
Aquarela de Saint-Exupèry
Final
de novembro: uma turma de RRPP da Fabico promoveu um projeto em
conjunto com o Dacom, como exercício de uma cadeira da faculdade. O
evento, naturalmente, era para o público interno. Então houve
várias atrações, como palestras, exposições, e uma troca de livros.
Como
eu tinha alguns que queria me desfazer, entre eles, o Terra
dos Homens*,
que eu tenho em duplicata. Comprei duas vezes achando que havia
perdido o primeiro, e logo que comprei o segundo, achei o antigo.
Como o evento durou um dia só, eu acabei voltando para casa com a
duplicata.
Por
uma casualidade, comentei o fato (do tal livro em duplicata) a um
amigo, expliquei-lhe como era a história (memórias do escritor
quando ele era piloto do correio francês na linha Toulouse-Marrocos
pela Aeropostale) e ele quis saber mais sobre a obra (parêntese: o
livro já foi comentado neste blog, tempos atrás).
Eu
então não pensei duas vezes. Perguntei: "quer o livro?".
Resposta positiva, mandei pelo correio (coincidência, não?) o
volume (bem difícil de encontrar nos sebos da vida, aliás).
Porém
nesse processo, passei os olhos no volume, e fiquei pensando teorias
a respeito de duas coisas: uma é como a experiência como piloto e a
convivência com as pessoas e o ambiente do norte da África que ele
descreve nas suas memórias é o pano de fundo vital do Pequeno
Príncipe.
Ele escreveu a fábula tendo aquela ambiente, aquelas pessoas, a
flora e a fauna.
A
fauna aparece na figura da mortal cascavel que mata o principezinho.
E a raposinha do deserto, animal resistente e pertinaz, que sobrevive
entre a falta de víveres, o calor dos dias e o frio das noites.
A
raposa, e aí me lembro das aulas, é o outro na história. É aí
que eu elaboro a minha "teoria" sobre a outra coisa: o
Pequeno Príncipe, de certa forma, é a fábula de uma pessoa com
crise de identidade porém, de certa forma, lúcida a respeito dessa
crise. E a história perfaz todo o processo de individuação desse
sujeito.
O que é uma fábula? (um parêntese Mas daí ocorre uma confusão, porque existem dois narradores que se fundem, onde o aviador que é o centro da representação, mas que é central porque é a partir dele que vemos os demais e é por ele que conhecemos os outros personagens. Depois ele se torna o apresentador do Príncipe, ao passo que aquele se torna o interlocutor do seu guia, e guarda tudo o que o menino lhe conta.
Esse
é o núcleo da narração do autor, e todos os desdobramentos que
ocorrem a partir do uso desse expediente. )
.............................
A
fábula, como nos explica a Online
Encyclopedia
é
uma aglomeração de composições literárias
em que os personagens são animais que apresentam características
humanas, ao que chamaríamos prosopopéia. No caso do livro do
Exupèry, é uma fábula num sentido mais amplo, já que o caráter
didático do conto demonstra possuir uma dimensão bem mais ampla.
O
elemento didático aqui assume, por exemplo, fumos de denúncia
contra a forma como o próprio ser humano perde o senso de
transcendência ao longo da vida, principalmente quando se torna
adulto, e deveria abrir-se para o amor, mas abre-se, segundo o autor,
para o desencanto, a vaidade e a hipocrisia.
Por
isso o protesto bem-humorado de Saint-Exupery ao destratar o próprio
amigo na dedicatória: À Leon Werth quando ele era pequenino”. Ou
seja, quando ele cresceu, virou apenas mais um grande canalha como
todos nós.
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Sem
rodeios, pode-se dizer que O
Pequeno Príncipe
nasce
da crise de identidade de um personagem, que não se reconhece num
mundo onde o indivíduo é submetido a um contexto humano que tende
ao isolamento, à solidão e a despersonalização. Enfim, como na
metáfora que o autor usa no final de Terra
dos Homens,
sobre a metafórica transformação do ser humano em inertes figuras
de barro, por conta de sua progressiva despersonalização diante do
mundo e das coisas (note-se que é um tema recorrente em Exupery).
Uma
crise
é
com relação ao outro; a segunda crise é o fato de que ele é um
ser egoísta, e que não tem consciência de um sentimento amplo de
alteridade. No entanto, ele sabe que é preciso empreender uma
demanda. A primeira delas é entender esse processo de
despersonalização do mundo e das pessoas.
Nessa
busca, ele encontra alguém, um outro.
Sobre o outro,
uso
a acepção de um conhecido linguista **; que explica o termo em seu
caráter psicanalítico, buscando o entendimento no campo da
linguística: aquela voz social ou individual recalcada e que é
preciso desentranhar
para que se conheça o outro lado da verdade.
E
é nessa outra pessoa (ou nos planos em que gravitam o Personagem (o
ponto-de-vista
***
do narrador Exupèry, em seus desdobramentos, o aviador e o príncipe)
que ele estabelece os diálogos, encontra um estranhamento e, por
fim, pode desvendar essa voz social ou individual com vista a saber o
outro lado da verdade.
Como
se sabe, ele então descobre o amor em sua consumação mais
profunda; agora tem uma visão de mundo mais ampla, possui uma
consciência ampla de si, de sua finalidade. Esse processo, de certa
forma, lhe é traumático, obrigando-o a renascer como ser humano
Quando
ele descobre o amor, ele entende a relação adversa dele com a Rosa,
descobre que cada um tem a sua individualidade e, por fim, ele
consegue enxergar além de si e amá-la como ela é e, de certa
forma, entender todas as pessoas como elas são, em última análise
(a despeito do caráter de denúncia
da
fábula, ao apontar, pelo risível, defeitos e contradições de seus
interlocutores. de forma caricatural e grotesca).
Nesse
plano, não existe alteridade, busca, reconhecimento ou jogo de
espelho, mas uma lente distorcida ou deformada onde o menino rebelde
se insurge contra o simbólico do outro
no
campo social: essa deformação vê tudo de pernas para o ar. Aqui,
de forma intrusiva, ele quer decifrar esse simbólico, decifrar o
enigma.
Enfim,
por um plano, ele vai pelo viés da busca do reconhecimento; no
outro, ele visa um deslocamento, uma insubordinação contra a ordem
instituída.
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O
narrador, porém, ao invés de descortinar o era-uma-vez diante dos
olhos do leitor, ele perfaz isso no plano da memória.
Por
isso, eu acredito que o Exupery fale de forma apócrifa de uma
experiência extrema de uma separação definitiva****, e a
reconstrução e elaboração dessa perda. Nesse ponto, os planos
convergem: a memória é a reconstituição de algo que está morto.
O Pequeno Príncipe é uma história onde tudo está morto: todos
estão mortos e o narrador pranteia essa morte pelo discurso da
memorização e (Barthes, para variar)
É
uma fábula que revela um discurso sobre a construção do discurso
amoroso sobre algo que não existe mais, no plano da morte - mas, no
caso do conto, a questão fica em aberto, já que o leitor não sabe
se o principezinho realmente morreu ou partiu para sempre.
O
fenômeno é que o Exupery, de maneira hábil, consegue conduzir o
leitor a se reconhecer nessa mesma dúvida que desencadeia o processo
psicológico do Pequeno Príncipe, projetar-se nessa mesma demanda e,
por fim, se reconhecer no percurso dessa inefável auto-descoberta.
Existe
um desencanto do mundo, a partir do estranhamento do mundo, e a
dispersão da identidade do Personagem; este carrega então cegamente
esse espelho aos pedaços pelo mundo, como um cego.
Quem
lhe restitui o entendimento, o espelho e a sua visão é a Raposa.
Quando ela diz`ao príncipe que a Rosa é única no mundo, esse
movimento catártico permite que ele se reconheça, possa identificar
o outro
e
ver a si mesmo novamente.
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Não
se assuste o leitor porém, ao ver-me aguar
o pagode
do
blog (sempre relacionado, como se sabe, a amenidades) com essa
crônica que virou paródia de ensaio acadêmico. Apenas quero
mostrar que a teoria literária nos permite ver (e consequentemente
ler) além do senso comum que, no caso deste famoso volume, há muito
tempo já rotulou, execrou, denegriu, simplificou, ridicularizou e
lançou este pequeno e simpático clássico da literatura mundial na
danação do fogo de Hades.
Por
fim, mostrar como o estudo da literatura nos apresente essas
veleidades. Como se sabe (e Freud já explicava nos oráculos, há
200 séculos atrás), nenhuma fábula é inocente. Não as
subestimemos pois, como diria Nelson Rodrigues, elas também guardam
lá as suas devidas (amargas) verdades fundamentais...
NOTAS
* Antoine de Saint-Exupèry, Terra dos Homens, Editora do Autor, tradução de Rubem Braga, Rio de Janeiro, 1962
** Afonso Romano de Sant'anna. paródia, paráfrase e cia. Ática, 2001
*** Num conhecido ensaio sobre João SImões Lopes Neto e seu Blau Nunes, Flávio Loureiro Chaves cita o autor Percy Lubbock que concebeu a teoria do ponto-de-vista. Para este, há diversas vozes ao narrar. O leitor, por sua vez, só conhece o que sabe o narrador intercalado na história ou a personagem que conta os eventos ou, ainda, a personagem principal que conta a história na primeira pessoa. Porém, nesse conceito, não se deve confundir "ponto-de-vista" com foco narrativo: o que existe é uma polifonia de personagens que perfazem um mesmo eixo. No Pequeno Príncipe, eles podem ser o aviador (narrador e protagonista) e o menino (interlocutor e protagonista da narração do protagonista)
**** Aqui entendo que, asim como o pano de fundo da história é de raiz autoral, a inspiração da narrativa (que me salvem os biógrafos) também o é
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