013

O Vampiro do Andaraí


Machado de Assis



Me causou espanto a palestra do professor José Antônio Pasta Jr, a respeito da Metafísica em Machado de Assis. Fazendo um irretocável retrato dos personagens do autor, ele se referiu ao Conselheiro Aires como um “vampiro”.

Vejamos. Procurei em Créméné: Vampiro é um ser mitológico ou folclórico que sobrevive se alimentando da essência de vida criaturas vivas (...), independentemente de ser um morto-vivo ou uma pessoa viva (Mythologie du Vampire, p. 89). Resolvi enveredar pelo lado metafórico, e é possível encontrar a expressão com uma certa conotação moderna ligada à política.

Mas não me serve. Até que descobri o conceito de vampirismo psíquico. Embora não seja um fato reconhecido vamos dizer assim, cientificamente como tal, um psicólogo chamado Albert J. Bernstein, no livro Emotional Vampires se refere ao fenômeno como um parasitismo anímico. Ou seja, pessoas cuja influência exaurem a virtude emocional de outrem.

Aires é um diplomata em idade provecta, aposentado e que retorna à Corte, para sua casa, no Andaraí. Veja o leitor que nada é gratuito. O professor Pasta falou em vampiros ao se referir ao conselheiro. Pois fui eu cá pesquisar e descobri que, pela  etimologia a palavra “andara-y” vem do indígena, e significa, pasme: “rio dos morcegos”. Com vocês, o Vampiro do Andaraí.

Ele entra em contato com o casal Aguiar participa sempre dos serões que sempre acontecem na casa deles. É ele quem enfeixa toda a trama de situações que ocorrem à roda desse círculo de amizades, e volta e meia, faz seus excusos à sua irmã, Rita.

Na verdade, fiquei com a idéia fixa de “vampiro” na mente à repassar o livro na memória, de forma a aceitar a tese. E já vejo alguma consistência. O que deve chamar a atenção daquele que lê o enredo é que o Memorial de Aires tem uma atmosfera rarefeita, cheirando a velas e coroas de orquídeas. Toda a ação dos personagens não esconde um elemento que paira no ar, que tem sempre algo de fúnebre, de fenecido.

O romance começa no São João Batista, onde Aires revê os antepassados e conhece Fidélia. No meio do livro, todos vão felizes ao cemitério em ocasião do Dia de Finados. Por fim, a morte do pai da viúva e do corretor Miranda. Fora isso, os aguiares não têm filhos, Fidélia é uma viúva solteira e Aires também é um viúvo sem filhos (Machado naquela altura também o é, e isso não pode passar desapercebido do leitor).

Se aceitarmos a tese do vampirismo de Aires, a história perde aquele ar de romantismo decadentista em favor de uma nota humorística. Até porque somos tomados pela ternura do casal Aguiar e pela devoção dos dois à singela Fidélia, num romance onde todos parecem pios exemplos de dignidade (com exceção da linguaruda da D. Cesária). Aires poderia entrar no rol, mas a verdade é que ele destila o seu fel em alguns momentos em que se encontra à sós com o papel (como ele se refere ao seu manuscrito, nos diários).

Em outras palavras, pegando o mote do vampiro, o conselheiro é, com efeito, um secador. Ele tem atração pela bela viuvinha – a despeito do mórbido paradoxo de que ela em vida se encontra ligada ao defunto, inclusive usando um camafeu com a foto dele (do defunto) e guardando o luto agressivamente em suas vestes inclusive.

Desde o começo, é essa figura ainda desconhecida dele que o liga ao clã dos Aguiar. Tanto que, com a partida do paquete com ela e Tristão, o Memorial termina (às vésperas da República onde, aliás, começa boa parte da ação de Esaú e Jacó). No mais, ele vive em função de enfeixar as atribulações dos personagens que o cercam nesse núcleo, bancando o histriônico às avessas.

O vampiro Aires só quer sugar o íntimo do que se passa aos personagens, supondo coisas, coletando fofocas. O que lhe distrai é o consolo dos aguiares, em adotarem Fidélia e terem em retorno à Corte do jovem Tristão, vindo da Europa.

Como são isentos de filhos, os dois completam a família postiça do casal, que vive de novo tendo-os em seu regaço, retendo os dois com mimos e ternuras.

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A despeito do vampirismo do Aires, cabe ressaltar que o Memorial é, também, uma reflexão de Machado sobre si mesmo (saudade de si, como ele fala na última frase do livro), um painel de memórias onde o personagem do autor se fragmenta nas vozes do romance e se transforma nas pessoas reais de Dona Carmo e Aguiar, uma representação literária do venturoso casal Assis.

A segunda parte da história nos mostra o distraído idílio entre Tristão e Fidélia, união improvável do filho pródigo postiço que foge para além-mar e a eterna Penélope, a viúva Aguiar, que cose todas as noites a mortalha do seu falecido marido, e cujo amor e devoção pós mortem (que pode porventura impacientar o leitor) parece inexpugnável como as pedras do cais Pharoux.

Tristão, nome de personagem da famosa tragédia transformada em drama musical por Richard Wagner, artista de predileção do autor de Iaiá Garcia e que também ele, Tristão, sabe espargir a música do mestre alemão nas teclas do piano nos serões dos Aguiar. O estouvado jovem acaba, tão distraída quanto necessariamente buscando os braços da viúva porém honesta Fidélia.

O Machado velho está no idílio dos Aguiar assim como, de certa forma, está jovem também na paixão de Tristão e (quase escrevi Isolda, ato falho, caro leitor) Fidéia. O Bruxo veio de um casamento improvável, quando conhece a irmã de seu compadre, Faustino Xavier de Novais, Carolina. Ela, culta, inteligente, madura e mais velha, assim como acontecera com o pai do chato do Brás Cubas, conheceu o jovem escritor num dos serões promovidos por seu amigo.

Improvável porque, como se sabe, o Bruxo do Cosme Velho era de família humilde, mulato; a família dela foi contra, exceto Faustino. E o consórcio se deu à revelia dos pais dela, como ocorrera com o primeiro casamento da viúva com o primeiro marido.

Aires, aposentado e solteiro, mal disfarçando (se ele dissimula aos seus pares no romance, não passa desapercebido ao leitor), deseja a triste e bela enlutada jovem, acredita que ela esqueça o morto.
Até que a jovem se apaixona por Tristão.


O conselheiro, que até concebia o amor eterno dela por seu respectivo marido, cujo túmulo visitava amiúde, agora assistia aos arrufos de viúva com Tristão. Em vão, sadicamente torce pelo defunto.

No fim, os dois perdem: Aires perde a sua Isolda que, por sua vez, enterra o marido duas vezes: a segunda, pois, simbólica mas não menos definitiva.

Se a partida de Tristão e Fidélia surpreende a todos (menos Aires, que fica sabendo antes, por intermédio daquele), ao leitor, salvo engano, isso não passaria desapercebido. No amor, não existem culpados. Ou, como na célebre frase do livro: "basta amar para escolher bem; o diabo que fosse era sempre boa escolha".

Vamos e venhamos: seria egoísmo de D. Carmo querer retê-los na Corte apenas por eles dois, sendo que à Tristão lhe aguardava a aurora de uma carreira política em Portugal e, quanto à Fidélia, era jovem demais para morrer só e aos poucos, sendo amorosamente vampirizada por Aires e, de certa forma, amorosamente por seus pais postiços. Como fazem os pais de verdade. Honni soit que mal y pense.

Aires se apercebe disso, e racionaliza: “se os mortos vão depressa, os velhos se vão mais depressa ainda, viva a mocidade!”

Campos não me entendeu, nem logo, nem completamente. Tive então de lhe dizer que aludia ao marido defunto, e aos dois velhos deixados pelos dois moços, e concluí que a mocidade tem o direito de viver e amar, e separar-se alegremente do extinto e do caduco. Não
concordou, — o que mostra que ainda não me entendeu completamente (MACHADO DE ASSIS, 1975, p 217)


Nessa amarga reflexão, o vampiro Aires entende Aguiar e D. Carmo como um casal de mortos vivos (e, sem titubear, bota o mesmo chapéu), vivendo, no cabo de seus dias, a pior morte de amor, pior que a de Tristão e Isolda: a irremediável solidão a dois.

Moral da história (se é que tem alguma moral): Jovens, não envelheçam, apenas vivam.




NOTAS

ASSIS, Machado de. Memorial de Aires. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975, 219 p

http://portalgeo.rio.rj.gov.br/bairroscariocas/index_bairro.htm. Acessado em 17/12/2013

Monday, December 16, 2013

Pequeno Príncipe e o Ponto-de-vista da Morte


Aquarela de Saint-Exupèry

Final de novembro: uma turma de RRPP da Fabico promoveu um projeto em conjunto com o Dacom, como exercício de uma cadeira da faculdade. O evento, naturalmente, era para o público interno. Então houve várias atrações, como palestras, exposições, e uma troca de livros.
Como eu tinha alguns que queria me desfazer, entre eles, o Terra dos Homens*, que eu tenho em duplicata. Comprei duas vezes achando que havia perdido o primeiro, e logo que comprei o segundo, achei o antigo. Como o evento durou um dia só, eu acabei voltando para casa com a duplicata.
Por uma casualidade, comentei o fato (do tal livro em duplicata) a um amigo, expliquei-lhe como era a história (memórias do escritor quando ele era piloto do correio francês na linha Toulouse-Marrocos pela Aeropostale) e ele quis saber mais sobre a obra (parêntese: o livro já foi comentado neste blog, tempos atrás).
Eu então não pensei duas vezes. Perguntei: "quer o livro?". Resposta positiva, mandei pelo correio (coincidência, não?) o volume (bem difícil de encontrar nos sebos da vida, aliás).
Porém nesse processo, passei os olhos no volume, e fiquei pensando teorias a respeito de duas coisas: uma é como a experiência como piloto e a convivência com as pessoas e o ambiente do norte da África que ele descreve nas suas memórias é o pano de fundo vital do Pequeno Príncipe. Ele escreveu a fábula tendo aquela ambiente, aquelas pessoas, a flora e a fauna.
A fauna aparece na figura da mortal cascavel que mata o principezinho. E a raposinha do deserto, animal resistente e pertinaz, que sobrevive entre a falta de víveres, o calor dos dias e o frio das noites.
A raposa, e aí me lembro das aulas, é o outro na história. É aí que eu elaboro a minha "teoria" sobre a outra coisa: o Pequeno Príncipe, de certa forma, é a fábula de uma pessoa com crise de identidade porém, de certa forma, lúcida a respeito dessa crise. E a história perfaz todo o processo de individuação desse sujeito.

O que é uma fábula? (um parêntese Mas daí ocorre uma confusão, porque existem dois narradores que se fundem, onde o aviador que é o centro da representação, mas que é central porque é a partir dele que vemos os demais e é por ele que conhecemos os outros personagens. Depois ele se torna o apresentador do Príncipe, ao passo que aquele se torna o interlocutor do seu guia, e guarda tudo o que o menino lhe conta.
Esse é o núcleo da narração do autor, e todos os desdobramentos que ocorrem a partir do uso desse expediente. )

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A fábula, como nos explica a Online Encyclopedia é uma aglomeração de composições literárias em que os personagens são animais que apresentam características humanas, ao que chamaríamos prosopopéia. No caso do livro do Exupèry, é uma fábula num sentido mais amplo, já que o caráter didático do conto demonstra possuir uma dimensão bem mais ampla.
O elemento didático aqui assume, por exemplo, fumos de denúncia contra a forma como o próprio ser humano perde o senso de transcendência ao longo da vida, principalmente quando se torna adulto, e deveria abrir-se para o amor, mas abre-se, segundo o autor, para o desencanto, a vaidade e a hipocrisia.
Por isso o protesto bem-humorado de Saint-Exupery ao destratar o próprio amigo na dedicatória: À Leon Werth quando ele era pequenino”. Ou seja, quando ele cresceu, virou apenas mais um grande canalha como todos nós.

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Sem rodeios, pode-se dizer que O Pequeno Príncipe nasce da crise de identidade de um personagem, que não se reconhece num mundo onde o indivíduo é submetido a um contexto humano que tende ao isolamento, à solidão e a despersonalização. Enfim, como na metáfora que o autor usa no final de Terra dos Homens, sobre a metafórica transformação do ser humano em inertes figuras de barro, por conta de sua progressiva despersonalização diante do mundo e das coisas (note-se que é um tema recorrente em Exupery).
Uma crise é com relação ao outro; a segunda crise é o fato de que ele é um ser egoísta, e que não tem consciência de um sentimento amplo de alteridade. No entanto, ele sabe que é preciso empreender uma demanda. A primeira delas é entender esse processo de despersonalização do mundo e das pessoas.



Nessa busca, ele encontra alguém, um outro. Sobre o outro, uso a acepção de um conhecido linguista **; que explica o termo em seu caráter psicanalítico, buscando o entendimento no campo da linguística: aquela voz social ou individual recalcada e que é preciso desentranhar para que se conheça o outro lado da verdade.



E é nessa outra pessoa (ou nos planos em que gravitam o Personagem (o ponto-de-vista *** do narrador Exupèry, em seus desdobramentos, o aviador e o príncipe) que ele estabelece os diálogos, encontra um estranhamento e, por fim, pode desvendar essa voz social ou individual com vista a saber o outro lado da verdade.
Como se sabe, ele então descobre o amor em sua consumação mais profunda; agora tem uma visão de mundo mais ampla, possui uma consciência ampla de si, de sua finalidade. Esse processo, de certa forma, lhe é traumático, obrigando-o a renascer como ser humano
Quando ele descobre o amor, ele entende a relação adversa dele com a Rosa, descobre que cada um tem a sua individualidade e, por fim, ele consegue enxergar além de si e amá-la como ela é e, de certa forma, entender todas as pessoas como elas são, em última análise (a despeito do caráter de denúncia da fábula, ao apontar, pelo risível, defeitos e contradições de seus interlocutores. de forma caricatural e grotesca).
Nesse plano, não existe alteridade, busca, reconhecimento ou jogo de espelho, mas uma lente distorcida ou deformada onde o menino rebelde se insurge contra o simbólico do outro no campo social: essa deformação vê tudo de pernas para o ar. Aqui, de forma intrusiva, ele quer decifrar esse simbólico, decifrar o enigma.
Enfim, por um plano, ele vai pelo viés da busca do reconhecimento; no outro, ele visa um deslocamento, uma insubordinação contra a ordem instituída.


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O narrador, porém, ao invés de descortinar o era-uma-vez diante dos olhos do leitor, ele perfaz isso no plano da memória.
Por isso, eu acredito que o Exupery fale de forma apócrifa de uma experiência extrema de uma separação definitiva****, e a reconstrução e elaboração dessa perda. Nesse ponto, os planos convergem: a memória é a reconstituição de algo que está morto. O Pequeno Príncipe é uma história onde tudo está morto: todos estão mortos e o narrador pranteia essa morte pelo discurso da memorização e (Barthes, para variar)
É uma fábula que revela um discurso sobre a construção do discurso amoroso sobre algo que não existe mais, no plano da morte - mas, no caso do conto, a questão fica em aberto, já que o leitor não sabe se o principezinho realmente morreu ou partiu para sempre.
O fenômeno é que o Exupery, de maneira hábil, consegue conduzir o leitor a se reconhecer nessa mesma dúvida que desencadeia o processo psicológico do Pequeno Príncipe, projetar-se nessa mesma demanda e, por fim, se reconhecer no percurso dessa inefável auto-descoberta.
Existe um desencanto do mundo, a partir do estranhamento do mundo, e a dispersão da identidade do Personagem; este carrega então cegamente esse espelho aos pedaços pelo mundo, como um cego.
Quem lhe restitui o entendimento, o espelho e a sua visão é a Raposa. Quando ela diz`ao príncipe que a Rosa é única no mundo, esse movimento catártico permite que ele se reconheça, possa identificar o outro e ver a si mesmo novamente.
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Não se assuste o leitor porém, ao ver-me aguar o pagode do blog (sempre relacionado, como se sabe, a amenidades) com essa crônica que virou paródia de ensaio acadêmico. Apenas quero mostrar que a teoria literária nos permite ver (e consequentemente ler) além do senso comum que, no caso deste famoso volume, há muito tempo já rotulou, execrou, denegriu, simplificou, ridicularizou e lançou este pequeno e simpático clássico da literatura mundial na danação do fogo de Hades.
Por fim, mostrar como o estudo da literatura nos apresente essas veleidades. Como se sabe (e Freud já explicava nos oráculos, há 200 séculos atrás), nenhuma fábula é inocente. Não as subestimemos pois, como diria Nelson Rodrigues, elas também guardam lá as suas devidas (amargas) verdades fundamentais...



NOTAS

* Antoine de Saint-Exupèry, Terra dos Homens, Editora do Autor, tradução de Rubem Braga, Rio de Janeiro, 1962

** Afonso Romano de Sant'anna. paródia, paráfrase e cia. Ática, 2001

*** Num conhecido ensaio sobre João SImões Lopes Neto e seu Blau Nunes, Flávio Loureiro Chaves cita o autor Percy Lubbock que concebeu a teoria do ponto-de-vista. Para este, há diversas vozes ao narrar. O leitor, por sua vez, só conhece o que sabe o narrador intercalado na história ou a personagem que conta os eventos ou, ainda, a personagem principal que conta a história na primeira pessoa. Porém, nesse conceito, não se deve confundir "ponto-de-vista" com foco narrativo: o que existe é uma polifonia de personagens que perfazem um mesmo eixo. No Pequeno Príncipe, eles podem ser o aviador (narrador e protagonista) e o menino (interlocutor e protagonista da narração do protagonista)

**** Aqui entendo que, asim como o pano de fundo da história é de raiz autoral, a inspiração da narrativa (que me salvem os biógrafos) também o é

Tuesday, November 26, 2013

Quintanadas


O poeta em seu quarto de hotel

Por causa de um exame de seleção de mestrado, tive que ler Mário Quintana. Não havia indicação de livro - poderia ser apenas uma antologia poética. Porém, como na maioria dos autores relacionados, eu acabei indo além. No caso do poeta alegretense, eu peguei várias obras. Entre elas, um livrinho despretencioso, chamado Ora Bolas - O Humor Cotidiano de Mário Quintana.

Lançado pela Artes e Ofícios, em 1994 (ano da morte do autor), a obra é uma espécie de anedotário contando episódios que se enfeixam pelo viés picaresco do biografado. Embora fragmentário, no todo o livro evoca perfeitamente a figura do autor de Rua dos Cataventos.

O que chama a atenção é que, pelo menos para este que escreve, se a intenção deste volume é o de fazer o leitor rir, o efeito, de certa forma, acaba sendo o inverso. Como se sabe, Quintana tinha aquela imagem do poeta pachola, simpático, imagem que pode ser resumida naquela famosa foto onde ele posa sentado placidamente entre as casinholas de porta e janela da Travessa dos Venezianos, em Porto Alegre. Aquele é o mito de Quintana: o homem simples, lúcido, pacífico, hábil com as palavras, sempre falando em ruas fatigadas e anjos.

Peguei o Ora Bolas com a intenção pura e simples de cifrar essa impressão, tendo ao meu redor obras como o Apontamentos de História Sobrenatural ou o Caderno H, que é uma forma muito pessoal e original de Quintana em destilar a sua prosa poética.

O livro, como se sabe, caiu de maduro: Mário Quintana era um ótimo personagem de anedotário. Alguém sempre tinha uma história curiosa do poeta para contar. No entanto, depois de ler a coletânea do Juarez Fonseca (me admira eu não ter lido antes, ou seja, leio com vinte anos de atraso) eu descobri um outro Quintana.

Na maioria das histórias, o autor de A Vaca e o Hipógrifo se mostra uma pessoa extremamente arredia, avessa à expor sua biografia, ou seja, quase um misantropo. Claro que é possível observar o seu humor típico de anedota, com tiradas desconcertantes; porém, na maioria das vezes, a rescolta de historietas mostra Quintana sendo impaciente com o trato com as pessoas, e um tanto sombrio.

Ao mesmo tempo, dá para perceber que Mário nos deve uma biografia, sempre negada. Poeta de reconhecimento tardio, temos à mente sua imagem de velhinho sorridente e peripatético pelas ruas de Porto Alegre. Deve causar surpresa ao ilustre leitor que existe um hiato entre sua história desde o retorno à Porto Alegre (ele passou um tempo na antiga Capital Federal, depois de uma primeira estada em nosso burgo açoriano) e a consagração com o lançamento da Antologia Poética, em 1966.

Aliás, episódio que carece à biografia de Mário Quintana é a de que ele é, de fato, um pioneiro na tradução aqui no Brasil, muito antes disso virar quase que uma profissão, franqueada pelas faculdades de Letras. Quem leu o Um Certo Henrique Bertaso, do Erico Verissimo, deve se lembrar: aquela turma da Globo da Rua da Praia estava fazendo história quando traduzia, pela primeira vez, coisas como Platão, a Poética do Aristóteles, até Conrad, Proust, Huxley e afins.

Quintana, muito antes de ser poeta oficialmente, era tradutor - e sem dicionário, como ele mesmo dizia. Mário teve que aprender inglês à força, e aprendeu, até que traduziu Virgínia Woolf. Essa luz sobre o Mário tradutor, é algo que rende muito em matéria de pesquisa acadêmica, e que é, de certa forma, meio subestimada.

Do que se sabe, ele teve uma vida um tanto estouvada por lá, e sérios problemas com a bebida, fato que o afastou de muita gente (diz-se que o seu colega de Província de São Pedro (a revista da Globo) e Correio do Povo, Carlos Reverbel, tinha reservas com relação à Quintana por conta disso).

Sua dependência era crônica (ele bebeu até os 40 anos), a ponto de o poeta ter que internar-se na Pinel, em meados dos anos 50. Daí se depreende que aquela divertida fala arrevezada do escritor do Caderno H era, de certa forma, um atavismo de cachaceiro?


....


Enfim, essas histórias, e o próprio chiste sombrio de suas tiradas cáusticas revelam o inverso do insigne versajador, e o pouco que o Ora Bolas exibe (já que a obra não se quer como uma biografia do autor mas, em última análise, acaba sendo) mostra um Mário surpreendente - pelo menos, para quem o conhecia pelos livros.

Como aquela vez em que Mário viu o então jovem Luiz de Miranda, sem vintém e honestamente morto de fome, e prometeu levá-lo para jantar onde ele podia "pedir o que quisesse". Levou-o ao bandejão do Correio do Povo, onde o único prato era o feito.

Ou a vez em que falou a alguém, reclamando da Mafalda Verissimo. A esposa do Erico, vendo o poeta tão mal vestido e vivendo sozinho, tinha mania de fazer meias de lâ para Quintana. Mário, farto dos mimos, desabafou: "ela deve pensar que eu sou uma centopéia".

Ou das inúmeras vezes em que Quintana dava entrevistas para as normalistas do Instituto de Educação (ele odiava gente que lhe procurava para entrevistas), em plena redação do Correio. Sem paciência para responder sempre às mesmas perguntas, ele variava: "seu Mário, qual o senhor acha que é o grande problema da solidão". Resposta: "o grande problema da solidão, minha filha, é preservá-la".

"Seu Mário, por que o senhor nunca se casou". Resposta: " porque as mulheres são muito perguntadeiras". "Seu Mário, o que o senhor acha do Céu?". Resposta: "Olha minha filha, deve ser muito chato. Porque lá tem os chatos de todos os séculos. Aqui é melhor, porque a gente tem que aguentar só os chatos da geração da gente".

Ou aquela vez que o professor Donaldo Shuller foi à redação do Correio agradecer à Quintana por uma citação no Caderno H. Resposta do poeta: "hum, já que você veio me agradecer, acho que já me arrependi".

Também tem aquela vez em que Mário estava placidamente em sua mesa, no Correio. Eis que, debaixo de bruta chuva, irrompe um rapaz, de gabardina, todo ensopado, se apresenta e diz: "seu Mário, vim trocar umas idéias com o senhor". Resposta de Quintana: "Não aceito! Vou sair perdendo".

E a do poeta bageense que queria distribuir na capital dos gaúchos um volume seu, de edição pessoal, e que tinha um préfacio - justamente - de nosso heroi. Eis:

A vida me ensinou que a gente só gosta de quem é parecido com a gente. Lendo os versos de ..........., vejo que somos muito diferentes. Talvez esteja aí o seu grande valor.

Mário Quintana




Mas o melhor do mau humor (esse seria um bom nome para o Ora Bolas) foi uma polêmica entre o autor e James Amado, na própria (e mítica) Província de São Pedro. Num artigo, o irmão do escritor Jorge criticou o que ele entendia como lirismo água morna de Quintana, e o fato de que ele não era um poeta engajado, entre coisas tais.

Naquele tempo - idos dos anos 40, muito antes do advento das patrulhas ideológicas, já se cobrava engajamento político de todo e qualquer intelectual brasileiro (o supracitado Erico era outro alvo desse tipo de crítica).

Na edição seguinte, Mário rebateu, implacável:

Li com espanto e apreço o ensaio que V. remeteu para a Província de São Pedro e no qual tem a bondade de avisar-me de que tomei o bonde errado em poesia. Apressei-me então em ver o que têm feito os poetas que, segundo V. tomaram o bonde certo. Eis don Pablo Neruda; publica ele, numa revista nossa, uma ode à senhora mãe de Luís Carlos Prestes; abro outra revista e surge-me o senhor Camilo Jesus, com um poema "para Anita Leocádia", filhinha do senhor Luís Carlos Prestes. Desconsolo-me. Vejo que cheguei tarde, muito tarde. Agora, só me restam as tias do senhor Luís Carlos Prestes..."


Moral da história (em sua ótica, naturalmente): uma boa causa nunca vai salvar um mau poeta.

Thursday, November 14, 2013

Beatles no Ar!


John, Paul, George e Ringo, chegando para mais uma sessão na BBC


Depois de 15 anos do lançamento da primeira compilação, a Apple lança o material restante das sessões de gravação que os Beatles realizaram para a BBC de Londres: On Air—Live at the BBC Volume 2.

As gravações, reunidas em dois CDs, chegaram às lojas na última segunda (11) com alguma divulgação. Ao todo, o quarteto participou de 52 programas produzidos pela emissora estatal britânica, entre 1962 e 1965. A maior parte das aparições dos Fab ocorreu nos programas Saturday Club e Pop Go The Beatles, em 1963 e 64. De certa forma, a visibilidade franqueada pelos microfones da BBC foi um passo importante para pavimentar o caminho da banda ao sucesso.

Por outro lado, o contrato com a Beeb (como seus ouvintes a chamam) também estimulou John, George, Paul e Ringo a ensaiar consideravelmente: todos os programas eram gravados ao vivo e, para preencher a parte musical de suas participações, eles se viam obrigados a fazer algo que suas apresentações regulares ao vivo não permitia: revolcar muito do velho repertório do grupo. Coisas do tempo em que eles realmente precisavam ser ecléticos, amalgamando tanto standards de Elvis Presley dos velhos tempos da Sun, como I'm Gonna Sit Right Down And Cry Over You, I Got a Woman ou I Forgot to Remember to Forget (dava para ver que os Beatles sempre apostavam nos lados B do Rei) ou coisas do Tim Pan Alley, como Beautiful Dreamer (não exatamente Tim Pam, mas uma canção do Stephen Forster do século XIX, numa tenebrosa versão ieieiê), Honeymoon Song (lembram de Falling in Love Again ou Red Rails in the Sunset?) ou Till There Was You (essa depois definitivamente integrada ao repertório dos Beatles).

Muitos fãs da banda só travaram contato com esses tapes quando do lançamento da primeira coletânea, intitulada Live at The BBC, lançada em 1994. Fato é que praticamente todo essa material era conhecido dos bootlegers (colecionadores de discos pirata, não oficiais, de artistas em geral) desde o começo dos anos 70. A febre do bootleg apareceu a partir do fim dos anos 60 e cresceu bastante nos anos 70, até o advento do CD.

No caso dos Beatles e a BBC, alguns colecionadores explicam que os tapes das sessões da rádio inglesa já eram prensados ilegalmente desde o disco Yellow Matter Custard. Pertencente à era paleolítica da pirataria, esse é um dos elepês mais raros para colecionadores. Muitas versões de discos feitos com gravações da BBC, no entanto, eram de péssima qualidade, contrastando com outros, com ótima qualidade. Estes, com efeito, eram prensados com matrizes oriundas de rolos oriundos dos próprios arquivos da BBC.

Fato é que, de 1973 a 1994, todos os programas dos Beatles na BBC foram lançados em discos pirata, e das formas mais variadas. A mais célebre, contudo, é a Beatles at the Beeb. Como acontece com a maioria delas, a origem dos masters e a produção é apócrifa. No entanto, a qualidade das edições e o lay-out de capa de cada um deles era de primorosa qualidade. Quem é do tempo deve se lembrar: nunca houve um momento - pelo menos na história da discografia pirata beatle, de se disponibilizar material alternativo do quarteto de forma tão interessante.

O único ponto "negativo" é o excesso de diálogos e a intromissão de artistas que sequer tinham algo a ver com os Beatles (como Bobby Vee). Por sinal, é sabido que a Beeb possui rolos e mais rolos de outros artistas/cantores em seus arquivos. Por exemplo, não se sabe por que os programas dos Rolling Stones nunca saíram oficialmente.

Além disso, o estado de conservação e gravação desses tapes era muito boa a despeito de se tratar de material de qualidade inferior aos discos oficiais. Por isso, muitos colecionadores imaginavam que uma edição oficial possibilitaria ter acesso à produção dos Beatles na BBC em qualidade impecável. No entanto, após ouvirmos o Lve at The BBC, o que se viu foi apenas a masterização daqueles mesmos tapes. O que dava a volta por cima foi o fato de que, a partir de então, os fãs poderiam travar conhecimento com um lado escuro da banda, interpretando muitas canções que ficaram de fora dos álbuns oficiais - além de mostrar o amor eterno de John, Paul, George e Ringo pelo R&B americano, numa época em que os americanos haviam enterrado o rock and roll (como Lennon fala na entrevista à Rolling Stone, em 1970).

Pois bem: vinte anos depois, a Apple desembarca o derradeiro lote de canções da BBC. Dessa vez, restaram covers em sua maioria; ou seja, não existe muita novidade. A não ser a inclusão de Lend Me Your Comb - que não saiu em 1994 mas foi listada inexplicavelmente no CD 1 do Anthology 1. Outra foi a aparição de I'm Talkin' Bout You. Cover de Chuck Berry, por conta da precariedade da gravação, ela foi deixada de fora do original Live at the BBC por conta do impoluto Sir George Martin, que a achou com péssima qualidade de gravação. Já o cover dos Beatles, por sua vez, é excelente (e melhor que a dos Stones!).

O que faltou dessa vez foi uma outra versão de I Got to Find My Baby (melhor que a apresentada no CD de 94) e uma segunda versão (mais rápida) de A Shot of a Rhythm'n Blues. Destaque para outro cover de Sure to Fall, uma versão de Roll Over Beethoven bem centrada, com a bateria "fechada" e Sir Paul (do tempo em que ele tinha voz, e que voz!) berrando o clássico de Chan Romero (e grande pedida dos tempos do Cavern) The Hippy Hippy Shake.




O curioso é que, na época da aparição da primeira coletânea, a potoca que haviam criado era a de que alguém havia "encontrado tapes esquecidos dos Beatles na BBC" - quiçá com o objetivo de transformar o lançamento em fato novo. Na verdade, requentando aqueles tapes que, por sinal, não eram esquecidos de maneira alguma: a BBC tem horas e horas de programas com artistas pop gravados e em boa qualidade (diferente do que acontece no Brasil, por exemplo, onde se fazia palimpesto de rolos e cartucheiras de rádio). A bola da vez foi fazer uma base de dados em cima de possíveis gravações realizadas porventura por ouvintes da Beeb. Na verdade, não vá se iludir: todo esse material está preservado na BBC de Londres. Aliás, sempre esteve.

Para quem nunca ouviu, fica a lição de como esses quatro sujeitos, a despeito de todas as limitações (deles como músicos, e de estúdio, sem falar de instrumentos), conseguiam ensaiar e tocar direitinho ao vivo, e ainda conseguiam transmitir charme e segurança em suas interpretações. John Lennon - naquela mesma entrevista supracitada à Rolling Stone, havia dito que as melhores performances ao vivo dos Beatles não foram gravadas. Bem, pelo menos, do rol de bootlegs ao vivo da banda, os dois discos dos Fab na BBC de Londres dão uma idéia do que era assistir a uma meia horinha de programa de rádio com esses quatro caras legais.

Thursday, October 17, 2013

Uma Biografia contra o Ostracismo


A Capa

Não tinha intenção de tocar no assunto da querela das biografias no Brasil. E nem irei, pronto.

Mas me lembrei de um fato interessante sobre esse assunto polêmico, e que serve mais como um depoimento pessoal do que uma opinião abalizada e sincera sobre o assunto, mas talvez o meu tiro saia pela culatra (espero que sim). A impressão é que estão desqualificando aqueles que defendem a produção desse tipo de gênero literário que, alás, e mais antigo que vocês pensam. Lembram-se das Vidas Paralelas, do Plutarco? Pois então. Mas não era bem isso o que eu queria dizer.

Eis o que eu quero dizer: para vocês terem uma pequena idéia da importância da produção e da publicação de biografias: lançado em 1994, O Anjo Pornográfico (Ruy Castro, Companhia das Letras) foi, a um só tempo, capaz de recuperar a memória do maior dramaturgo brasileiro de todos os tempos e provocar o interesse pela (então subestimadíssima e desconhecida do grande público leitor) obra jornalística do autor de Vestido de Noiva.

Aliás, a bibliografia do Nelson Rodrigues, lançada de forma esparsa e em tiragens pequenas, inverossímeis de tão liliputianas, estava esgotada há mais de vinte anos. Me lembro de caçar um exemplar de A Cabra Vadia, seleção de crônicas dele, nos sebos de Porto Alegre. Não encontrando, tive que xerocar uma edição que estava na Biblioteca do SESC (ainda deve estar lá) ver, ilustre leitor: de repente, havia apenas o Nelson dramaturgo.

Imaginem que o Nelson tinha pelo menos uns quatro livros publicados só de crônicas, e tudo estava esgotado. Ele morreu em 1980 e viveu um esquecimento de uma década e meia. E, hoje, toda a sua fortuna crítica recente, todos os estudos literários em nome dele, tudo isso aconteceu porque O Anjo Pornográfico foi publicado. De repente, descobriram que o Nelson dramaturgo está no mesmo nível do Nelson jornalista; que o Nelson cronista estava injustamente apartado do panteão dos grandes criadores do gênero no Brasil.

Sem contar que quem teve a oportunidade de ler as suas memórias, reunidas num livro chamado A Menina Sem Estrela, descobriu, pálido de espanto, como no soneto, que o autor de Vestido de Noiva tinha uma vida romanesca e tão trágica quanto seus contos e peças. Além disso, havia o carisma do próprio Nelson ao longo da biografia do Ruy Castro. Depois de ler a última linha, acredito que todo mundo queria ler toda a obra desse "autor desconhecido". Quando O Anjo saiu, em 1994, Nelson estava no ostracismo até nas provas de vestibulares.

Tudo isso e mais: a descoberta dos folhetins, contos, romances, memórias, confissões e crônicas esportivas tanto de Nelson Rodrigues, tudo foi por causa desse livro. Isso sem me perder aqui em digressões a respeito da consequente redescoberta do espólio literário de seu irmão, o também genial Homero do futebol brasileiro, Mário Filho.

Tudo, tudo isso só foi possível por causa de O Anjo Pornográfico. Esse foi o primeiro livro que eu li na faculdade (lembro-me da professora Eliana mandando a gente resenhar o livro e ninguém a fim de ler o livro, ah, maldito primeiro semestre!), minha primeira resenha e mote para a minha monografia de conclusão de curso em Jornalismo, em 2000.

Thursday, October 10, 2013

Contracapa para Verdi


O compositor na época de Rigoletto



Certa vez, Giuseppe Verdi disse que a posteridade iria esquecer sua obra. Para o compositor, no máximo, iriam lembrar-se de algum coral, de alguma ária ou algum trecho orquestral.

Em parte ele tinha razão: dezenas de peças de sua autoria vivem na memória musical de todo mundo até hoje, mesmo que a maioria dos ouvintes sequer aprecie o canto lírico. Um exemplo é a ária "La Donna É Mobile", da ópera Rigoletto, que foi popularizada pelos maiores tenores do século passado e, volta e meia, é usado pela publicidade em geral.

Pois a maioria das pessoas que conhece essa ária hoje certamente não conhece a sua história e muito menos o que representou Verdi para a política e a cultura italiana no século XIX.

Apesar de ser herói nacional italiano hoje, quando o teatro La Fenice encomendou-lhe uma nova ópera, no começo de 1850, Verdi era um artista jovem de uma Itália que ainda não existia: estava repartida em vários estados, muitos deles subjulgados à estados estrangeiros. Essa situação adversa fez com que o sentimento irredentista aflorase.

Naquele tempo, Veneza sofria censura dos austríacos que, por conta do Congresso de Viena, dominavam Vêneto e a Lombardia desde 1815). Alguns movimentos revolucionários se insurgiam contra o Império, mas a filosofia política do Ressorgimento ainda engatinhava.

Por conta disso, toda a produção cultural das regiões dominadas pela Áustria passavam pela censura do Império. Mesmo que a Itália ainda fosse uma colcha de retalhos, essa produção cultural unia os seus povos pela literatura: livros, peças, tudo ganhava conotação política.

Na música, isso não seria diferente: quando Verdi compôs Nabucco, em 1842, a situação adversa do hebreus diante do cativeiro babilônico era, na verdade, uma mensagem cifrada; uma metáfora do domínio estrangeiro na península. Com o tempo, os censores austríacos passaram a fiscalizar toda a produção cultural dos estados subjulgados.


Ora, quando Verdi escolheu O Rei se Diverte, de Victor, Hugo para transformá-la em argumento para a sua mais novo ópera, ele sabia que a peça tinha todos os ingredientes para desagradar tanto a igreja quanto aos governantes austríacos, que dominavam a cidade naquele tempo.

A peça, que foi censurada na França) era um retrato sem retoques de uma corte falida, viciada, corrompida, cortesãs dissolutas e nobres pervertidos. No centro, havia Treboulet, um bobo-da-corte amoral que ridicularizava a tudo e a todos, e era mais feio por dentro que por fora. Semeia vento, aponta gente inocente para enganar, esposas para roubar. No fim, ele seria vítima do próprio veneno que inoculava.

Para driblar a censura, Verdi confiou o libreto (o texto da ópera) para Francesco Piave, que tirou o "rei" da peça, cujo tempo foi recuado para o século XVI. Francisco I da história original virou o Duque de Mântua, e Treboulet se tornou Rigoletto. Piave havia dado à ópera o nome de La Maledizione, mas Verdi demoveu seu libretista desse título: a Igreja iria proibir qualquer nome que fizesse menções à superstições e sortilégios.

Experiente, sabendo da encrenca que poderia se meter com um argumento explosivo, Verdi primeiro sublimou tudo o que escandalizara crítica e público em Victor Hugo. Num segundo momento, passou a trabalhar a música de forma a pôr as partes vocais em primeiro plano.

Hoje isso passa batido, mas o compositor queria fazer literatura de rés do chão, muito antes do realismo de Puccini e Leoncavalo: um realista antes do realismo. Afinal, a Itália dividida da época exigia algo além de idealizações e de mitologias. Ao mesmo tempo, queria fazer arte vocal, de gosto popular, ou seja, fazer concessões ao público naquilo que deveria ser acessível: nada de wagnerianismos. "Ópera é ópera", escreveu, certa feita.

Já para os momentos sombrios da história, Verdi colocava música alegre e ligeira. Aliás, fez isso o tempo todo, como se travestisse uma ópera-bufa (gênero que ele se debruçara apenas duas vezes em toda a sua careira) em fumos de tragédia.

Rigoletto estreou na Quaresma de 1851, no dia 11 de março da quele ano. "La Donna È Mobile", onde o Duque zomba do lado volúvel da alma feminina, ganhou ares de canção popular. De quebra, se tornaria o primeiro sucesso mundial de Verdi.

Se formos pensar nesse lado, Verdi tinha razão e sabia o porquê: suas árias, e isso ele aprendeu com Rossini, precisavam conquistar o coração do público. Mas, por outra, em parte, ele errou feio; mesmo depois de 200 anos de seu nascimento, em 10 de outubro de 1813, em Busseto, Itália, praticamente todas as suas ópera s estão no repertório das grandes orquestras em todo o planeta.

Sunday, October 06, 2013

Leco Alves - Os Anjos Dizem Amém (1999)


O Leco Alves era meu primo. Sempre fomos muitos ligados, até porque a diferença de idade era de um pouco mais de um ano. Nos criamos em uma família muito musical, na qual um tio-avô, o Lelo (Telêmaco Machado), era um boêmio inveterado. Lelo passeava de bar em bar na noite porto-alegrense com sua viola a tiracolo. Em família, os tios Dinho (Carlos Alfredo), Cabeça (Renato) e Banana (José Roberto) sempre tocavam músicas em seu violão. As tias Neiva e Noedi eram as principais cantoras, mas todos cantavam e participavam fazendo percussão de alguma forma, fosse na geladeira, numa panela ou até mesmo transformando uma garrafa de Fanta em reco-reco. Foi nesse meio que o Leco aprendeu a gostar de música, assim como eu, mas foi quando ele entrou para o CLJ (Curso de Liderança Juvenil), na Igreja Sagrada Família, é que ele resolveu aprender a tocar violão.



No início, o Leco parecia o Juca Chaves cantando, com uma voz miúda e um tanto tímido. Mas as "apresentações" na igreja, durante a missa, foram liberando o Leco das travas musicais. Fez cursos de canto e em determinado dia decidiu que seria músico. Sempre teve o apoio da família, principalmente dos pais, Neíta e Adair, seu primeiro público. Aos poucos, nas reuniões de família, desbancou os tios e acabou incentivando que outros primos tocassem violão. 


De uma hora para outra, Leco começou a cantar em bares, fazer apresentações em teatros, tocar nas rádios e, quando se deu conta, Porto Alegre ficou pequena para seu talento crescente. O Rio de Janeiro foi a cidade escolhida por ele para alcançar a fama. Ao chegar à Cidade Maravilhosa foi logo comparado a Nei Matogrosso pelo seu timbre de voz, repertório e até por seus trejeitos no palco. Mas quis o destino que ele não completasse a trilha que tinha planejado. Em uma tempestade de verão que assolou o Rio em Janeiro de 1998, Leco faleceu quando uma árvore caiu sobre o orelhão onde telefonava para avisar que chegaria tarde ao show marcado em Niterói, já que as barcas não estavam funcionando por causa da tormenta. Abaixo, segue um resumo da carreira, que retirei do Blog do Gringgo.


DISCO 1
01. Eu e meu violão (Leco Alves)
02. Os anjos dizem amém (Leco Alves)
03. Você passou (Leco Alves)
04. Coração com muros / Quién fuera (Silvio Rodrigues, versão: Leco Alves)
05. Beaucoup plus (Leco Alves, versão: Crika Amorim)
06. The best (Leco Alves)
07. Tudo em "p" (Jorge Nóbrega e Ângelo Delatre)
08. Sou Rio (Leco Alves)
09. Um gato (Adriana Calcanhoto)
10. Platinum blonde (Jussi Campello)
11. Objeto baby (Eduardo Dusek)
12. Sem camisa (Eduardo Dusek e Luis Carlos Góes)
13. Gás lacrimogênio (Cláudio Goldmann)
14. Serventês (Arthur de Faria, Peire Cardenal e Augusto de Campos), com Cida Moreira
15. Balada por Monk (Antonio Villeroy)
16. Frevo mulher (Zé Ramalho)


DISCO 2
01. Pacto (Leco Alves)
02. Copacabana (Jusi Campello)
03. De frente pro mar (Leco Alves)
04. Saudades de mim (Leco Alves)
05. Feito um picolé no sol (Nico Nicolayewsky)
06. O vento do desejo (Leco Alves)
07. Os dias (Leco Alves)
08. Delicadinho (Leco Alves)
09. Menino Deus (Caetano Veloso)
10. Máscara (Leco Alves), com Ju Cassou
11. Quando eu me apaixonar (Leco Alves)
12. Quando você não me procura (Leco Alves e João Pinheiro), com Ju Cassou
13. Façamos amor também (Cole Porter, versão: Carlos Renó), com Ju Cassou
14. O último dia (Celso Fonseca e Billy Brandão)



Convidadas: Cida Moreira e Ju Cassou
Participações: Marcelo Delacroix, Frank Solari, Simone Rasslan, Giovanni Berti, Rogério Piva, Arthur de Faria e Nico Nicolayewsky.

Compositor. Cantor. Instrumentista. Dono de um raro registro vocal de contratenor, iniciou sua carreira artística em 1986, cantando no bar Opinião (Porto Alegre, RS). No ano seguinte, apresentou-se no Teatro Mágico e no Orange Bar (Porto Alegre, RS). Ainda em 1987, apresentou-se, como convidado de Adriana Calcanhoto, Muni e Luciana Costa, no show "Enquanto seu lobo não vem", na reabertura do bar Porto de Elis (Porto Alegre, RS). Em 1989, realizou o show "Porque o sol dava nos trilhos", no Teatro de Câmara de Porto Alegre, que o colocou entre as Revelações do Ano. Apresentou, também no bar Porto de Elis, o show voz e violão "Alguém cantando". Em 1990, realizou, também no Porto de Elis, o show "Caetanear o que há de bom", interpretando músicas de Caetano Veloso. Apresentou-se, ainda, com "Primavera de pragas" no Teatro de Câmara de Porto Alegre, além de ter atuado nos projetos "Encontros insólitos" e "Compor canta Porto Alegre". Em 1992, foi contemplado na categoria de Melhor Cantor com o Prêmio Açorianos de Música, espécie de Prêmio Sharp gaúcho, conferido pela Secretaria Municipal da Cultura da Prefeitura de Porto Alegre, por seu show "Paixões a granel", realizado no Teatro Renascença, em que interpretou canções de cabaré. Ainda nesse ano, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde apresentou seu show "Passos de ilusão", realizado na casa noturna People, marcando sua estréia na cidade. Nessa época, começou sua carreira de compositor. Em 1993, esteve em Porto Alegre participando do projeto "Fim de tarde", realizado na Sala Radamés Gnatalli, do Auditório Araújo Vianna, além de apresentar-se no Publicitá Café. De volta ao Rio de Janeiro, continuou seu circuito de shows em casas noturnas como Mistura Fina, Le Streghe e Au Bar (RJ), entre outras, tendo voltado a Porto Alegre, em 1995, para apresentar o show "Dez punhais". Engajado em movimentos contra a discriminação dos portadores do vírus da Aids, atuava com sua música em eventos promovidos por entidades que lutam contra a doença. Faleceu em 1998, pouco antes de completar 32 anos de idade, vítima de um acidente provocado pela queda de uma árvore que desabou sobre ele em um dia de temporal no Rio de Janeiro, quando se dirigia para uma apresentação no Bay Market, em Niterói (RJ). Em 1999, ocorreu o lançamento póstumo de seu CD duplo "Os anjos dizem amém", trabalho que reuniu músicas próprias e de outros compositores, gravadas em estúdios de Porto Alegre e do Rio de Janeiro, assim como gravações ao vivo de shows realizados em casas de espetáculos cariocas. O lançamento do disco foi realizado na Casa de Cultura Laura Alvim (RJ).

Monday, August 26, 2013

Retrato Sem Retoque


Bob Dylan


Menos de um ano do lançamento de Tempest, a Sony põe no mercado o título mais recente da série Bootleg Series do Bob Dylan. Another Self Portrait é o quadragésimo-quinto álbum de carreira do compositor norte-americano e, como o próprio nome diz, é um apanhado de sobras de estúdio gravadas entre 1969 e 1971 - um dos períodos mais prolíficos em matéria de produção musical do autor de Blowin' in The Wind.

Na verdade, é de se pensar que, compreendendo a proximidade das sessões de gravação de Nashville Skyline, New Morning e a de setembro de 1971, com Happy Traum, a fim de gravar o lado 4 do Greatest Hits 2, tudo parece fazer parte de um mesmo contexto. Dylan gravou dezenas de canções, segundo ele, para compensar o fato de que muitos achavam-no descansado demais depois do acidente de moto que interrompeu sua carreira nos palcos, em 1966.

Tirando a sessão de 71, todo o resto foi produzido por Bob Johnston, o sujeito que melhor soube traduzir o que o compositor tinha em mente quando ele entrava em estúdio. Isso desde quando, contra a determinação de Al Grossman, ele levou Dylan para gravar com músicos de Nashvile para deslanchar o Blonde on Blonde. A partir dali, nasceram o John Wesley Harding e o Nashville Skyline.

Deste último, havia sobrado muito material - incluindo o encontro de Bob com Johnny Cash que, por sinal, ainda permanece inédito oficialmente. No começo de 1970, agora em Nova Iorque, ele grava muita coisa para o que seria o disco New Morning. O material produzido não era satisfatório; contudo, devido à pressão da gravadora (ainda mais por conta do lançamento de discos pirata de tapes do próprio Dylan aparecendo no mercado negro), e dada a quantidade de canções gravadas e mixadas, surgiu a idéia de lançar Self Portrait.

O álbum, que veio à lume em meados de 1970, era um camoniano monstrengo, a começar pela capa - uma pintura feita às pressas pelo próprio Dylan. A concepção era a de um disco conceitual, (ou a paródia de, ou a paródia da paródia de) na tentativa de, a partir das faixas dispostas, emprestar a elas um certo contexto.

Self Portrait dividiu a crítica e o público pela inconsistência e insidioso ecletismo das músicas ou a escolha de covers como Let it Be Me e Blue Moon. Isso embora haja momentos interessantíssimos, como a sua versão para I Forgot You More, das Davis Sisters ou a bela Wigwam.

Dylan partiu em defesa do seu rebento, assim como a CBS, alegando que ele estava sendo crucificado apenas por causa dele. "se fosse os Everly Brothers ou Elvis, haveria bem menos gente chocada com isso", justificou na época.

No fim, New Morning saiu em outubro daquele mesmo ano, e foi mais bem recebido do que seu antecessor. Muitos, aliás, até alegando que esta, sim, estaria dentro da "linha evolutiva" que Dylan vinha pavimentando desde o Highway 61 Revisited. Os detratores acharam que este disco fora lançado para pôr "panos quentes" à bazófia em torno de Self Portrait. Dylan novamente se explicou, alegando que o lançamento de New Morning já estava previamente agendado.

Pois este disco, o Another Self Portrait, é uma espécie de crônica daqueles dias em forma de música. Ele também mostra que havia tanto material gravado quanto alguma certa dificuldade em dar vazão à ele. Comparando e confrontando as sobras do Botleg Series com os respectivos álbuns oficiais da época, é possível chegar a várias conjecturas.
Uma é que o Nashville Skyline poderia ser um disco maior. A outra é que as primeiras sessões do New Morning não foram tão improdutivas como se pensa. E outra é que, como aconteceria em outros momentos na carreira dele, Dylan tinha um coelho na cartola e acabou tirando outro.

Da mesma forma como ele gravou quase que duas vezes o Blood on the Tracks, o New Morning que se insurge no Another Self Portrait se mostra diverso daquele que se conhece. Por exemplo, a versão que ficou de fora de If Dogs Run Free é menos beatnik que a oficial. Time Passes Slowly soa menos improvisada que a original. E algumas faixas, como Alberta, Spanish is the Loving Tongue (ainda mais se comparada com o arranjo habanera do elepê de 73) e Days of 49 ficam melhores em versão stripped, isto é, sem uma banda inteira junto.

Como se pode acompanhar desde o primeiro Bootge Series, muita coisa muito boa ficou de fora daqueles discos, como uma ótima gravação de Only a Hobo (da sessão de 71, com Traum no mandolim), Ministrel Boy,outra sobra dos mitológicos Basement Tapes e Thristy Boots e These Hands, entre outros. Vendo a quantidade de material excelente e o que foi lançado no Self Portrait, é certo que era possível, na época, produzir algo mais "consistente" no lugar do disco duplo de 1970.

Claro que essa é apenas uma teoria, mas a impressão que fica é que o material apócrifo tinha uma linguagem mais próxima do Dylan convencional. No momento de selecionar as canções, ele fez a sua escolha. Em muitos casos é claro que foi na mosca, como em If Not For You - cuja versão do Another não se compara ao arranjo comercial da que todos conhecem.

Tudo isso sem contar com a apresentação completa de Bob Dylan com a The Band na Ilha de Wight, em 31 de agosto de 1969. Outra material que, não se sabe o porquê, levou tanto tempo para aparecer em formato oficial> O show, que dura pouco mais de uma hora, tem momentos muito bons, como ele ao violão entoando Wild Mountain Theme, uma versão adorável de I'll Be Your Baby Tonight e Minstrel Boy com a The Band, dando uma vaga idéia do que foi a alquimia musical em Woodstock, naquela casa cor-de-rosa...


Bob Dylan - The Bootleg Series Vol. 10 – Another Self Portrait (1969–1971)
Lançamento Columbia Sony

Saturday, June 08, 2013

Trinta Anos Esta Noite


O compacto


Primeiro compacto que eu comprei na vida não era de alguma grande banda de classic rock. Foi o do Ritche, tinha Menina Veneno e Voo de Coração - há exatos 30 anos.

O curioso nisso tudo é que ele se tornou rapidamente um sucesso gigantesco de vendas, bem no começo do BRock, mas que teve uma carreira mainstream meio efêmera.

Lembro de ter o disco nas minhas coisas por muito tempo e confesso dizer que eu passei a nutrir um insidioso desprezo por ele. Posso até dizer que eu tinha vergonha de possuir o álbum e, certa feita, não pensei duas vezes quando uma tia me pediu emprestado: "não precisa devolver!", foi o que eu disse.

Nunca fui nostálgico - pelo menos com relação ao rock brasileiro produzido na década de 80.
Por isso, não sei explicar por que motivos eu passei a, em plena era digital, passei a coletar material sobre aquelas bandas (algumas, com efeito, naturalmente continuam na ativa) e, de repente, me despertou o interesse pelo tal disco do Ritchie, mas por uma razão curiosa: sempre entendi que a veneração ao cantor inglês (da terra do Frampton, diga-se d epassagem) radicalizado no Brasil, a partir de 1972, tinha a ver com um perfil de cantor ´pop brasileiro que eu chamaria insdicriminadamente de brega.

Na verdade, sempre entendi o Ritche do Voo de Coração como algo vinculado àquilo que passava nas tardes de sábado no Chacrinha. Era uma veneração de macacas de auditório. Não parecia que existia uma ligação entre ele e o rock que foi produzido naquela época (1983).

Eu, por essas estranhas associações, o entendia como um Carlos Alexandre com um visual moderno e look de artista estrangeiro. Mas, na verdade, nada daquilo me enganava.



Mesmo assim eu assumo que era fã do Ritchie. Não tinha como não ser, pelo menos naquele tempo. Ele pôs todo o disco nas paradas. Clipes e programas sobre ele eram produzidos na TV. Depois do compacto, que eu ganhei no meio do ano, finalmente pus as garras no disco.

Olhando em retrospectiva, hoje, eu noto que minha associação dele com o intérprete de Feiticeira era um tanto exagerada. Mas não há como culpar ninguém; todos eram reféns da produção comercial dos barões da indústria cultural dos anos 80. E, de fato, Ritchie era roqueiro progressivo, com carreira de músico em bandas como o Vímana, que ninguém ouviu (e nem o faz hoje, mesmo com o advento da Internet). Eu não conhecia a trajetória do cara por detrás de uma canção como Menina Veneno.

O curioso é que o primeiro disco dele pode ser incluído na história do rock brasileiro. A começar pela produção e os músicos de estúdio: Mayrton Bahia, Liminha (que ele conheceu com os Mutantes, ainda em Londres), Lobão, Zé Luiz (da Blitz) e Steve Hackett.
A história da produção do primeiro álbum é curiosa. Com essa turma, ele havia gravado uma demo na Warner, que foi parar nas mãos de um executivo da CBS, que queria alguém para concorrer com a já supracitada Blitz. O conteúdo entusiasmou os produtores da gravadora.

O primeiro compacto do disco saiu em fevereiro de 1983. Estourou primeiro no Nordeste, com alguma divulgação, No entanto, para o lançamento do disco, em junho, foi realizada uma campanha publicitária em torno de "A Vida tem Dessas Coisas". Em pouco tempo, o álbum de estréia do ex-Vímana atingia a marca de 700 mil cópias vendidas.

E, de fato, todas as músicas eram legais. De Casanova (que teve clipe produzido pelo Fantástico), Voo de Coração, Casanova, Menina Veneno e Pelo Interfone e Tudo Que Quero, que tem uma melodia genial. E eu sempre viajava quando ele falava, em Voo de Coração, "escrevendo memórias num velho computador", numa época em que os microcomputadores tinham uma tecnologia de cauculadora de bolso Dismac, movida à vela. Se computador de mesa era ainda um luxo, imagine um "velho computador"...

Durante pelo um ano, não s falava em outra coisa a não ser em Ritchie.

Nem o maior cantor da CBS, Roberto Carlos. Sobre isso, Arthur Dapieve conta uma história - espalhada por Tim Maia, de que o cantor foi defenestrado do selo pelo compositor de Detalhes. Em 1983, Roberto vendeu muito menos do que Ritchie que, ainda por cima, amealhou o Troféu Imprensa de melhor cantor do ano. Lembrando que quem sempre ganhava esse prêmio era Roberto Carlos.

Não se sabe a história real, mas a verdade é que o furacão em torno de Ritchie não chegou no segundo disco. Talvez por conta do fato de que era quase impossível superar a marca atingida com o disco de estréia. Ou quem sabe por causa da superexposição do artista. Fato é que, de A Vida Continua em diante, que vendeu pouco mais de 100 mil cópias, nada foi como antes.
Se sentindo abandonado pela CBS, ele pediu a rescisão do contrato com o selo, que ainda previa a gravação de mais um bolachão. No entanto, a gravadora não se importou com o prejuízo. Isso fez com que muitos passassem a acreditar na lenda da puxada de tapete do Rei em Ritchie.



O cantor inglês seguiu a carreira, embora eu já não a acompanhasse. Como eu disse antes, a pecha de cantor das empregadas high-tech engessou a imagem de Ritchie. Suas músicas tocavam em rádios populares, embora ele mesmo fosse capaz de encher o Canecão em três noites seguidas, como o fez.

Creio que o tempo cuidou de assentar as coisas. Mesmo sem a visibilidade de antes, conhecendo o contexto histórico de sua carreira como músico, é possível notar que ele tem uma ligação com o rock e suas vertentes ao longo do tempo. Ou seja, mesmo que estereotipado, Ritchie não virou um Carlos Alexandre. E seu primeiro disco, Voo de Coração trinta anos depois, pode ser considerado um clássico do rock brasileiro.

Até acho vou pedir meu disco do Ritchie de volta para a minha tia.

Vargas e a Gravata Colorada


Getúlio Vargas

O amigo leitor sabe o que é a gravata colorada? Para quem não conhece o termo gauchesco, é como se chamava a degola por aqui, mais ou menos nos tempos da Revolução Federalista, de 1893.

No levante farroupilha houve degolas, mas na Federalista, esse terrível expediente foi largamente utilizado. O historiador Décio Freitas diz que ela foi a mais cruenta de todas as guerras civis no continente sul-americano. Os quase três anos de luta deixaram um saldo de 10 mil mortos.

Um episódio foi exemplares: em Hulha Negra´, a vinte quilômetros de Bagé, mais de 300 homens rendidos foram degolados friamente numa mangueira. O chamado Massacre do Boi Preto lançou o mito do coronel maragato Adão Latorre. Com uma adaga de quinze centímetros, ele foi o executor. Entre as vítimas, estavam o oficial chimango Manoel Pedroso - acusado de ter mandado matar a família de Latorre em Bagé, meses antes.

Quatro meses depois, os Legalistas devolveram o banho de sangue, matando, à base de faca 370 maragatos, capturados numa emboscada, em Palmeira das Missões.

A guerra deixou marcas e um rastro de ódio que levou anos para se apagar, e respingou na outra revolução, a de 23, dos maragatos partidários de Assis Brasil, contra os desmandos do chimango Borges de Medeiros.

Na época, vivia se a era dos coronéis provisórios. Sesmeiros em geral, eles controlavam pequenas comunidades e tinham em séquito de centauros à sua disposição que, na maioria das vezes, lutavam por seus chefes políticos respectivamente, que se dividiam filosoficamente entre os governistas e os oposicionistas, ou seja, entre chimangos e maragatos. Era o atavismo de 93.

Na refrega de 23, mesmo em menor escala, a degola ainda campereava pelos pampas. O famoso coronel provisório Vazulmiro Dutra, de Palmeira das Missões, tinha os pés-no-chão sob sua chefia. Chimango, ele sempre foi acusado por assisistas de ser degolador. Ele, por sua vez, não se importava com a pecha que acabou ganhando. Pior: Dutra inclusive gostava de ser chamado como tal.

Pois numa das viagens do então presidente do Brasil, Getúlio Vargas (isso durante o Estado Novo), alguns coronéis e pecuaristas resolveram homenagear o ditador com um grande churrascada no Country Club. Nessas idas e vindas um tanto fisiológicas, uma década depois, o chefete agora fora nomeado delegado regional do Instituto Nacional do Mate.

Por coincidência, o coronel estava ao lado de Vargas na imponente mesa quando trouxeram o espeto com a costela para servir o presidente. Aproveitando a ocasião, Vazulmiro puxou da cintura um facão enorme, oferecendo-se para servi-lo. Getúlio, ao ver de quem se tratava, fitou o coronel com uma cara marota - que entendeu perfeitamente a brincadeira. E respondeu, entre risos gerais:

- Calma dr. Getúlio, essa faca o senhor não precisa se preocupar não foi usada ainda.










Thursday, June 06, 2013

Morte e Vida Gauchesca


Simões Lopes Neto




Uma colega de trabalho me pediu se eu não tinha o Contos Gauchescos, do Simões Lopes Neto, para emprestar ao filho dela. Eu não apenas cedi a obra para ele como ofereci-lhe o meu já calejado exemplar.

Mesmo que o garoto tenha que ler as páginas do autor de Casos do Romualdo porque ele é sugerido para o Vestibular da UFRGS, é incrível encontrar gente nova conhecendo um autor que remanesceu esquecido por vários anos. Não sei se vocês conhecem a história. Pois bem.

Carlos Reverbel era secretário de redação da revista Província de São Pedro. Editada pela Globo, em 1945, ela foi o pontapé inicial no grande projeto intelectual ao jornalista de Quaraí. Grande pesquisador e memorialista, a partir daquele momento, ele decidiu se debruçar diante de um escritor morto e esquecido, como um Bach dos pampas: o pelotense Simões Lopes Neto.

Junto com Erico Verissimo e Henrique Bertaso, eles decidiram republicar os seus Contos Gauchescos, que havia sido lançado originalmente em 1912, e cujos direitos pertenciam à obscura Enchenique de Pelotas. A editora, por sua vez, havia conseguido os tais direitos da viúva de Lopes e por uma quantia ínfima. A Globo comprou os originais, entregando à Maurício Rosenblatt e a Aurélio Buarque de Hollanda de adicionar uma fortuna crítica e um glossário.

A publicação d'Os Contos, que foram antes reeditados numa edição canhestra, em 1928, ficou tão obscura quanto a primeira. Tanto que a maioria dos estudos regionalistas sobre literatura ficavam, em sua maioria, restritos ainda à obra de Alcides Maya. Mais tarde, depois de amplas negociações com a mulher de Lopes, Reverbel conseguiu os originais dos Casos do Romualdo, também editada pela Globo.

No livro Um Certo Henrique Bertaso, Verissimo conta que o editor da Globo teve um belo gesto: devolveu à viúva de Simões os direitos autorais sobre essa edição do "seu ilustre marido".

Falando na Globo, é interessante ver que, justamente naquele momento da redescoberta do autor pelotense em nossas letras, havia um movimento (que não era orquestrado como tal, mas era algo do tipo), como bem observa Flávio Loureiro Chaves no artigo "As Buscas de Reverbel".

Segundo ele, em 1945, além do Província de São Pedro, o Rio Grande viva um momento "de atualização de atualização da vida cultural: Cyro Martins lançara o ciclo narrativo do Gaúcho à Pé, João Pinto da Silva apresentava a primeira visão histórica da literatura gaúcha. "Augusto Meyer abria uma perspectiva transdisciplinar nos ensaios reunidos em Prosa dos Pagos", Darcy Azambuja concluía a coletânea de contos intitulada No Galpão. E, em 1949, a Globo lançava o primeiro volume da trilogia O Tempo e o Vento.

Falando em Erico, é notável perceber o quanto o personagem Fandango, de O Continente, tem sua persona inspirada no vate que cantam as estradas reais dos Contos de Simões Lopes Neto. Blau, como Fandango, parece ser o gaúcho típico que introduz uma forma peciliar de rapsodo dos pampas: à margem dos acontecimentos, mas sempre com uma ponta de sabedoria em seus ditos. Ora ele é quem conta; ora ele é o personagem. Fandango, com seu estilo de gaúcho largado, com o seu saber empírico de homem do campo e figura coadjuvante em o Continente, não existiria sem Blau Nunes.

À guisa de pósfácio, na edição da Globo de 1945 escreveu o esboço de uma biografia, mais tarde laçada em separado em Um Capitão da Guarda Nacional, de 1981. Ali estava o grande gesto de Carlos Reverbel - e da Globo. Numa curiosa incursão editorial, umas das grandes aventuras típicas de Bertaso e Erico no comando da Globo, que se criou a grande glória póstuma do escritor pelotense, num momento histórico no curso de nossa literatura no ramo regionalista, e isso muito antes do achado de Grande Sertão: Veredas.