Monday, December 16, 2013

Pequeno Príncipe e o Ponto-de-vista da Morte


Aquarela de Saint-Exupèry

Final de novembro: uma turma de RRPP da Fabico promoveu um projeto em conjunto com o Dacom, como exercício de uma cadeira da faculdade. O evento, naturalmente, era para o público interno. Então houve várias atrações, como palestras, exposições, e uma troca de livros.
Como eu tinha alguns que queria me desfazer, entre eles, o Terra dos Homens*, que eu tenho em duplicata. Comprei duas vezes achando que havia perdido o primeiro, e logo que comprei o segundo, achei o antigo. Como o evento durou um dia só, eu acabei voltando para casa com a duplicata.
Por uma casualidade, comentei o fato (do tal livro em duplicata) a um amigo, expliquei-lhe como era a história (memórias do escritor quando ele era piloto do correio francês na linha Toulouse-Marrocos pela Aeropostale) e ele quis saber mais sobre a obra (parêntese: o livro já foi comentado neste blog, tempos atrás).
Eu então não pensei duas vezes. Perguntei: "quer o livro?". Resposta positiva, mandei pelo correio (coincidência, não?) o volume (bem difícil de encontrar nos sebos da vida, aliás).
Porém nesse processo, passei os olhos no volume, e fiquei pensando teorias a respeito de duas coisas: uma é como a experiência como piloto e a convivência com as pessoas e o ambiente do norte da África que ele descreve nas suas memórias é o pano de fundo vital do Pequeno Príncipe. Ele escreveu a fábula tendo aquela ambiente, aquelas pessoas, a flora e a fauna.
A fauna aparece na figura da mortal cascavel que mata o principezinho. E a raposinha do deserto, animal resistente e pertinaz, que sobrevive entre a falta de víveres, o calor dos dias e o frio das noites.
A raposa, e aí me lembro das aulas, é o outro na história. É aí que eu elaboro a minha "teoria" sobre a outra coisa: o Pequeno Príncipe, de certa forma, é a fábula de uma pessoa com crise de identidade porém, de certa forma, lúcida a respeito dessa crise. E a história perfaz todo o processo de individuação desse sujeito.

O que é uma fábula? (um parêntese Mas daí ocorre uma confusão, porque existem dois narradores que se fundem, onde o aviador que é o centro da representação, mas que é central porque é a partir dele que vemos os demais e é por ele que conhecemos os outros personagens. Depois ele se torna o apresentador do Príncipe, ao passo que aquele se torna o interlocutor do seu guia, e guarda tudo o que o menino lhe conta.
Esse é o núcleo da narração do autor, e todos os desdobramentos que ocorrem a partir do uso desse expediente. )

.............................
A fábula, como nos explica a Online Encyclopedia é uma aglomeração de composições literárias em que os personagens são animais que apresentam características humanas, ao que chamaríamos prosopopéia. No caso do livro do Exupèry, é uma fábula num sentido mais amplo, já que o caráter didático do conto demonstra possuir uma dimensão bem mais ampla.
O elemento didático aqui assume, por exemplo, fumos de denúncia contra a forma como o próprio ser humano perde o senso de transcendência ao longo da vida, principalmente quando se torna adulto, e deveria abrir-se para o amor, mas abre-se, segundo o autor, para o desencanto, a vaidade e a hipocrisia.
Por isso o protesto bem-humorado de Saint-Exupery ao destratar o próprio amigo na dedicatória: À Leon Werth quando ele era pequenino”. Ou seja, quando ele cresceu, virou apenas mais um grande canalha como todos nós.

.............................................
Sem rodeios, pode-se dizer que O Pequeno Príncipe nasce da crise de identidade de um personagem, que não se reconhece num mundo onde o indivíduo é submetido a um contexto humano que tende ao isolamento, à solidão e a despersonalização. Enfim, como na metáfora que o autor usa no final de Terra dos Homens, sobre a metafórica transformação do ser humano em inertes figuras de barro, por conta de sua progressiva despersonalização diante do mundo e das coisas (note-se que é um tema recorrente em Exupery).
Uma crise é com relação ao outro; a segunda crise é o fato de que ele é um ser egoísta, e que não tem consciência de um sentimento amplo de alteridade. No entanto, ele sabe que é preciso empreender uma demanda. A primeira delas é entender esse processo de despersonalização do mundo e das pessoas.



Nessa busca, ele encontra alguém, um outro. Sobre o outro, uso a acepção de um conhecido linguista **; que explica o termo em seu caráter psicanalítico, buscando o entendimento no campo da linguística: aquela voz social ou individual recalcada e que é preciso desentranhar para que se conheça o outro lado da verdade.



E é nessa outra pessoa (ou nos planos em que gravitam o Personagem (o ponto-de-vista *** do narrador Exupèry, em seus desdobramentos, o aviador e o príncipe) que ele estabelece os diálogos, encontra um estranhamento e, por fim, pode desvendar essa voz social ou individual com vista a saber o outro lado da verdade.
Como se sabe, ele então descobre o amor em sua consumação mais profunda; agora tem uma visão de mundo mais ampla, possui uma consciência ampla de si, de sua finalidade. Esse processo, de certa forma, lhe é traumático, obrigando-o a renascer como ser humano
Quando ele descobre o amor, ele entende a relação adversa dele com a Rosa, descobre que cada um tem a sua individualidade e, por fim, ele consegue enxergar além de si e amá-la como ela é e, de certa forma, entender todas as pessoas como elas são, em última análise (a despeito do caráter de denúncia da fábula, ao apontar, pelo risível, defeitos e contradições de seus interlocutores. de forma caricatural e grotesca).
Nesse plano, não existe alteridade, busca, reconhecimento ou jogo de espelho, mas uma lente distorcida ou deformada onde o menino rebelde se insurge contra o simbólico do outro no campo social: essa deformação vê tudo de pernas para o ar. Aqui, de forma intrusiva, ele quer decifrar esse simbólico, decifrar o enigma.
Enfim, por um plano, ele vai pelo viés da busca do reconhecimento; no outro, ele visa um deslocamento, uma insubordinação contra a ordem instituída.


---------
O narrador, porém, ao invés de descortinar o era-uma-vez diante dos olhos do leitor, ele perfaz isso no plano da memória.
Por isso, eu acredito que o Exupery fale de forma apócrifa de uma experiência extrema de uma separação definitiva****, e a reconstrução e elaboração dessa perda. Nesse ponto, os planos convergem: a memória é a reconstituição de algo que está morto. O Pequeno Príncipe é uma história onde tudo está morto: todos estão mortos e o narrador pranteia essa morte pelo discurso da memorização e (Barthes, para variar)
É uma fábula que revela um discurso sobre a construção do discurso amoroso sobre algo que não existe mais, no plano da morte - mas, no caso do conto, a questão fica em aberto, já que o leitor não sabe se o principezinho realmente morreu ou partiu para sempre.
O fenômeno é que o Exupery, de maneira hábil, consegue conduzir o leitor a se reconhecer nessa mesma dúvida que desencadeia o processo psicológico do Pequeno Príncipe, projetar-se nessa mesma demanda e, por fim, se reconhecer no percurso dessa inefável auto-descoberta.
Existe um desencanto do mundo, a partir do estranhamento do mundo, e a dispersão da identidade do Personagem; este carrega então cegamente esse espelho aos pedaços pelo mundo, como um cego.
Quem lhe restitui o entendimento, o espelho e a sua visão é a Raposa. Quando ela diz`ao príncipe que a Rosa é única no mundo, esse movimento catártico permite que ele se reconheça, possa identificar o outro e ver a si mesmo novamente.
----------
Não se assuste o leitor porém, ao ver-me aguar o pagode do blog (sempre relacionado, como se sabe, a amenidades) com essa crônica que virou paródia de ensaio acadêmico. Apenas quero mostrar que a teoria literária nos permite ver (e consequentemente ler) além do senso comum que, no caso deste famoso volume, há muito tempo já rotulou, execrou, denegriu, simplificou, ridicularizou e lançou este pequeno e simpático clássico da literatura mundial na danação do fogo de Hades.
Por fim, mostrar como o estudo da literatura nos apresente essas veleidades. Como se sabe (e Freud já explicava nos oráculos, há 200 séculos atrás), nenhuma fábula é inocente. Não as subestimemos pois, como diria Nelson Rodrigues, elas também guardam lá as suas devidas (amargas) verdades fundamentais...



NOTAS

* Antoine de Saint-Exupèry, Terra dos Homens, Editora do Autor, tradução de Rubem Braga, Rio de Janeiro, 1962

** Afonso Romano de Sant'anna. paródia, paráfrase e cia. Ática, 2001

*** Num conhecido ensaio sobre João SImões Lopes Neto e seu Blau Nunes, Flávio Loureiro Chaves cita o autor Percy Lubbock que concebeu a teoria do ponto-de-vista. Para este, há diversas vozes ao narrar. O leitor, por sua vez, só conhece o que sabe o narrador intercalado na história ou a personagem que conta os eventos ou, ainda, a personagem principal que conta a história na primeira pessoa. Porém, nesse conceito, não se deve confundir "ponto-de-vista" com foco narrativo: o que existe é uma polifonia de personagens que perfazem um mesmo eixo. No Pequeno Príncipe, eles podem ser o aviador (narrador e protagonista) e o menino (interlocutor e protagonista da narração do protagonista)

**** Aqui entendo que, asim como o pano de fundo da história é de raiz autoral, a inspiração da narrativa (que me salvem os biógrafos) também o é

No comments: